Capa da publicação Violência contra a mulher na pandemia de covid-19
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A violência contra a mulher diante da pandemia de covid-19.

Uma análise dos principais aspectos teóricos, sociais e jurídicos que envolvem o combate a sua persistência no Brasil

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A pandemia de covid-19 exacerbou a violência contra a mulher no Brasil. Quais medidas sociojurídicas podem ser adotadas para superar a subnotificação e fortalecer redes de proteção às vítimas, especialmente em períodos de crise global?

Resumo: Tendo em vista a enorme relevância e abrangência na atualidade, já que toda a sociedade é de certa forma afetada por essa questão extremamente grave que ainda se faz muito presente em todo o mundo, pesquisa-se sobre a violência contra a mulher diante da pandemia de covid-19 no Brasil, a fim de responder à pergunta: como a pandemia de covid-19 influenciou o problema da violência contra a mulher no Brasil? Para tanto, é necessário analisar os impactos da pandemia de covid-19 sobre os aspectos sociojurídicos do combate à violência contra a mulher no Brasil, bem como caracterizar a violência contra a mulher, identificar os principais aspectos sociojurídicos da Lei Maria da Penha e destacar as principais influências da pandemia de covid-19 perante o contexto da violência contra a mulher no país. Realiza-se, então, uma pesquisa bibliográfica e documental. Conclui-se que as evidências apontaram para o aumento da violência de gênero durante a pandemia no Brasil, portanto, houve consequências demasiadamente negativas, desvelando a falta de mecanismos eficazes ao seu combate.

Palavras-chave: violência contra a mulher; pandemia; covid-19; Lei Maria da Penha; Brasil.

Sumário: 1. Introdução. 2. A violência contra a mulher no Brasil. 2.1. Contexto histórico. 2.2. Conceito. 2.3. Formas de violência contra a mulher. 2.4. A persistência da violência contra a mulher e algumas possíveis causas. 3. Os principais aspectos sociojurídicos da Lei Maria da Penha. 3.1. O tratamento da mulher vítima de violência antes da criação da Lei n. 11.340/2006. 3.2. Origem da Lei n. 11.340/2006. 3.3. Algumas inovações conferidas pela Lei n. 11.340/2006. 3.4. Alguns aspectos práticos que circundam a Lei n. 11.340/2006. 4. As principais influências da pandemia de covid-19 na violência contra a mulher no Brasil. 4.1. Contexto da pandemia. 4.2. O agravamento da violência contra a mulher. 4.3. Alguns dados da violência contra a mulher na pandemia. 4.4. Algumas estratégias adotadas para intensificar o combate à violência contra a mulher na pandemia. 5. Considerações finais. Referências.


1. INTRODUÇÃO

Com o passar dos anos, a violência contra a mulher foi sendo cada vez mais discutida na sociedade. Mesmo com o implemento de alguns avanços bastante significativos como a criação de leis para combatê-la e a ocorrência de maiores debates sobre o assunto, essa forma de violência atinge muitas mulheres não só no Brasil, mas também no mundo inteiro, estando infelizmente ainda muito presente no cotidiano da humanidade.

Considerando essa realidade, os fatores que contribuem para a proliferação desse tipo de violação da dignidade humana são variados, pois há todo um contexto histórico que influencia diretamente o cenário social brasileiro. Entre os diversos aspectos que remetem à persistência da violência contra a mulher, estão a perpetuação de ideias vinculadas a uma estrutura patriarcal da sociedade, associada a um padrão de comportamento que até recentemente parecia ser tolerado pelas instituições estatais, a subnotificação dos casos, a falta de uma rede de proteção da mulher que seja mais efetiva, a impunidade e a falta de conscientização das pessoas por meio da educação.

Ao longo do ano de 2020, os indícios de ocorrência de violência contra a mulher aumentaram de forma ainda mais intensa no Brasil. Isso se deve ao acontecimento da pandemia de covid-19, que causou impactos significativos na vida de todas as pessoas, principalmente com a necessidade do distanciamento social. Assim, o fato de a calamidade pública ter influído nesse cenário da violência de gênero faz com que seja extremamente relevante uma análise tendo como partida a problematização: como a pandemia de covid-19 influenciou o problema da violência contra a mulher no Brasil?

Diante disso, o objetivo geral deste trabalho é analisar os impactos da pandemia de covid-19 sobre os aspectos sociojurídicos do combate à violência contra a mulher no Brasil. Já os objetivos específicos consistem em caracterizar a violência contra a mulher, identificar os principais aspectos sociojurídicos da Lei Maria da Penha e destacar as principais influências da pandemia de covid-19 perante o contexto da violência contra a mulher no Brasil.

Dessa forma, a realização da presente pesquisa é muito importante devido à grande desigualdade no tratamento das mulheres que ainda existe no mundo inteiro, em especial no Brasil, o que deixa evidente o tanto que ainda falta para se atingir uma sociedade cuja conjuntura se baseie na efetiva igualdade de gênero. Esse panorama demasiado atual e abrangente enseja a persistência da violência contra a mulher, afetando toda a sociedade, o que leva à necessidade de todos entenderem o assunto de modo cada vez mais aprofundado. Então, a reincidência dessa violência representa um enorme retrocesso, especialmente quando se demonstram os elevados números de casos de violência contra a mulher no Brasil, situação influenciada pela pandemia de várias maneiras. Por isso, este estudo contribuirá para o esclarecimento dessas questões tão atuais e extensivas a partir da análise das principais informações acerca da violência contra a mulher na pandemia de covid-19 no Brasil.

Para que os objetivos deste trabalho fossem cumpridos, foi utilizado o método de abordagem dedutivo, uma vez que começa com preposições gerais para chegar a ideias mais específicas. Os procedimentos utilizados foram o bibliográfico, já que a pesquisa se deu a partir de legislações, livros, artigos científicos e trabalhos acadêmicos publicados sobre o tema, e o documental, visto que também foram usados materiais publicados na internet sem tratamento científico-analítico para a obtenção dos dados necessários à realização do presente estudo.

