3. OS PRINCIPAIS ASPECTOS SOCIOJURÍDICOS DA LEI MARIA DA PENHA
A lei n. 11.340/2006 constitui um importante instrumento legal que certamente viabilizou vários feitos no que tange ao reconhecimento e à garantia de direitos da mulher. O capítulo aborda as principais inovações trazidas ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei Maria da Penha, apontando as diferenças entre a situação da violência contra a mulher antes e depois da criação dessa lei. Apresenta também algumas questões críticas sobre a referida lei, desmistificando a visão utópica de que ela seria a solução do problema persistente da violência contra a mulher.
3.1. O TRATAMENTO DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA ANTES DA CRIAÇÃO DA LEI N. 11.340/2006
A Constituição Federal de 1988 prevê a igualdade no tratamento de homens e mulheres (art. 5º, I, da Constituição Federal) e a inexistência de qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV, da Constituição Federal) para atingir a justiça social. Mesmo depois dessa igualdade formal ser reconhecida com a sua promulgação, não existiu mudanças significativas no avanço ao combate da violência contra a mulher, pois na prática as mulheres continuaram a ter seus direitos desrespeitados frequentemente, o que fica nítido diante da crescente situação de violência à qual sempre estiveram expostas. Assim, não houve efetivamente a eliminação da discriminação contra as mulheres como previsto na nova Constituição (FERNANDES, 2021).
Neste mesmo sentido, Montenegro (2015) reforça que a Constituição de 1988 traduz a essencialidade do tratamento igualitário entre todas as pessoas apesar das suas diferenças, seja no âmbito civil ou no penal. Dessa maneira, há “a igualdade perante a lei e a igualdade na própria lei” (MONTENEGRO, 2015, p. 54), prevendo esse tratamento indiscriminado tanto na aplicação da lei quanto no seu próprio texto. Esse contexto deixa evidente que não há espaço para normas que contribuam para a discriminação no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a mulher passou a ser formalmente reconhecida como capaz de tomar decisões e como sujeito de direitos e vontades.
Mesmo com esses avanços proporcionados pela nova Constituição, Cerqueira et al. (2015) enfatiza que somente no final dos anos 90, o art. 35. do Código de Processo Penal, que previa que a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem a autorização do marido, salvo quando fosse contra ele ou esta estivesse separada, foi revogado pela lei n. 9.520/1997. Esse fato ratifica que mesmo depois da criação da Constituição de 1988, ainda havia vários resquícios de desigualdade de gênero no cenário jurídico brasileiro.
Nos Códigos Penais, as mulheres sempre foram tratadas de forma nitidamente discriminada. Conforme Montenegro (2015), não houve tantos avanços no Código Penal de 1940 em relação a esse tratamento preconceituoso das mulheres, visto que até a criação da lei 11.106/2005, ainda havia uma divisão em categorias mediante o enquadramento das mulheres em palavras cujos conceitos se mostravam imprecisos e dependentes da interpretação do Judiciário, ou seja, havia uma classificação entre as que merecem a proteção da lei e as que não, baseando-se no julgamento pela sexualidade e desmerecendo-as a partir de ideias incongruentes disseminadas como naturais e de conceitos irrealistas de palavras como “honesta”, o que limitava o alcance da aplicabilidade da lei.
Embora ainda seja utilizada na argumentação durante o curso do processo penal e esteja presente no artigo 407 do Código Penal Militar, essa divisão preconceituosa que distingue as merecedoras de tutela penal foi excluída da legislação penal comum com o advento da lei 11.106/2005. Tal diferenciação não cabe em qualquer setor da sociedade, somente reforça uma visão refletora de estereótipos, se mostrando equivocada e incoerente especialmente diante do contexto atual, ferindo também a dignidade humana e reafirmando a delimitação da lei penal (NEVES, 2020).
Então, a lei 11.106/2005 excluiu alguns tipos penais que corroboravam para a existência de discriminação entre homem e mulher na sociedade e retirou o termo “honesta” do Código Penal, abrangendo mais indivíduos como sujeito passivo dos crimes de posse sexual mediante fraude e de atentado ao pudor mediante fraude. Além disso, entre outras alterações, a referida lei fez com que as possibilidades de extinção de punibilidade através do casamento fossem revogadas, também fazendo com que o adultério não mais configurasse um tipo penal (MONTENEGRO, 2015).
Como ainda não havia uma lei específica que versasse sobre a violência contra as mulheres, por bastante tempo a lei n. 9.099/1995 foi utilizada em inúmeros casos desse tipo de violência. Essa Lei dos Juizados Especiais conferiu a aplicação de medidas mais brandas em relação a delitos de menor potencial ofensivo, incluindo na prática grande parte daqueles referentes à violência de gênero, além de que várias dessas condutas delituosas contra a mulher nem mesmo resultavam na condenação dos agressores (CERQUEIRA et al., 2015).
Nesse contexto, vários fatores originados dessa aplicação da lei n. 9.099/1995 ensejaram malefícios às vítimas da violência de gênero. A demora da realização da audiência preliminar fazia com que os agressores tivessem tempo para instigar suas vítimas a desistir da queixa; a imposição de conciliação pelo juiz, sem considerar os sentimentos e as vontades das partes; a exposição da vítima perante o agressor a intimidava no momento de decidir sobre o seu direito de representar, caso não feito acordo; isso fazia com que a maioria dos processos fossem arquivados (DIAS, 2021).
Ademais, ainda que houvesse a representação da vítima, era possível que o Ministério Público sem a sua participação fizesse a proposta na transação penal, que caso aceita pelo acusado, poderia acabar em multa ou em pena restritiva de direitos, resultando, por exemplo, no pagamento de cestas básicas a outras pessoas, de modo que o crime iria desaparecer da história do agressor, quase sem prejuízos para ele, apenas financeiro, que na verdade era muito mais nocivo à vítima e a seus filhos (DIAS, 2021).