Portanto, a fim de responder à problemática e alcançar os objetivos mencionados, o trabalho foi dividido em três capítulos, com o primeiro a discorrer sobre as noções gerais da violência contra a mulher no Brasil, englobando o contexto histórico, o conceito, as formas dessa violência e algumas possíveis causas da sua persistência. O segundo capítulo abordará alguns aspectos sociojurídicos principais da Lei Maria da Penha, explorando o tratamento das vítimas antes da sua criação, a sua origem, algumas das suas inovações e alguns aspectos práticos que a circundam. Já o terceiro capítulo tratará sobre as principais influências da pandemia de covid-19 na violência contra a mulher no Brasil, incluindo o contexto da pandemia, o agravamento dessa violência, assim como alguns dos seus dados durante a pandemia e algumas estratégias adotadas para intensificar o seu combate em tal período.


2. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL

A primeira parte deste trabalho visa caracterizar a violência contra a mulher, abordando o seu contexto histórico, o seu conceito e as suas principais formas, de maneira a tratar sobre o assunto em geral. Além disso, evidencia também a ocorrência da persistência dessa violência e algumas das suas possíveis causas, a fim de construir uma base teórica para o entendimento do tema central do presente estudo.

2.1. CONTEXTO HISTÓRICO

No decorrer da história, um dos diversos problemas enfrentados que se fazem presentes na sociedade até mesmo atualmente é a violência contra a mulher. De acordo com o Conselho Nacional do Ministério Público (2018), pode-se dizer que esse tema sempre esteve presente no mundo, à medida que a humanidade foi evoluindo, mas somente na segunda metade do século XX que as mulheres conseguiram realmente começar a ter direitos reconhecidos, se tornando mais conscientes de que essa realidade de desvalorização, subordinação, inferiorização e violência que sempre enfrentaram em todas as áreas de sua vida, antes considerada natural, deveria ser mudada.

Diante desse cenário social de enorme repressão e desrespeito em relação às mulheres que perdurou por tanto tempo, ainda com resquícios tão explícitos na atualidade, o tratamento pautado na inferioridade e subordinação, em que eram até mesmo impedidas de expor os seus pensamentos, remetia a uma naturalização da violência contra a mulher, principalmente praticada pelo seu companheiro ou até mesmo pelo seu pai ou irmão. Esse comportamento era aceito e justificado pela sociedade, normalizando essa prática cruel, já que havia relação de dependência emocional, financeira e social, o que impossibilitava a vítima de sair daquela situação de vulnerabilidade, não sendo reconhecida como digna de ter direitos (NOGUEIRA, 2020).

Outro ponto bastante importante a ser destacado é que essa situação discriminatória na sociedade perpetuava a violência contra a mulher de maneira a tolerá-la, não havendo qualquer proteção às vítimas. Essa violência é causadora de inúmeros danos à saúde das mulheres, de modo a impactar gravemente todos os aspectos da sua vida. Com isso, há a violação da integridade estrutural, pessoal e social da mulher quando ocorre a degradação da sua saúde, o que é fruto da violência, acarretando a configuração de muitos distúrbios físicos, psicológicos e emocionais, tendo também influências muito negativas a sua autoestima e destruindo sua independência (NETTO et al., 2014).

É pertinente salientar que apesar de vários direitos das mulheres serem reconhecidos somente na segunda metade do século XX, a luta para conquistá-los decorre de muito tempo. Um período em que ocorreu a tentativa frustrada de conquistar seus direitos foi durante a Revolução Francesa, que apesar de ter acontecido com o objetivo de instaurar a democracia na França e assegurar os direitos dos cidadãos, ainda não ocorria na perspectiva do benefício feminino. Mesmo com a participação das mulheres nessa Revolução e suas constantes tentativas de obtenção de igualdade, eram silenciadas e oprimidas pela sociedade, como ocorreu com Olympe de Gouges quando escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã de Olympe de Gouges (1791) e acabou sendo guilhotinada, deixando evidente a exclusão das mulheres da vida política e socioeconômica na sociedade (THÉBAUD, 2000).

Ainda em relação a esse período, é inegável que apesar de as mulheres não terem alcançado seus objetivos de tratamento igualitário, a Revolução Francesa foi um marco histórico para o debate sobre a posição e os direitos das mulheres na sociedade, instigando sua participação nas práticas políticas de forma coletiva, momento decisivo que começou a efetivar o movimento feminista e seu objetivo de igualdade de direitos entre todos os indivíduos da sociedade (TÁBOAS, 2011).

Considera-se que o movimento feminista se divide em três fases, sendo a primeira a que buscou a consolidação dos direitos civis e políticos no século XIX e início do século XX, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos; a segunda a que objetivou a igualdade dos direitos sociais em meados de 1960 e 1970, no ocidente; e a terceira onda em meados de 1990 até a atualidade, também no mundo ocidental, prosseguindo com a luta pela conquista da igualdade em relação aos direitos sociais, mas de forma a incluir uma maior diversidade de mulheres, grupos e minorias (YUKIZAKI, 2014).

Assim, a violência contra a mulher começou a ser repreendida a partir de mudanças nos padrões sociais que foram sendo proporcionadas gradativamente pelo movimento feminista, como corroboram Angelim e Diniz (2009, p. 263):

A Violência Doméstica – ou mais especificamente a violência contra as mulheres – foi assumida como bandeira de luta e como um processo social por meio do qual o movimento feminista afirmou a ilegitimidade das várias formas de agressões de homens contra mulheres. Esse processo de luta envolveu a criação de condições para que as mulheres pudessem denunciar a violência ao mesmo tempo em que se sensibilizava o Estado para que não fosse conivente com o patriarcado que era utilizado como contexto ideológico que justificava ações violentas. Sem esse esforço político e histórico seria impensável a definição de uma agressão perpetrada por um cônjuge como um ato de violência passível de sanção penal. Na medida em que o movimento feminista demandou do Estado uma definição específica da violência contra as mulheres e ações direcionadas ao seu controle e erradicação, foram viabilizadas as condições para que mulheres, individualmente, percebessem e denunciassem a violência que sofriam.

De acordo com o exposto, as ideias discriminatórias originadas de uma sociedade pautada na desigualdade entre os gêneros e na repressão das mulheres foram paulatinamente sendo questionadas e modificadas por novos e revolucionários ideais feministas, iniciando o processo de deslegitimação da violência contra a mulher e de sua descaracterização como algo tolerável, o que suscitou o despertar do Estado para o combate a essa prática de imensurável desumanidade.

Apenas na segunda metade do século XX foi que ficou evidente a mobilização internacional para o combate à desigualdade de gênero e à violência contra a mulher. Alguns dos mais relevantes acontecimentos no âmbito do direito internacional para o reconhecimento dos direitos das mulheres e para a consequente tentativa de alcance da igualdade de gênero foi a criação da CEDAW ou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU) em 1979, primeiro instrumento internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos da mulher, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também chamada de Convenção de Belém do Pará (OEA) em 1994, ambas tendo o Brasil como um dos países signatários (NOGUEIRA, 2020).

Em consonância com Monteiro (2005), citado conforme Azambuja e Nogueira (2008, p. 104), a violência contra a mulher foi considerada oficialmente um crime contra a humanidade em 1979, a partir da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher. Esse fato também contribuiu para o início da ocorrência da visibilidade desse fenômeno pela comunidade internacional.

Essas convenções foram algumas das que tiveram um papel muito significativo na inclusão internacional da noção da imprescindibilidade de proteger os indivíduos sob circunstâncias históricas diferenciadas, tendo maior vulnerabilidade social, as quais representaram complementações à Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada em 1948, já que esta confere direitos fundamentais a todos os seres humanos de forma geral, ou seja, sem haver especificações em relação à concessão de mecanismos de proteção especial (BARSTED, 2004).

Consequentemente, esses grupos historicamente marginalizados e, portanto, mais vulneráveis, devem receber tratamento especial a partir da viabilização de meios e da implementação de medidas para atingir mudanças na maneira de lidar com essas questões pela sociedade. Isso é essencial à garantia da efetividade dos direitos humanos, visando à evolução das condições de vida da humanidade (BARSTED, 2004).

Além disso, vale destacar também o acontecimento da Conferência Mundial de Direitos Humanos, em 1993, que Barsted (2004, p. 57) explica como a que:

[...] produziu impacto na comunidade internacional ao reconhecer que os direitos das mulheres são direitos humanos e que a violência contra as mulheres e as meninas representam uma violação desses direitos, conclamando os Estados-Membros a adotarem a perspectiva de gênero em suas políticas como forma de eliminar a violência e a discriminação contra as mulheres. No Fórum Paralelo das ONGs, quando da realização dessa Conferência, a atuação do Tribunal de Crimes contra as Mulheres, organizado por uma articulação de instituições feministas, trouxe à visibilidade da comunidade internacional os testemunhos de mulheres vítimas de violência de gênero, demonstrando que esse é um fenômeno de dimensões internacionais que ocorre em todas as culturas, países, extratos sociais, contra meninas, mulheres adultas e idosas, brancas, negras e de diversas etnias. O Tribunal deu visibilidade também para o padrão de impunidade que impera diante da violência contra as mulheres, tanto em sociedades autoritárias quanto naquelas qualificadas de sociedades democráticas.

Assim, observa-se a criação de diversos tratados e a ocorrência de várias conferências de âmbito mundial no final do século XX, visando enfrentar a violência contra as mulheres e assegurar os seus direitos. Dessa maneira, houve a repreensão dessa manifestação de ódio através da adoção de diversos instrumentos institucionais, a fim de mudar o cenário mundial ao combatê-la e caminhar cada vez mais em direção à igualdade de gênero.

Já em relação ao Brasil, sua participação não se restringiu a acontecimentos internacionais. Também foram implantadas mudanças no âmbito interno para combater a violência de gênero e garantir os direitos das mulheres como consequência dessa mobilização mundial, visto que segundo Martins, Cerqueira e Matos (2015, p. 6), “As conferências e os tratados internacionais contribuíram para a identificação do problema da violência contra a mulher como um fenômeno global.”

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É indispensável ressaltar que a Constituição Federal de 1988 proporcionou, pela primeira vez de forma específica no ordenamento jurídico brasileiro, a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres em seu artigo 5º, inciso I. Isso significou a inclusão das mulheres como sujeitos de direito assim como os homens, o que apenas aconteceu na teoria, dado que a sociedade brasileira claramente continuou tendo o homem como centro da realidade jurídica do país, devido a características patriarcais que sempre continuaram presentes (CUNHA, 2014).

Diante da referida situação de influência internacional, houve mudanças mais evidentes a partir do advento da Lei 11.340/06, chamada de Lei Maria da Penha, que tem como foco de combate a violência doméstica, justamente por essa ser um dos pilares da violência contra a mulher. A criação dessa lei aconteceu por intervenção dos movimentos feministas e reiterou as obrigações e os preceitos contidos na Constituição Federal de 1988, nas convenções e nos tratados ratificados pelo Brasil, sendo a primeira lei brasileira a focar na violência de gênero (CUNHA, 2014).

Com isso, possibilitou a instituição de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e de medidas de assistência e proteção às mulheres vítimas dessa violência, delineando o método de realização do atendimento das mulheres nas delegacias bem como dos procedimentos adequados ao processo e ao julgamento desses casos. Ademais, visa assegurar a acessibilidade das vítimas à Defensoria Pública e à Assistência Judiciária Gratuita (CUNHA, 2014).

Por conseguinte, a partir da criação da Lei Maria da Penha, a violência contra as mulheres foi efetivamente considerada como violação dos direitos humanos. Esse fato correspondeu a um enorme avanço no combate à desigualdade e à violência de gênero, porque antes da sua promulgação não existiam medidas específicas de enfrentamento a esse tipo de violência. Na maioria das vezes, suas vítimas não recebiam o tratamento adequado e esses crimes eram lidados de forma a serem processados nos Juizados Especiais Criminais, o que representa uma banalização da gravidade dessa violência, sendo vista como uma causa pertencente à esfera privada e fazendo com que não houvesse efetividade do poder público em casos desse tipo (MARTINS; CERQUEIRA; MATOS, 2015).