O referido cenário fez com que o número de condenações fosse baixo, conquanto existisse quantidade bem maior de casos de violência contra a mulher, sendo disseminada como motivo a ideia de manutenção da conjuntura familiar. Então, essa conservação da estrutura da família foi para muitos usada como razão da existência do ciclo de absolvições dessa época, como se esse sistema restaurasse a harmonia familiar. No entanto, ocorreu o oposto: somente aumentou o senso de impunidade, ocultando ainda mais a violência de gênero (DIAS, 2021).
Dessa maneira, a lei n. 9.099/1995 teve seu objetivo de celeridade não atingido no tocante à violência doméstica, cenário em que a “autoridade policial limitava-se a lavrar termo circunstanciado e encaminhá-lo ao Juizado Especial Criminal” (DIAS, 2021, p. 31). Isso aconteceu porque, em consonância com Dias (2021), devem ser levadas em consideração as disparidades existentes entre homem e mulher na sociedade, de modo que a violência de gênero nunca pudesse ser enquadrada como crime de menor lesividade, posto que havia extremo descaso no seu tratamento.
No mesmo sentido, Montenegro (2015) destaca que muitos grupos feministas consideraram a lei n. 9.099/1995 uma causa da banalização da violência doméstica. Nessa visão, a aplicação dessa lei nos casos de violência de gênero, que foi alvo de diversas críticas, trouxe benefícios apenas para o autor do fato ilícito, contribuindo para o sentimento de validação dos crimes praticados e de impunidade, propagando ainda mais a violência contra as mulheres.
Por outro lado, Montenegro (2015) explica que havia aspectos positivos na utilização dos Juizados Especiais Criminais para tratar esses conflitos domésticos e familiares, apesar de não serem reconhecidos pela maioria das pessoas devido à ideia de que a despenalização causaria a impunidade, existindo uma cultura de valorização da punição severa como ilusório meio de solucionar os problemas. Com a tentativa de conciliação nos Juizados, conferindo a oportunidade de diálogo entre as partes como alternativa ao sistema penal, era possível que os envolvidos chegassem juntos a um consenso que atenuava o conflito, verdadeiramente proporcionando resultados benéficos ao atender os seus interesses, dado que a vítima muitas vezes só deseja auxílio para lidar com o problema, não a punição.
Um outro aspecto pertinente destacado por Dias (2021) é o despreparo das delegacias de polícia no tratamento das vítimas dessa violência, as quais se encontravam em diversas ocasiões descredibilizadas e depreciadas pela própria polícia, tendendo a haver a culpabilização da agredida. Por consequência, foram criadas as Delegacias da Mulher, sendo a primeira em São Paulo ainda em 1985, garantindo lugares especializados no atendimento dessas vítimas, fato que incentiva a denúncia. Todavia, após a Lei dos Juizados Especiais, esses espaços de atendimento às mulheres passaram apenas a formalizar a denúncia em termo circunstanciado e a destiná-lo a juízo, sendo praticamente desocupados.
Dias (2021) observa ainda que a violência doméstica não costumava ser mensurada antes da Lei Maria da Penha. Essa situação ocorria em virtude da despreocupação das autoridades em avaliar a natureza do delito para existir a contabilização dos casos, não havendo anotações nos documentos feitos na polícia nem diferenciação no âmbito judicial, uma vez que esses crimes de violência contra a mulher eram tratados como qualquer outro.
Outrossim, era grande a quantidade de arquivamentos de casos, de ocorrências cujos registros não eram realmente ajuizados e de extinções de punibilidade ocorridas que não eram estimadas, o que demonstra a completa indiferença das instâncias da sociedade no que concerne ao grave problema da violência de gênero. Por conseguinte, até o advento da referida lei, nunca houve noção do real número de casos de violência contra a mulher, já que as dimensões dessa violência eram minimizadas devido à falta de consciência e atenção a tal problema, seja pela polícia ou pelo judiciário (DIAS, 2021).
Antes da Lei Maria da Penha, quase não houve mudanças significativas no que diz respeito ao tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Uma dessas escassas alterações foi introduzida pela lei n. 10.455/2002, que modificou o parágrafo único do art. 69. da lei n. 9.099/1995. Ele passou a prever que o juiz pudesse definir o distanciamento do ofensor do lugar onde ambos conviviam no caso de violência doméstica. Assim, houve a criação de medida cautelar de caráter penal (DIAS, 2021).
Com o advento de leis específicas sobre outros temas, as pressões feministas para que ocorressem mudanças na sociedade a respeito do tratamento da violência de gênero só aumentavam. Esse acontecimento se deu em virtude da inexistência de previsão específica da violência doméstica na legislação penal, mesmo já contendo os atos dela resultantes como tipos penais. Por conseguinte, houve a criação da lei n. 10.886/2004, a qual adicionou o tipo penal específico da violência doméstica ao art. 129. do Código Penal, o parágrafo 9º, com pena de detenção de seis meses a um ano (MONTENEGRO, 2015).
Na perspectiva de Montenegro (2015, p. 104), “a violência doméstica é uma forma qualificada da lesão corporal de natureza leve e uma causa de aumento de pena para lesão corporal de natureza grave ou gravíssima.” Apesar de que já havia aumento de pena da lesão corporal leve nas mesmas circunstâncias pela agravante do art. 61, inciso II, alíneas “e” e “f” do Código Penal antes desse novo tipo penal, a violência doméstica passou a ser considerada a razão da elevação da pena abstrata mínima de lesão corporal leve, indo de três para seis meses (MONTENEGRO, 2015).
Já a pena em abstrato máxima permaneceu a mesma de antes, de um ano, fazendo com que o delito continuasse sendo de menor potencial ofensivo, competência do Juizado Especial Criminal. Dessa forma, não houve mudança significativa entre a lesão corporal leve e a violência doméstica depois da introdução do novo tipo penal, caracterizando infração tratada praticamente do mesmo jeito de antes (MONTENEGRO, 2015).