Destarte, foi percorrido um longo caminho de reivindicações e mobilizações para que a realidade das mulheres começasse a ser mudada e seus direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Então, foram realizadas muitas discussões acerca do assunto, sendo fato incontestável que a violência contra a mulher deve ser combatida para a sociedade se aproximar da igualdade de gênero, de maneira a realmente haver mudanças no contexto sociojurídico.

Tudo isso se deu recentemente, principalmente com a ratificação de vários tratados e convenções e com a consequente promulgação da Lei Maria da Penha, que incrementou diversas medidas de combate a essa violência no Brasil, também conceituando-a. Assim, se faz necessário analisar os diversos conceitos referentes à violência contra a mulher para que se possa compreendê-la mais profundamente, o que será feito a seguir.

2.2. CONCEITO

Primeiramente, cabe entender que apesar de essencialmente haver certa diferença no significado, a violência contra as mulheres e a violência de gênero são expressões usadas como sinônimas, uma vez que as circunstâncias sociais propiciaram a intersecção desses conceitos. Originalmente, o termo “violência de gênero” compreende não somente a violência praticada contra as mulheres, mas também a praticada contra os homens. Devido ao fato de, na enorme maioria das vezes, a sociedade se encontrar diante de situações de violência praticada pelos homens contra as mulheres, fazendo com que elas sejam o principal alvo da violência de gênero, esse conceito, antes amplo, se limitou a significar violência contra as mulheres, especialmente a partir dos anos 70, quando sua utilização pelos movimentos feministas era recorrente (TELES; MELO, 2017).

A violência é conceituada como “uma forma de restringir a liberdade de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, reprimindo e ofendendo física ou moralmente” na visão de Teles e Melo (2017, p. 11). Neste mesmo sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) (2002, p. 5) a define como:

O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

Esse conceito enfatiza a abrangência do termo “violência”, já que ela não somente pode ser praticada por diversos indivíduos e através de diferentes meios, mas também pode ter como resultado variados malefícios às vítimas. Desse modo, a violência não se limita ao indivíduo violado, pois afeta todas as esferas da sua vida, inclusive as pessoas que o cercam.

Já de acordo com Saffioti (2011, p. 17), “Trata-se da violência como ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral.” Assim, entende-se que a violência é algo bastante complexo que envolve a análise de muitos elementos que formam cada indivíduo na sociedade, devendo ser considerada de forma conjunta, interligada e multifacetada, geralmente sendo percebida através do excesso da ação, quando há a ultrapassagem de barreiras estabelecidas no ambiente social (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015).

Outro conceito relevante para a compreensão da violência contra a mulher é o de gênero, posto que também pode ser chamada de violência de gênero. “Entende-se gênero como uma construção histórica e sociocultural, que atribui papéis e comportamentos aos sexos”, sendo essa uma explicação de Netto et al. (2014, p. 459). Portanto, há a convicção da existência de papéis sociais, com a construção de ideias e características condicionadas ao gênero feminino como se fosse secundário, inferior, emocional e subordinado ao masculino, sendo esse supostamente o racional, dominador e superior.

No mesmo sentido, Saffioti (2011, p. 45) observa que “Gênero também diz respeito a uma categoria histórica”. Além disso, complementa dizendo que “o gênero é a construção social do masculino e do feminino”, corroborando o fato de que esse conceito também é bastante amplo e complexo, já que abrange diversas concepções criadas ao longo da história que foram e ainda são impostas e esperadas pela sociedade para com os seus indivíduos, variando de acordo com a cultura de cada lugar.

Diante disso, diz-se que já há violência a partir da existência dessas preconcepções, como Malila e Maria Pereira (2011, p. 23) ressalvam:

A aceitação e a vivência em si dos papéis sexuais e das normatizações desiguais entre os gêneros, como se naturais fossem, já gera uma forma de violência, a violência simbólica. Ou seja, as normas sociais que regem a convivência entre homens e mulheres contêm violência e a simples obediência a tais regras é uma forma de violência simbólica. Trata‐se, portanto, de uma violência instalada no nível macro ou molar da sociedade e não apenas nas relações interpessoais, sendo mais uma forma de violência de gênero.

Por isso, essas ideias preconcebidas sobre como os diferentes gêneros devem supostamente se comportar na sociedade são demasiadamente prejudiciais a todos os indivíduos, principalmente às mulheres, visto que se estimula limitações quanto às possibilidades de atuação no cenário social e na vida em geral, o que também contribui diretamente para a ocorrência da violência de gênero. Ela tende a acontecer quando essas expectativas sociais não são atendidas, fazendo com que a pessoa seja tratada de forma discriminatória, o que pode ter como consequência essa violência.

Logo, Ritt, Cagliari e Costa (2009, p. 8) reforçam que a utilização da palavra gênero “permite que se analise as identidades feminina e masculina sem, no entanto, reduzi-las ao plano biológico, indicando que essas identidades estão sujeitas a variações determinadas pelos valores dominantes em cada período histórico.” Isso explica o fato de “gênero” estar interligado a preceitos sociais construídos historicamente, enquanto “sexo” normalmente dizer respeito às diferenças biológicas existentes entre mulheres e homens.

Antes de adentrar no conceito geral de violência de gênero, é pertinente destacar que esta se difere de violência doméstica, mesmo sendo muitas vezes usadas como expressões sinônimas. Violência doméstica é um termo mais restrito, porque considera o lugar onde a violência ocorre, que nesse caso seria o domicílio ou a residência da vítima, geralmente no ambiente familiar. Esse fato faz com que a violência doméstica possa ser chamada também de violência familiar ou intrafamiliar. Então, embora as expressões “violência de gênero” e “violência doméstica” tenham proximidade, apresentam significados diferentes, podendo-se dizer que a segunda é uma forma da primeira (RITT; CAGLIARI; COSTA, 2009).