Por outro lado, relativamente à lesão grave ou gravíssima, houve a configuração de aumento da pena em um terço na hipótese de violência doméstica no parágrafo 10 do art. 129. do Código Penal, acrescentado pela lei n. 10.886/2004. Isso significa que no caso da lesão grave não pôde mais haver a suspensão condicional do processo, já que é necessário que a pena mínima abstrata seja igual ou inferior a um ano, e a pena da lesão grave vai de um a cinco anos, ultrapassando um ano quando somado um terço da violência doméstica ao mínimo legal (MONTENEGRO, 2015).
Logo, na prática, a lei n. 9.099/1995 não foi afastada com a inclusão do tipo penal da violência doméstica, apenas teve seu uso atenuado. Mesmo com a ideia da impossibilidade de conciliação em relação à lesão corporal leve defendida por muitos doutrinadores, pois para eles a ação seria pública incondicionada diante da violência doméstica, ainda havia a possibilidade da transação penal. Como visto, outra mudança foi que a suspensão condicional do processo se tornou impossível na lesão corporal grave, justamente pelo aumento de um terço da pena por se tratar de violência doméstica (MONTENEGRO, 2015).
Essa nova implementação ao Código Penal não foi suficiente para cessar as críticas dirigidas ao Juizado Especial. Com essa continuidade dos posicionamentos contrários àquele tratamento da violência doméstica, após a mobilização de várias mulheres e da cada vez mais intensa disseminação desse grave problema pelos meios de comunicação, a lei n. 11.340/2006 foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, representando significativo avanço no combate à violência contra as mulheres no ambiente doméstico e familiar (MONTENEGRO, 2015).
3.2. ORIGEM DA LEI N. 11.340/2006
À lei n. 11.340/2006 foi dado o nome de Lei Maria da Penha devido ao notório caso de violência doméstica ocorrido com a farmacêutica brasileira Maria da Penha Maia Fernandes no ano de 1983. Ela morava em Fortaleza, Ceará, com seu marido que era professor universitário e economista, com quem teve três filhas. Ao longo dos anos, houve várias situações em que o esposo a agrediu e a intimidou, às quais ela não reagiu por ter medo de piorar o comportamento dele e prejudicar também suas filhas. Mesmo assim, Maria da Penha conseguiu denunciá-lo algumas vezes, porém, seu caso foi tratado com indiferença por parte das autoridades (DIAS, 2021).
Outrossim, durante duas vezes ele quase a matou. A primeira vez teve como consequência a sua paraplegia após o homem ter usado uma espingarda, simulando um assalto em 29 de maio de 1983. Não satisfeito com o imenso dano causado à vida da mulher, ele tentou novamente matá-la. Dessa vez, foi durante o banho dela e através de descarga elétrica, alguns dias depois de voltar do hospital (DIAS, 2021).
O caso de Maria da Penha foi tratado pelo Estado Brasileiro de forma extremamente negligente. Esta constatação se explica pela verdadeira vagarosidade da justiça desde o momento da denúncia pelo Ministério Público, que ocorreu mais de um ano depois do início das investigações, até a prisão do agressor, que se deu quase vinte anos após o acontecido, por ter recorrido em liberdade várias vezes e ter sido anulado um julgamento condenatório feito pelo tribunal do júri. Ademais, o ofensor somente ficou preso por dois anos, sendo libertado em 2004 (DIAS, 2021).
Devido ao referido contexto de demora judicial diante de práticas cruéis contra a mulher, esse caso ganhou intensa repercussão mundial. Com isso, houve uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, configurando essa a primeira vez que a OEA acolheu uma denúncia sobre violência doméstica. Isso fez com que iniciassem investigações acerca do prosseguimento do caso na justiça brasileira. Por conseguinte, o Brasil foi condenado pela OEA em 2001 a adotar várias medidas, como criar lei referente a esse tipo de violência, sendo responsabilizado por negligência e omissão perante a violência doméstica (CAMPOS, 2007).
Outra medida imposta foi o pagamento de determinado valor a Maria da Penha, feito em 2008 pelo governo do Ceará em solenidade pública com desculpas. Então, as convenções e os tratados internacionais, os quais o Brasil faz parte, começaram a ser cumpridos pelo país, sejam eles a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW ou Convenção da Mulher) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), citadas na ementa da Lei Maria da Penha (DIAS, 2021).
Dessa maneira, os referidos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para lidar com a violência doméstica foram fundamentais para a criação da referida ferramenta legal. Isso significou a presença de pressões externas para que o Brasil agisse de forma a mudar a situação da violência contra a mulher no país, impulsionado pela tentativa de fazer justiça no caso de Maria da Penha, com a punição do seu agressor, tendo como consequência a criação dessa lei, regulamentando os direitos humanos das mulheres (DIAS, 2021).
Houve intensa divulgação midiática em torno desse caso com a chegada da lei n. 11.340/2006, enfocando no fato de ele ter influenciado diretamente a edição desse mecanismo legal. Desse modo, Maria da Penha passou a palestrar no Brasil sobre a lei e seu tema, além de ter escrito um livro narrando a sua história a caminho da justiça (MONTENEGRO, 2015).
Nesse sentido, além de atender os compromissos internacionais assumidos, a Lei Maria da Penha adveio também com o objetivo de buscar cumprir os preceitos do ordenamento brasileiro, motivo pelo qual reitera Fernandes (2021, p. 52) que “a Constituição Federal prevê a igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, da Constituição Federal) e a família como base da sociedade, com proteção do Estado (art. 226. da Constituição Federal)”, visando garantir melhorias nas interações de gênero e também nas familiares a partir de medidas de combate à violência contra as mulheres (FERNANDES, 2021).