A violência contra a mulher é conceituada nas variadas convenções e tratados sobre o assunto, como na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, chamada também de Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994, p. 1), afirmando em seu art. 1º que a violência contra a mulher consiste em “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.”

De acordo com Teles e Melo (2017, p. 14), esse conceito “deve ser entendido como uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher.” Sendo assim, deixa evidente que a consolidação de determinados comportamentos e hábitos impostos às mulheres e aos homens e provenientes de um enraizamento de ideias patriarcais e discriminatórias tem influência direta nos conflitos entre eles, posto que acontece uma instigação a esse tipo de violência pela imposição desses padrões comportamentais, sendo a consequência da forma de convívio em sociedade mediante a predeterminação de tais barreiras sociais.

Vale citar também o conceito de violência doméstica previsto na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006), em razão da sua proximidade com o conceito de violência contra a mulher em geral. O seu art. 5º dispõe que a violência doméstica e familiar contra a mulher acontece quando há “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial […]”, podendo essa primeira parte da definição ser aplicada ao conceito de violência de gênero (BRASIL, 2006).

Sobre a violência contra a mulher, Pinto (2020, p. 80) ainda complementa que:

Trata-se de uma das maiores feridas que a sociedade suporta, de custo social muito elevado, pois, como se sabe, crianças e adolescentes que convivem com o clima de agressão dentro do lar acabam por banalizar a violência, tornando-se indiferentes aos direitos fundamentais da pessoa humana, circunstâncias que, sem dúvida, constituem um dos fatores que geram violência social.

Portanto, o conceito de violência contra a mulher abrange várias noções socioculturais, fruto da complexidade do processo de desenvolvimento da sociedade e da interrelação entre seus indivíduos a partir dos diversos fatores históricos e sociais (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020).

Por envolver tantos elementos diferentes, Almeida, Perlin e Vogel (2020) apontam que a violência contra a mulher configura um problema que compreende interesses não somente relacionados às mulheres ou às pessoas envolvidas nesse contexto violento, mas também a toda a sociedade, visto que é uma causa de injustiça social, devendo ser combatida por todos. Assim, diante dessa heterogeneidade de aspectos, cabe analisar os principais tipos de violência contra a mulher, o que será feito adiante.

2.3. FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Há várias formas de violência contra a mulher, mas as principais que serão explicadas e que também aparecem no art. 7º da Lei Maria da Penha são a violência física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral.

A violência física diz respeito a toda “ação intencional que coloca em risco ou causa dano à integridade física de uma pessoa, com ou sem o uso de armas brancas ou de fogo” (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020, p. 51). Essa forma de violência é a mais repreendida pela sociedade, principalmente pelo fato de geralmente ter consequências visíveis.

De acordo com Almeida, Perlin e Vogel (2020, p. 51), alguns exemplos são:

obrigar a tomar medicamentos desnecessários ou inadequados, bloquear a passagem, dar tapas, empurrões, mordidas, chutes, socos, amarrar ou imobilizar a pessoa, torcer o braço, provocar queimaduras e cortes, estrangular, causar lesões por armas ou objetos, e até ameaçar matar a parceira (apesar de ameaças configurarem violência psicológica, geralmente ocorrem em contextos em que a violência física está presente).

Esses exemplos certificam a amplitude da redação do art. 7º, I, da Lei Maria da Penha, dispondo que a violência física consiste em “qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal” (BRASIL, 2006).

Segundo Rapold e Pereira (2018), esse tipo de violência é o que demonstra maior facilidade na identificação do ocorrido. Isso decorre do fato de haver grande possibilidade de as agressões físicas marcarem o corpo da vítima, dependendo da intensidade do ato violento.

É importante destacar que a violência física é a mais presente no ambiente doméstico de acordo com o Instituto de Pesquisa DataSenado (2019, p. 7), com 66% das mulheres entrevistadas respondendo que já sofreram algum tipo de violência física no âmbito doméstico ou familiar provocada por um homem. Esse dado reafirma a importância de se combater todo tipo de violência contra a mulher, inclusive esse de inestimável gravidade para a sua saúde física.

Assim, a violência física é uma das formas de violência contra a mulher mais frequentes e evidentes, dado que normalmente deixa marcas no corpo da vítima, o que tende a despertar um sentimento de maior intolerância por parte da sociedade. Além disso, cabe enfatizar que a maioria das mulheres que sofreram feminicídio passavam por recorrentes agressões físicas, o que deixa explícito a grande possibilidade de a violência física acarretar morte (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020).

Outro tipo de violência contra a mulher também bastante comum é a psicológica. Essa é definida por Njaine, Assis e Constantino (2014, p. 39) como sendo “agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir-lhe a liberdade ou, ainda, isolá-la do convívio social.”

Já o conceito de violência psicológica disposto na Lei Maria da Penha é:

qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006, art. 7º, II).

A partir dessa definição, fica explicitado que a violência psicológica abrange vários comportamentos e práticas que visam deturpar a visão da vítima sobre a realidade, a fim de controlar suas ações e desestabilizar a sua vida, causando-lhe inúmeros distúrbios mentais. Dito isto, é de claro entendimento que esse tipo de violência pode não ser percebido devido a sua centralização no âmbito emocional.

Almeida, Perlin e Vogel (2020) reforçam que a violência psicológica pode ter como uma de suas consequências o comprometimento da autoestima da vítima, fragilizando seu psíquico de modo a fazer com que aconteçam distorções na maneira como percebe as circunstâncias ao seu redor e, até mesmo, a si mesma. Também destacam que essa violência, em geral, é a que tende a acontecer antes mesmo dos outros tipos de violência, se caracterizando por “ataques frequentes à identidade e a traços físicos ou de personalidade da pessoa, de forma a desqualificá-la e destruir a sua autoestima” (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020, p. 31). Então, a violência psicológica trata majoritariamente de práticas manipuladoras que se fazem presentes juntamente a outras formas de violência, na maioria das vezes (CAETANO, 2020).

A terceira forma de violência a ser explicada é a violência sexual. Como observa Caetano (2020), ela não somente se refere à obrigação de ter relações sexuais com o agressor, independentemente de a vítima estar consciente ou não ou da existência de qualquer relacionamento afetivo, como também se estende às limitações reprodutivas impostas pelo seu parceiro. Isso deixa evidente que a violência sexual pode ocorrer em qualquer esfera social, englobando qualquer ofensa à liberdade sexual e reprodutiva das mulheres.

A violência sexual é definida pela Lei Maria da Penha como sendo:

qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, 2006, art. 7º, III).

Vale reiterar que apesar de a violência sexual ser muitas vezes erroneamente restringida ao estupro, fica nítido que esse tipo de violência abarca várias outras ações. Entre elas, controlar a vida reprodutiva da mulher e pressioná-la a usar a sexualidade de qualquer forma que não consinta.

Há violência patrimonial quando o companheiro “se apropria da remuneração da mulher, vende um bem do casal sem repassar à parceira a parte que lhe cabe ou até destrói algum pertence da mulher, como uma roupa ou o carro” (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020, p. 40).

Na Lei Maria da Penha, a violência patrimonial é conceituada como “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades” (BRASIL, 2006).

Neste sentido, Nogueira (2020) afirma que ocorre o uso das finanças e bens da vítima para que o violentador sinta como se estivesse no domínio da mulher. Diante desse contexto, o agressor pode também constranger a mulher, visando atingir o seu objetivo.

Delgado (2016) acrescenta ainda que a violência patrimonial pode ter o objetivo principal de fazer com que ocorra desestabilização e sofrimento à vítima, às vezes sem mesmo importar para o agressor o valor ou o bem atingido. Ademais, salienta também que apenas quando essa ação de subtrair, destruir ou reter o objeto ou quantia acontecer em razão do gênero, como quando oprimir e inferiorizar a mulher, é que vai configurar esse tipo de violência contra a mulher. Desse modo, não é sempre em que ocorre a prática dessas ações pelos cônjuges ou companheiros em relação às mulheres que vai haver o enquadramento nessa forma de violência, devendo-se atentar para as suas motivações.

Convém frisar que a violência patrimonial pode ser chamada de violência financeira, por ser centrada na perturbação da vida financeira da vítima. Assim, pode-se dizer que esse tipo de violência acontece com mais frequência atualmente, devido à conquista da mulher no mercado de trabalho e ao consequente fato de ela poder adquirir seus próprios recursos (CAETANO, 2020).

Ultimamente, existe também a violência moral, que é definida pela Lei Maria da Penha como sendo quando há “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria” (BRASIL, 2006). Caetano (2020) observa que a ocorrência desse tipo de violência contra a mulher tende a ser mais comum hoje em dia por causa da tecnologia avançada. Isso faz com que haja certa banalidade em relação aos ataques virtuais, pois são extremamente recorrentes.

Sendo assim, a violência moral consiste em uma maneira de violência bastante parecida com a violência psicológica, podendo ser difícil diferenciá-las. Esse fato se dá devido à possibilidade de as duas envolverem a menção de palavras ofensivas, prejudicando a vítima em diversos pontos de sua vida emocional e cotidiana (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020).

Então, existem ainda muitas outras categorias usadas para determinar o tipo de violência, sendo as estudadas algumas das principais e mais comuns. Além disso, a classificação da violência sofrida pela mulher muitas vezes não é fácil de ser feita, em virtude de ser corriqueira a presença de mais de um tipo de violência em um mesmo caso, uma após a outra (NOGUEIRA, 2020).

Cabe acentuar que a afinidade entre todas as formas de violência contra a mulher se encontra no intuito de depreciar e dominar a vítima, fazendo com que ela seja subordinada ao agressor (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020).

Por fim, é válido comentar que quando as ideias feministas proporcionaram a existência de uma classificação das violências praticadas contra as mulheres, houve o destaque da sua propagação em diferentes ambientes sociais, fazendo com que a violência de gênero realmente começasse a ser mais visível perante a sociedade. Com isso, ocorreu também uma participação maior do Estado para que os direitos das mulheres vítimas de violência fossem assegurados, já que a partir do momento em que essa violência ficou mais evidente, as pessoas puderam cobrar a ação do governo de forma mais intensa (ANGELIM; DINIZ, 2009).

Ante o exposto, cabe analisar em seguida algumas das causas da persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira, levando em consideração a complexidade que envolvem.

2.4. A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E ALGUMAS POSSÍVEIS CAUSAS

Como visto, com o fortalecimento do movimento feminista, várias mudanças ocorreram ao longo dos anos no sentido de melhoramento das condições das mulheres na sociedade, uma vez que passaram a ser consideradas sujeitos de direitos, o que fez o modo de o Brasil lidar com a violência contra a mulher progredir a partir da ratificação de instrumentos internacionais, da implementação de leis e da adoção de medidas com o objetivo de combater essa situação de injustiça e certificar os direitos das mulheres.

No entanto, a violência contra a mulher continuou a acontecer com números de casos altíssimos. Essa persistência prossegue devido à existência de uma diversidade de fatores, entre eles estão o enraizamento de ideias associadas à estrutura patriarcal da sociedade, a subnotificação dos casos, a impunidade, a falta de uma rede de proteção da mulher mais efetiva e a falta de conscientização das pessoas por meio da educação.

A violência contra a mulher é o reflexo da crença de que há superioridade do homem em relação à mulher, este supostamente devendo ter uma posição mais elevada e importante na sociedade, enquanto a última devendo se sujeitar às vontades daquele. Isso resulta na existência de relações de poder reproduzidas pela violência de gênero, ampliando e explicitando cada vez mais as desigualdades entre homens e mulheres. Posto isto, essa forma global de violência é disseminada principalmente pelas ideias patriarcais, induzindo a violência contra a mulher, como se o homem tivesse o direito de dominação e a mulher o dever de submissão, e sendo interiorizadas por muitas pessoas (ARAÚJO, 2008).