A lei n. 11.340/2006 simbolizou uma enorme conquista para os direitos de todas as brasileiras, representando um ponto histórico crucial para a sua garantia a partir de vários avanços no sistema jurídico brasileiro sobre o que diz respeito à violência contra a mulher. É importante frisar ainda que para Dias (2021, p. 17), ela diz respeito a uma “iniciativa do Poder Executivo. Foi elaborada por um consórcio de entidades feministas e encaminhada ao Congresso Nacional pelo Presidente da República.” Assim, após o projeto de lei que se iniciou em 2002 ter sido enviado ao Congresso em 2004, outras modificações foram feitas até ser sancionada a referida lei em 7 de agosto de 2006 pelo Presidente da República, entrando em vigor em 22 de setembro de 2006 (DIAS, 2021).
Nessa convergência, Montenegro (2015, p. 102) aduz que “através de reivindicações feministas para o combate da violência doméstica contra a mulher” foi que se deu o surgimento da lei n. 11.340/2006, havendo um problema social de difícil solução que requer tratamento diferenciado à mulher vítima de violência, objetivado pela criação da lei. Ultrapassando as medidas de natureza penal, visto que contém também as relacionadas à proteção da mulher, essa lei recebeu mais atenção a essas medidas repressivas penais, inclusive por parte da mídia, já que há uma tendência de focar na criminalidade violenta, o que molda a percepção das pessoas de modo a criar uma realidade ilusória de que punir cada vez mais intensamente seria a solução de vários problemas sociais (MONTENEGRO, 2015).
Muitas críticas foram dirigidas à referida lei, que teve sua constitucionalidade questionada ao se debater sobre suposto desrespeito ao princípio da igualdade devido ao tratamento mais severo para os homens, não aplicando a lei n. 9.099/95 nos casos cujas vítimas são mulheres. Entretanto, o tratamento diferenciado é imprescindível para prevenir e combater a violência doméstica, pois há a hipossuficiência da mulher e a quantidade de casos dessa violência é muito elevada, não caracterizando inconstitucionalidade (FERNANDES, 2021).
Nessa perspectiva, Montenegro (2015) ressalta que alguns defendem que a lei n. 11.340/2006 é discriminatória, uma vez que existem distintas implicações em relação a uma mesma conduta, o que configuraria inconstitucionalidade por causa da impossibilidade de aplicação da lei se o homem for vítima da violência. Em contrapartida, outros argumentam que a lei pode tratar os desiguais de maneiras diferentes em ocasiões específicas, acreditando na sua constitucionalidade. A autora afirma ainda que ambas as visões são admissíveis e que a solução seria mudar a lei para que englobasse todas as pessoas vítimas da violência doméstica, não importando o gênero.
Em síntese, a Lei Maria da Penha foi a primeira lei brasileira que surgiu com o intuito de mudar a forma de tratamento desse impasse da violência doméstica e familiar contra a mulher, atendendo tanto os compromissos constitucionais quanto as muitas recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Esse instrumento legal da legislação especial definitivamente mudou o cenário jurídico brasileiro, porque correspondeu a inovações em diversas vertentes no tratamento da violência contra a mulher no Brasil, protegendo especificamente as mulheres vítimas de violência como nunca feito (DIAS, 2021).
3.3. ALGUMAS INOVAÇÕES CONFERIDAS PELA LEI N. 11.340/2006
Atualmente, são várias as leis que auxiliam o combate à violência contra a mulher em diferentes áreas da sociedade. Apesar disso, a Lei Maria da Penha é o diploma legal de referência existente no Brasil que foi resultante da necessidade de olhar para a violência contra a mulher de maneira mais completa, considerando não somente as punições dos agressores, mas também oferecendo a essencial proteção e assistência social da vítima. Ademais, essa lei n. 11.340/2006 versa sobre a preservação dos direitos patrimoniais e familiares da ofendida e sobre melhoras no funcionamento jurisdicional, além da disposição de medidas direcionadas ao ofensor (CERQUEIRA et al., 2015).
A Lei Maria da Penha prevê a garantia de todos os direitos a todas as mulheres nos artigos 2º e 3º, independentemente de qualquer circunstância pessoal, reconhecendo a responsabilidade de toda a sociedade e do Estado Brasileiro de combater a violência contra a mulher e de garantir os seus direitos humanos. Ela tipifica a violência doméstica e familiar contra a mulher, conceituando-a no art. 5º, incisos I, II e III, como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: no âmbito da unidade doméstica [...]; no âmbito da família [...]; em qualquer relação íntima de afeto [...]” (BRASIL, 2006).
É pertinente destacar que o art. 6º declara que a violência doméstica e familiar contra a mulher é uma violação dos direitos humanos (BRASIL, 2006). Esse dispositivo contribuiu para o desenquadramento desse crime na lei n. 9.099/1995, que, como visto, era considerado de menor potencial ofensivo, sendo tratado nos Juizados Especiais Criminais, o que contribuiu para um cenário de banalização dessa violência por muitos anos. Nessa lógica, por ser uma violação dos direitos humanos, essa violência nunca deveria ter sido considerada de menor lesividade. Então, foi retirada a competência dos Juizados perante a violência doméstica e familiar contra a mulher, o que pode ser observado no art. 41. dessa lei (BRASIL, 2018).
Exatamente em função disso que deve existir a instauração do inquérito policial, não cabendo mais o uso do termo circunstanciado. Assim, uma das principais alterações foi esse afastamento expresso do Juizado Especial Criminal para crimes desse formato. Esse fato assevera a gravidade de tal conduta ilícita e exprime a decorrente violação dos direitos humanos das mulheres (BAUER, 2019).
Um outro ponto relevante é que o conceito de mulher que a lei n. 11.340/2006 apresenta não é o biológico, mas sim o jurídico. Ele abrange todas as pessoas que se identificam como sendo do gênero feminino, independente das suas características biológicas. Por isso, a Lei Maria da Penha tem legitimidade de ser aplicada a todas as pessoas que têm identidade de gênero de mulher, como mulheres trans e travestis, não somente englobando as que nascem com traços físicos femininos (FERNANDES, 2021).
É oportuno salientar que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada nos casos de violência contra a mulher entre pessoas sem vínculo familiar, como empregador e empregada doméstica, por circundar o ambiente doméstico; nas circunstâncias em que elas se reúnam eventualmente; quando não envolve coabitação, desde que haja relação próxima e convivência presente ou passada, como entre namorados; e até mesmo após o fim do relacionamento, desde que tenha conexão com a violência, independentemente de orientação sexual, compreensão do art. 5º. Então, fica evidente a consolidação da abrangência dessa lei (BRASIL, 2006).
Dessa forma, a lei n. 11.340/2006 tem aplicabilidade em todos os casos enquadrados no seu art. 5º desde que a vítima seja do gênero feminino. Não importa quem seja o agressor, homem ou mulher, devendo haver a configuração da conexão doméstica ou familiar entre os envolvidos para que essa lei possa ser utilizada (MONTENEGRO, 2015).
Já no art. 7º, a lei enumera as formas, sejam elas física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, explicando-as como presente na subseção 2.3 deste trabalho. Esse dispositivo esclareceu o modo de ocorrência dos vários tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher, facilitando seu entendimento e reconhecimento pelas pessoas (BRASIL, 2006).
No art. 8º, há a reiteração da responsabilidade das várias entidades da sociedade, sejam elas parte do governo ou não, diante do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Para isso, são citadas algumas medidas de prevenção que englobam ações que visam desde o melhoramento no atendimento das mulheres vítimas de violência até a conscientização tanto de estudantes quanto dos indivíduos da sociedade em geral sobre a importância do combate a essa violência (BRASIL, 2006).
Conforme previsto nos art. 9º ao 12-C dessa lei, há o detalhamento da implementação de assistência às ofendidas e de mudanças no seu atendimento pelas autoridades policiais. Duas das medidas mais importantes são a manutenção do vínculo trabalhista da vítima de violência doméstica e familiar no prazo máximo de seis meses, caso seja preciso se ausentar do trabalho, o que garante a sua segurança financeira, visto que continuará sendo remunerada, e a determinação de se priorizar a criação de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), de Núcleos Investigativos de Feminicídio e de equipes especializadas para o atendimento e a investigação de violências graves contra a mulher (BRASIL, 2006).
Ainda nessa conjuntura, merece destaque também o tocante à necessidade de a autoridade policial proceder à remessa do pedido da ofendida ao juiz em até 48 horas para que se concedam as medidas protetivas de urgência à mulher em situação de violência e também dos autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público no prazo legal, além da possibilidade de afastamento imediato do agressor do lugar onde convivem caso a vítima ou seus dependentes estejam em perigo atual ou iminente de vida ou relativo à integridade física ou psicológica, acrescida pela lei n. 13.827/2019, sendo a parte psicológica adicionada pela lei n. 14.188/2021. Todas essas medidas contribuem para propiciar a segurança dos afetados pela violência ao haver a denúncia, incentivando-a (BRASIL, 2006).
O surgimento dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFMs) é uma providência extremamente significativa nesse contexto. Eles apresentam competência cível e criminal de acordo com o art. 14. da Lei Maria da Penha, abarcando ação de divórcio ou de dissolução de união estável, segundo o art. 14-A, facilitando, assim, a resolução da situação. Nessa direção, a vítima deve ser informada pela autoridade policial sobre todos os seus direitos, incluídas essas possibilidades, e se a violência começar depois do ajuizamento da ação de divórcio ou de dissolução de união estável, a ação terá preferência de tramitação, questões adicionadas pela lei n. 13.894/2019, nos art. 11, inciso V, e 14-A, § 2º (BRASIL, 2006).
Existe a previsão da possibilidade de renúncia à representação apenas diante do juiz e desde que seja antes de recebida a denúncia, em relação às ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, o que será feito em audiência determinada para tal propósito, segundo o disposto no art. 16, devendo ser ouvido o Ministério Público. Esse dispositivo dificulta que possíveis intimidações por parte do ofensor influenciem nas decisões da vítima, o que geralmente acontecia e a movia com base no medo de sua situação piorar (BRASIL, 2006).
Como previsto no art. 17, fica proibida a aplicação de penas pecuniárias, de entrega de cesta básica ou de multa nos delitos referentes à violência doméstica e familiar contra a mulher. Esse fato reafirma o intuito da lei de enrijecer as penas aplicadas (BRASIL, 2006).
Entre os art. 18. ao 24-A, a lei versa sobre as medidas protetivas de urgência, que corresponderam a uma grande evolução na proteção das vítimas para que prossigam com a sua rotina de vida de forma segura. Desse modo, no prazo de 48 horas após recebido, o juiz decidirá acolher ou não o pedido, podendo determinar que a vítima seja encaminhada ao órgão de assistência judiciária, se preciso, também para tratar de algumas questões cíveis pendentes adjacentes à violência e relacionadas à ruptura do relacionamento, o que foi acrescido pela lei n. 13.894/2019, além da possibilidade de decidir que a arma de fogo na posse do ofensor seja imediatamente apreendida, hipótese acrescentada pela lei n. 13.880/2019. Ademais, o juiz deve informar a situação ao Ministério Público (BRASIL, 2006).
Entre as várias diretrizes acerca das medidas protetivas, se sobressaem a possibilidade de a concessão da medida pelo juiz se dar a partir de pedido da ofendida ou de requerimento do Ministério Público; a viabilidade da concessão imediata da medida, desde que ciente o Ministério Público; a substituição da medida, seja apenas uma ou várias, por outra mais eficaz, a qualquer momento caso haja necessidade; sua revisão ou concessão de novas pelo juiz, se a vítima pedir ou o Ministério Público requerer, ouvido esse último; a permissão da prisão preventiva do ofensor em qualquer momento do inquérito policial ou da instrução criminal; e o dever de cientificar a ofendida sobre a situação processual do agressor, o qual será intimado ou notificado por outrem (BRASIL, 2006).