Outrossim, na visão de Pinto (2020), um dos fatores que estimulam a ocorrência da violência de gênero é exatamente o modo de funcionamento da sociedade de acordo com uma cultura patriarcal que reforça comportamentos machistas, limitando a inserção da mulher na sociedade, de maneira a impedi-la de ocupar cargos elevados e de ter seus direitos concedidos. Esse cenário faz com que as mulheres se encontrem em uma condição de desvantagem em relação aos homens em muitas partes da sociedade, mesmo tendo conquistado vários direitos ao longo da história (NOGUEIRA, 2020).

Então, ideias instigadoras da violência contra a mulher sempre estiveram presentes na humanidade. Elas sucedem principalmente de visões distorcidas da realidade que são consequências de uma ideologia que inferioriza as mulheres. Por muito tempo, esse sistema de crenças foi considerado normal e determinava a aceitação da desigualdade de gênero pela sociedade como se fosse algo inerente da natureza humana, caracterizando uma ordem patriarcal que legitimava a violência contra a mulher e a referida desigualdade através de predeterminações de gênero, podendo variar de acordo com o contexto cultural (ARAÚJO, 2008).

Nessa perspectiva, por ser uma das consequências da sociedade estruturada com pilares patriarcais e por configurar uma das principais causas da violência contra as mulheres, é propício enfatizar o significado de desigualdade de gênero. De acordo com Benigno, Vieira e Oliveira (2021, p. 484), compreende-se “como qualquer diferença ou como o conjunto de diferenças entre mulheres e homens no que se refere às suas atuações na sociedade”. Em conformidade, Santos (2008, p. 355) observa que essas diferenças “são predominantemente de origem social e estrutural, de modo que o homem, como uma categoria, possui mais poder social do que a mulher, também como uma categoria.” Completa ainda dizendo que “A identidade de gênero estrutura a experiência, o sentido dado ao mundo e as expectativas dos outros.”

Vale salientar que esse contexto de discriminação contra as mulheres que resulta na violência de gênero não se refere a adversidades pontuais, mas sim estruturais. Há todo um sistema sociocultural que reforça ideias preconcebidas e preconceituosas em relação às mulheres que perpetuam o ciclo dessa violência na sociedade, de modo a fazer com que muitos indivíduos acreditem que essas ideias têm fundamento, reafirmando-as como verdadeiras. Seguindo esse raciocínio, é possível alegar que a desigualdade tem proveniência nesse sistema de convicções em que os homens têm direitos e privilégios que as mulheres não têm (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020).

Sendo assim, nas palavras de Oliveira (2012, p. 156):

A construção de identidades, fincada em aspectos simplesmente culturais, foi fator determinante para o reconhecimento de uma hierarquia injustificada, que culminou, durante décadas, na sobreposição do masculino sobre o feminino. [...] A despeito de tais considerações, a perspectiva de gênero como produto das relações sociais foi capaz de dar uma justificativa lógica para a existência do conflito entre homens e mulheres. Por meio das origens da desigualdade entre os sexos, tornou-se mais fácil verificar a extensão, bem como a gravidade deste problema nitidamente cultural. Um olhar atento para a sociedade permite inferir que tais papéis outrora estabelecidos como atividades próprias dos sexos já foram internalizados pelos próprios sujeitos. Ao reproduzirem, mesmo que inconscientemente, determinadas práticas e valores, as pessoas permanecem agindo para a manutenção do modelo patriarcal e dessas supostas regras de conduta.

Dito isto, revela-se que as crenças discriminatórias presentes na cultura da sociedade tendem a ser reforçadas por ela própria a todo o momento, gerando o prosseguimento de tal conjuntura de ideias preconcebidas que ditam as atitudes das pessoas, as quais se tornam limitadas por esses estereótipos, muitas vezes sem nem perceber. Deste jeito, através de um modelo estrutural determinante de certos preconceitos, os indivíduos se encontram reféns dessas imposições socioculturais que restringem o seu modo de viver e, como posto, muitos nem mesmo notam isso. Todo esse cenário contribui para a continuidade e fortificação da violência contra a mulher.

Neste mesmo sentido, Saffioti (1994, p. 445) observa que:

Através da inversão provocada pela ideologia de gênero e de violências factuais nos campos emocional, físico e sexual, a mulher aparece como consentindo com sua subordinação, enquanto categoria social, a uma outra categoria social constituída pelos homens. O problema, portanto, não se põe ao nível do indivíduo, mas de toda uma categoria de gênero.

Essa estrutura social construída a partir de ideias conservadoras patriarcais foi enraizada nos valores de várias pessoas, inclusive de mulheres. Por isso, ainda ocorre a aceitação dessas premissas como normais e realistas, o que causa a perpetuação desse sistema que induz a violência de gênero.

Um fato que comprova a extrema influência dessa ideologia discriminatória e violenta na sociedade é que, apenas em 12 de março de 2021, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio, tendo em vista a violação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Então, essa tese foi considerada como sendo totalmente discriminatória contra a mulher, configurando um discurso “odioso, desumano e cruel” segundo o ministro Dias Toffoli, o qual potencializa a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil. Isso significou um avanço no combate à violência contra a mulher, mesmo acontecendo tão tarde (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2021).

Dessarte, esse cenário repleto de crenças patriarcais limitantes propagou ideais de desigualdade como verdadeiros, ainda presentes até mesmo no mundo atual, os quais estimulam e difundem a violência de gênero. Essa maneira de violência, como visto, continua a se perpetuar devido a variadas outras razões que acentuam sua manifestação, sendo um dos problemas mais recorrentes na humanidade.

Dentre os diversos fatores que contribuem para esse cenário, está a subnotificação dos casos de violência contra a mulher. Segundo Vasconcelos (2020, p. 74), a subnotificação “consiste nos casos que não chegam às instituições competentes e que, portanto, não são contabilizadas e não entram para as estatísticas.” Já Ferreira e Moraes (2019, p. 264) observam que ela deve ser entendida “como um conjunto de dados ocultos que precisam ser forçados a se revelar.” Esse ato de omissão repercute de maneira extremamente negativa no combate da violência contra a mulher, pois tende a encobrir a real quantidade de casos, ocorrendo seu silenciamento devido à ligação com o agressor.