Ainda sobre os referidos artigos, há medidas protetivas de urgência dirigidas ao ofensor. Algumas se concretizam ao se suspender a posse ou restringir o porte de armas; ao agressor ser afastado do lugar de convívio com a vítima; quando é determinada distância mínima entre ele e a vítima, os seus familiares e as testemunhas, ficando proibido que se aproximem; ao haver a vedação de qualquer contato entre eles por meios de comunicação; ao ser impedido de frequentar certos lugares; podendo ainda ser determinado que as visitas a seus dependentes menores sejam limitadas ou suspensas e fixação de alimentos. As medidas podem ser aplicadas ao ofensor pelo juiz de imediato, juntas ou isoladamente (BRASIL, 2006).
Acrescentou-se os incisos VI e VII ao art. 22. através da lei n. 13.984/2020. Essas adições estabeleceram as medidas de o agressor frequentar centros de reabilitação e reeducação e de ele ter acompanhamento psicossocial, que reafirmam a importância da conscientização das pessoas para desconstruir suas enraizadas percepções de mundo centradas na desigualdade de gênero e na violência, quebrando esse ciclo vicioso de paradigmas sobre papéis sociais de gênero que tendem a gerar cada vez mais violência (BRASIL, 2006).
Já referente à vítima, cabem outras medidas como o seu direcionamento e de seus dependentes a determinados programas para que sejam atendidos e protegidos; o distanciamento da ofendida do lar ou a volta deles para o domicílio caso o agressor já tenha sido afastado; a separação de corpos; e, mais recentemente incluída pela lei n. 13.882/2019, a matrícula dos dependentes da vítima em escola mais perto do seu lar ou sua transferência para ela, ainda que não tenha vaga. Todas elas auxiliam na proteção da vítima e de seus familiares, que se encontram diante de delicadas circunstâncias implicadas pela violência de gênero (BRASIL, 2006).
Podem ser estabelecidas de forma liminar pelo juiz outras medidas com o objetivo de preservar o patrimônio do casal. Entre elas, estão: restituir à ofendida os bens que o ofensor subtraiu sem a sua permissão e suspender as procurações outorgadas pela vítima ao ofensor, além de quando ficam vedadas temporariamente a compra, a venda e a locação de bens comuns, exceto se o juiz autorizar. Dessa maneira, a ofendida não corre o risco de ter suas finanças e bens extinguidos pelo agressor (BRASIL, 2006).
Um último aspecto relacionado às medidas protetivas de urgência são as consequências do seu descumprimento. Antes da inclusão do art. 24-A pela lei n. 13.641/2018, quando o ofensor descumpria uma medida, era aplicada a pena da infração de desobediência, art. 330. do Código Penal, mesmo já sendo reconhecida como conduta atípica pela jurisprudência (BAUER, 2019). A partir dessa previsão expressa na Lei Maria da Penha, passou-se a ter o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, cuja pena é de detenção de três meses a dois anos, representando a regulamentação do cenário em que há o descumprimento de decisão judicial que defere as referidas medidas (BRASIL, 2006).
Algumas outras questões pertinentes à observância são as necessidades de o Ministério Público intervir nos casos que envolvam a violência doméstica e familiar contra a mulher se ele não for parte, seja na esfera cível ou criminal, consoante o art. 25, e da presença de advogado durante todo o processo, sendo dispensável somente no momento de pedir as medidas protetivas de urgência, de acordo com o art. 27, além da garantia à ofendida do acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, presente no art. 28. (BRASIL, 2006).
Outrossim, existem a competência da equipe de atendimento multidisciplinar de trabalhar com a vítima, o ofensor e os familiares no sentido de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, no art. 30, e as competências cível e criminal das varas criminais de onde não existem Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no tangente aos pleitos interligados a essa violência, tendo tramitação prioritária, previstas no art. 33. (BRASIL, 2006).
Entre as disposições finais, estão a previsão da possibilidade de os entes federativos instaurarem providências como a criação de centros de atendimento, casas-abrigos, campanhas e centros de reabilitação, todas voltadas ao combate da violência doméstica e familiar contra a mulher, concordante ao art. 35; o fornecimento de informações para que essas estatísticas constem na base de dados da Justiça e o dever de o juiz agir para que se registre a medida protetiva de urgência em banco de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com a intenção de fiscalizá-las, efetivando-as, segundo os artigos 38 e 38-A, acrescido pela lei n. 13.827/2019; e a vedação da aplicação da lei n. 9.099/1995 na hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher, no art. 41, como já mencionado (BRASIL, 2006).
Além dessas, há a possibilidade de prisão preventiva no caso de violência doméstica e familiar contra a mulher para fazer com que as medidas protetivas sejam efetivadas, adicionada pelo art. 42. da Lei Maria da Penha ao art. 313. do Código de Processo Penal, passando a ter nova redação a partir da lei n. 12.403/2011; a configuração de agravante da pena quando houver essa violência se não constituir ou qualificar o crime, mudando o art. 61. do Código Penal através do art. 43. da lei n. 11.340/2006; e a consolidação da pena de detenção de três meses a três anos no delito de violência doméstica no parágrafo 9º do art. 129. do Código Penal, aumentando-a em um terço se a vítima for portadora de deficiência no parágrafo 11, no art. 44. da referida lei (BRASIL, 2006).
Já o art. 45. mudou o art. 152. da Lei de Execução Penal (lei n. 7.210/84) e versa sobre a admissibilidade de o juiz condenar o ofensor a comparecer obrigatoriamente a programas de recuperação e reeducação, sedimentando a essencialidade de também existirem medidas mais profundas que visem à formação de novas visões para que as atitudes das pessoas sejam diferentes. Isso pode condizer com a efetivação de real mudança na sociedade, posto que a reintegração desses indivíduos, os quais várias vezes nem sequer reconhecem suas condutas como incorretas, se dará no sentido de modificações comportamentais (DIAS, 2021).
A consequência mais grave que a violência doméstica e familiar pode implicar é o feminicídio, que consiste em matar a mulher devido à condição de ser mulher. Sua inclusão ocorreu através da lei n. 13.104/2015, que aditou o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, no inciso VI, parágrafo 2º do art. 121. do Código Penal, e o seu parágrafo 2º-A, no qual constam a violência doméstica e familiar ou as práticas de se menosprezar ou discriminar a mulher por ser do seu sexo como possíveis requisitos para configurar o feminicídio, também prevendo aumento de pena em algumas situações específicas e incluindo-o na lista de crimes hediondos (art. 1º da lei n. 8.072/1990) (BRASIL, 2015).
A partir daí, passou-se a firmar pena maior ao assassinato de mulheres por serem do sexo feminino, denominando-se feminicídio. Assim, essa foi uma das inovações que, mesmo não estando na lei n. 11.340/2006, merecem ênfase devido a sua significância diante do contexto de alarmantes índices de violência contra a mulher no Brasil, representando outro mecanismo que visa a punir os responsáveis de modo mais severo.
Vale ressaltar que houve outras modificações feitas em 2021 que colaboram para o combate à violência de gênero. Como exemplo, a lei n. 14.132/2021 incluiu o art. 147-A no Código Penal, criando o delito de perseguição com uma das hipóteses de aumento de metade da pena quando envolver violência contra a mulher no seu inciso II do parágrafo 1º (BRASIL, 2021b). Já a lei n. 14.149/2021 contribui para o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher ao regulamentar o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, aplicado à vítima dessa violência de preferência pela Polícia Civil no momento de registro da ocorrência, embasando a atuação das autoridades através do histórico doméstico de riscos que rodeiam essas vítimas para que possa assegurar a proteção de todos os atingidos pela violência (BRASIL, 2021c).
Nesse sentido, a lei n. 14.188/2021 promoveu as adições do parágrafo 13 no art. 129. do Código Penal, que corresponde à mudança da modalidade da pena da lesão corporal simples contra a mulher por causa da condição do sexo feminino, e do art. 147-B, com a criação do tipo penal de violência psicológica contra a mulher, ambas pelo art. 4º dessa lei. Contém também o programa Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica, que figura outra medida para o impedimento desse tipo de violência ao prever a denúncia através da identificação em determinados locais do sinal X escrito de preferência em vermelho na mão das vítimas como um código para facilitar a comunicação da violência às autoridades, que as fornecerão auxílio e segurança (BRASIL, 2021e).
Um importante passo em direção à construção de uma nova cultura baseada na não violência foi trazido pela lei n. 14.164/2021. Ela adicionou a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica e prevê a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher todos os anos em março, por meio de mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei n. 9.394/1996). Tais providências objetivam o aprendizado do panorama da violência contra a mulher, conscientizando não somente os futuros adultos desde o início da sua vida sobre a importância de combatê-la e de prezar pela igualdade de gênero, mas também abrindo espaço para que esses temas sejam mais debatidos tanto nas escolas como nos lares, o que incentiva múltiplas reflexões entre os estudantes, os professores e as famílias (BRASIL, 2021d).
Assim sendo, fica notável que a lei n. 11.340/2006 apresenta a finalidade de promoção da igualdade material entre homem e mulher, através de disposições no sentido de proteger as vítimas e punir os agressores. Com isso, o Estado age com o intuito de resguardar a família para que cumpra a sua obrigação proveniente da Constituição perante a sociedade, o que determina a abrangência dessa lei (MONTENEGRO, 2015).
Apesar das várias inovações propiciadas pela Lei Maria da Penha e por outros mecanismos legais no Brasil, a violência contra a mulher ainda acontece com assustadora frequência. Contudo, Dias (2021) observa que se começou a edificar novas ideias a partir das muitas discussões promovidas pela chegada da lei n. 11.340/2006, desvinculando a existência da mulher à satisfação dos interesses do homem e passando a percebê-la como um ser independente. Ainda assim, há diversos tópicos práticos que precisam ser identificados e modificados para que ocorra uma significável melhora da situação na realidade.
3.4. ALGUNS ASPECTOS PRÁTICOS QUE CIRCUNDAM A LEI N. 11.340/2006
Na realidade, existem muitas questões a serem analisadas perante o estudo da violência contra a mulher, visto que as mudanças da lei n. 11.340/2006 propiciaram muitos benefícios, mormente o tangente à prevenção e à proteção da mulher, mas não de forma profunda por sua parte penal não ser eficiente. Isso se dá em virtude da cultura presente na sociedade, a qual enraíza modos de pensar que incentivam ideias de desigualdade de gênero e geram uma falsa percepção de que a aplicação da lei penal seja a resposta para resolver os problemas sociais, fatores que tendem a perpetuar a violência (MONTENEGRO, 2015).
Embora a Lei Maria da Penha seja considerada a terceira melhor do mundo sobre o tema pela Organização das Nações Unidas (ONU) (DIAS, 2015), ela não é suficiente para diminuir os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Esse fato se explica pela formação estrutural da sociedade em que está extremamente presente a violência contra a mulher, assentada em crenças que reforçam papéis irrealistas de gênero, alastrando a desigualdade entre homem e mulher. Assim, por ser um problema cujas raízes são muito profundas, o Direito Penal não consegue agir na melhora da situação, mesmo que haja a impressão contrária pela maioria das pessoas (MONTENEGRO, 2015).
A lei n. 11.340/2006 apresenta caráter muito mais civil do que penal por conter muito mais artigos direcionados à segurança, à prevenção e à assistência das vítimas do que penais, tendo natureza híbrida. Devido à influência das mídias sociais, isso não é reconhecido pela maior parte da população, pois se propaga às massas a ideia de que a solução verdadeira e eficaz do problema da violência contra a mulher advém da punição, que na realidade não tem a capacidade de penetrar na essência do conflito para que realmente ocorra transformação e resolução. Então, há uma solução apenas simbólica por parte da justiça criminal e, pela facilidade, a aplicação de penas é muito mais recorrente do que o investimento em prevenção ou educação (MACHADO; MELLO, 2013).