Esse acontecimento de não denunciar a violência sofrida pelas mulheres pode ter múltiplas causas, como a existência de dependência econômica e/ou emocional, a vergonha de exposição pela delicada situação enfrentada, o medo de ficarem expostas a mais violência, o pensamento de manutenção da família pela existência de filhos, entre outros motivos. Então, além de principalmente temerem a piora da sua situação violenta, há muitas vítimas que não reconhecem a configuração de anormalidade dessas práticas violentas, devido ao fato de haver tido uma naturalização desses atos violentos no seu cotidiano. Por isso, há dificuldade de agir no sentido da denúncia, o que acarreta a subnotificação de casos e a invisibilidade dessa violência sofrida pela mulher (FERREIRA; MORAES, 2019).

Ademais, a subnotificação pode também ser consequência da falta de uma rede de proteção que garanta a efetiva segurança da vítima, já que, como posto, além de a mulher não denunciar pela possibilidade de estar diante do sentimento de medo da intensificação da violência sofrida ou até mesmo por vergonha da situação, ela não se sente protegida nem amparada devido à existência de poucos espaços de acolhimento dessas mulheres que passaram por experiências violentas e traumatizantes, o que representa o despreparo do Estado em relação à proteção física e psicológica dessas vítimas (FERREIRA; MORAES, 2019).

Em concordância, Vasconcelos (2020, p. 74) afirma que:

A falta de uma rede de apoio à mulher vítima de violência doméstica e familiar pode fazer com que os casos passem despercebidos. O resultado é que os órgãos competentes não conseguem atuar de maneira efetiva para retirar a mulher da situação de violência à qual está exposta.

Essa falta de proteção pode acontecer até mesmo quando a vítima busca atendimento e se depara com o despreparo dos agentes públicos no tratamento dos casos de violência contra a mulher. Paralelamente, muitas delegacias especializadas nesse tipo de violência apenas atendem durante parte do dia, podendo haver também falta da infraestrutura necessária ao procedimento eficaz, o que inviabiliza o alcance do efetivo auxílio estatal por várias vítimas. Tudo isso é somado ainda à demora do judiciário em conferir as medidas protetivas, fazendo com que possa ocorrer destruição de provas, intensificação da violência ou até mesmo desistência da vítima de se dirigir ao poder público (FERREIRA, 2020).

Ainda na mesma perspectiva, além da falta de investimentos em uma rede de proteção que seja realmente eficaz, as medidas protetivas quando concedidas muitas vezes não cumprem o seu objetivo em virtude de a quantidade de casos ser disparadamente superior à quantidade de agentes públicos que atuem como responsáveis pela fiscalização efetiva da aplicação dessas medidas. Pode-se dizer também que quando ocorre o indeferimento da concessão de medida protetiva, a maioria das vítimas desistem de buscar ajuda estatal. Todo esse contexto contribui para a manutenção do ciclo da violência de gênero e a consequente impunidade dos agressores, verificando a ainda ineficiente estrutura estatal no combate a essa violência (COSTA, 2019).

Como a notificação diz respeito à provocação do Estado para que este atue no sentido de executar a justiça, caracterizando um instrumento legal que visa fazer com que os culpados pela prática da violência de gênero sejam punidos, a sua inexistência, seja por qualquer razão, inclusive pela falta de uma rede de proteção que efetivamente garanta a segurança das vítimas, implica a impunidade. Nesse sentido, é essencial que haja maior esclarecimento da sua relevância para a população, viabilizando a diminuição do crescente índice de subnotificações de casos de violência contra a mulher e, consequentemente, da impunidade e da restauração do ciclo violento (FERREIRA; MORAES, 2019).

Outro aspecto que vai de encontro ao combate da violência de gênero é a falta de conscientização das pessoas por meio da educação. Tendo em vista que é através da educação que os indivíduos aprendem a se comportar em sociedade, o que molda o seu modo de pensamento e influencia as suas ações na fase adulta, se fosse ensinado desde cedo nas escolas sobre a igualdade de direitos e deveres entre todos os indivíduos da sociedade e sobre a importância do respeito ao próximo, haveria uma tendência de desconstrução de estereótipos, que são instaurados nas pessoas ao longo da vida, e de construção de relacionamentos saudáveis quando adultos, estimulando a reflexão acerca dessas convicções equivocadas que tendem a resultar na violência de gênero (ALMEIDA; PERLIN; VOGEL, 2020).

Nesta lógica, a educação deveria ser expandida para além dos mais jovens, visando atingir muito mais pessoas de todas as faixas etárias. Isso poderia ser feito através de campanhas sobre a violência contra a mulher em todas as mídias, esclarecendo a importância do seu combate e enfatizando as implicações desses atos criminosos, tendo como finalidade não somente a prevenção como também o estímulo à denúncia dos casos de violência, além de desencorajar a sua prática. Assim, haveria a conscientização da população brasileira e a possível diminuição da violência de gênero (TOBAR, 2019).

Portanto, há diversos motivos pelos quais a violência contra a mulher ainda se perpetua na sociedade, desde os retrocedentes pensamentos patriarcais instituídos nos indivíduos até a falta de oferecimento de mais meios de educação para a conscientização coletiva, entre outros. Apesar dessa persistência da violência de gênero, houve evoluções no ordenamento jurídico brasileiro no tocante a esse problema, cabendo analisar os principais aspectos sociojurídicos da Lei Maria da Penha no próximo capítulo.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Maria Eduarda Silveira. A violência contra a mulher diante da pandemia de covid-19.: Uma análise dos principais aspectos teóricos, sociais e jurídicos que envolvem o combate a sua persistência no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7842, 20 dez. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95563. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco como requisito para a obtenção do título de Bacharela em Direito. Orientadora: Prof. Dra. Manuela Abath Valença. Recife, 2021.

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