Nessa perspectiva, Campos (2007) observa que o Estado utiliza a ilusão da premissa de que a criação de instrumentos legais penais proporciona mudanças efetivas para desviar a atenção da população da sua omissão diante do dever de assegurar os direitos fundamentais, já que essa seria uma alternativa mais vantajosa financeiramente para ele, o que contribui para a intensificação dos problemas sociais mais graves existentes. Tal conjuntura dissemina de certa forma o sentimento de satisfação nas pessoas por causa do fato de leis começarem a ser válidas incontinenti, aparentando ter como consequências o fim da impunidade e a resolução do impasse pelo sistema punitivo retributivo.
Por conseguinte, a aplicabilidade da lei penal até mesmo pode piorar a situação, perpetuando a violência contra a mulher, dado que “muitas vezes, a intervenção estatal penal é mais danosa que a sua ausência” (CAMPOS, 2007, p. 284). Na prática, grande parte das vítimas não desejam ter o agressor preso, geralmente com a intenção de que ele seja liberto para retomarem a relação, seja por dependência financeira ou emocional ou simplesmente pela vontade de dar uma nova chance, esperando que ele mude o seu comportamento. Esse contexto faz com que a vítima se sinta culpada pelo acontecido com o ofensor e arrependida de tê-lo colocado naquela situação, como se ela fosse a agressora (MONTENEGRO, 2015).
Montenegro (2015) aponta que quando há a prisão do agressor, todos os que dependem economicamente dele são prejudicados, precisando estreitar os gastos das necessidades básicas. É uma consequência que afeta negativamente não só a mulher vítima, mas também toda a vida da família, incluindo filhos e outros, que devem se ajustar às novas condições. Toda essa lógica leva a vítima a fazer o que pode para tentar minimizar os danos ao agressor, inclusive mentir para a justiça, desincentivando-a a denunciar caso a violência aconteça novamente.
Como há muitos sentimentos envolvidos nos casos de violência contra a mulher, o sistema penal não é capaz de realmente resolver esses conflitos por tratá-los de forma impessoal, uma vez que não trabalha com sua estrutura nem suas causas, mas sim tenta pôr um fim através da imposição de pena a um culpado. Se a lei penal não garante o impedimento da perpetuação do ciclo vicioso dessa violência, muitas vezes piorando ainda mais o conflito, seu enrijecimento não causa melhora, não havendo diminuição dos casos nem das adversidades enfrentadas, sem satisfazer a real demanda da vítima (MONTENEGRO, 2015).
Diante da ineficiência da justiça criminal nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, há a necessidade de lidar com essas questões a partir de uma visão amplificada e humanizada sobre a vida das partes que caracterizam a base do conflito para poder tratar suas raízes de forma concreta e aprofundar o trabalho nos reais sentimentos conjunturais. Portanto, o fato de essa violência se dá entre pessoas que têm estreito vínculo afetivo e que provavelmente voltarão a conviver por causa dos filhos, até compartilhando a mesma habitação, requer a adoção de formas de enfrentamento que incidam sobre as estruturas do problema, adentrando os interesses interpessoais dos envolvidos para chegar a um maior entendimento dos seus pormenores e a uma possível resolução eficiente (MONTENEGRO, 2015).
Desse modo, é essencial o aprofundamento em outras maneiras de tratar a violência doméstica e familiar contra a mulher para que as disparidades sejam realmente sanadas. Montenegro (2015) reforça que as medidas preventivas e educativas e o diálogo entre as pessoas são as principais ferramentas para que aconteçam transformações psíquicas com o intuito de mudar a realidade, amenizando os problemas de gênero. Assim, ao Direito Penal não se atribui evoluções no âmbito conjuntural da sociedade, posto que “ele foi sempre utilizado para reprimir a mulher” (MONTENEGRO, 2015, p. 193).
Ainda na visão de Montenegro (2015), deve-se focar nos aspectos cíveis da lei, os quais fornecem opções benéficas ao contrário dos aspectos penais. O sistema penal não é apropriado para ser a primeira tentativa de atenuar os conflitos domésticos e familiares, porque eles exigem um tratamento mais pessoal e enraizado para que verdadeiras soluções sejam atingidas através do reconhecimento das particularidades das histórias dos envolvidos e das suas reais necessidades, sendo prioritariamente melhor optar pelo diálogo e pela conciliação. Logo, “não será através do Direito Penal que a mulher encontrará a proteção e a igualdade, pois a mudança de comportamento e de mentalidade vem através da educação e de ações preventivas” (MONTENEGRO, 2015, p. 198).
Dias (2021) ainda acrescenta que cabe também aos membros do sistema judicial que têm relação com os casos de violência contra a mulher agir no sentido de incentivar a sociedade a promover mudanças no que se refere à assistência dos envolvidos no conflito. Ressalta que isso poderia ser feito através de medidas como a criação de grupos reflexivos de gênero e de justiça restaurativa, a fim de solucionar o problema de modo concreto, transformando tal cenário de violência.
Mesmo com diversas mudanças no âmbito jurídico da sociedade brasileira, ainda há um enorme caminho a ser percorrido em direção à diminuição da violência contra a mulher devido à falta da implantação de métodos eficientes que tratem esse conflito profundamente, ultrapassando a lei penal para realmente promover mudanças nessa conjuntura de maneira a impedir sua insistente ocorrência. Não obstante a realidade da violência contra a mulher já fosse gravíssima, é irrefutável que esse cenário foi significativamente impactado de forma negativa com o acontecimento da pandemia de covid-19, o que será abordado no último capítulo.