1 DIREITO DE PROPRIEDADE DE ARMAS NO BRASIL
Quando se fala em armas, o Direito pula pela janela.
O Presente artigo deve ser lido com o devido cuidado, tendo o operador do Direito sempre em sua mente a frase acima.
Isto porque, conceitos jurídicos básicos e institutos jurídicos que pré-datam inclusive o próprio direito brasileiro quando aplicados à situação envolvendo armamentos, muitas vezes têm seu conteúdo normativo substituído por simples ideologia, o que dificulta sobremaneira o trabalho dos operadores do direito que confrontam a ideologia desarmamentista.
Dito isso, temos que no Brasil se operou com a entrada em vigor da lei 10.826/2003, a qual se apelidou de estatuto do desarmamento (ao contrário de outros atos normativos, o nome estatuto do desarmamento não se encontra no texto da lei, nem em sua exposição de motivos, sendo o referido apelido adicionado às publicações da legislação de modo a lhe atribuir sentido não contido no texto) a alteração das condições de registro de armas que antes era caracterizado como licença, e portanto definitivo, para autorização, ato considerado precário, sujeito a constante renovação.
Tal alteração de paradigma normativo foi objeto de análise por parte do Supremo Tribunal Federal que através da ADI 3112, fixou entendimento, utilizando-se de artifícios retóricos, como por exemplo a importação de conceitos exógenos ao direito brasileiro, e utilizando como referência jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha (em evidente demonstração da veracidade da frase contida na abertura deste artigo), no sentido de que não há direito adquirido à posse de armas no Brasil.
Ocorre que a eventual perda do direito à posse não afasta totalmente o direito à propriedade, em razão de que o cidadão que perde o direito à posse deve ser indenizado em valor prefixado em lei pela perda da propriedade, nos termos dos artigos 31 e 32 da Lei 10826, repita-se, maliciosamente apelidada de Estatuto do Desarmamento.
O que justifica a desconsideração do valor real do armamento indenizado é o fato de que ao cidadão é concedido prazo na lei para que este atenda aos seus requisitos, ou, em não podendo, ou não querendo, transfira tal armamento a terceiro que tenha possibilidade ou interesse de recebê-lo.
Temos, portanto, uma situação que se aproxima da justiça uma vez que ao cidadão é viabilizada a liquidação por valor real do bem, sendo a indenização por valor simbólico decorrente de sua desídia quer em renovar o seu registro quer em viabilizar a negociação de sua venda a terceiro.
Isto significa dizer que mesmo em havendo restrição à posse através de lei, tal restrição não esvazia completa e imediatamente o direito de propriedade da arma de fogo, direito este sobre o qual não se debruçou o STF na ADI 3112.
De fato, o direito à propriedade sobre armas de fogo foi recentemente reafirmado por jurisprudência[1] do STJ que entendeu ser a arma de fogo bem penhorável, operando se a penhora pelo valor de mercado do bem, havendo apenas restrição para a transferência deste, devendo o adquirente preencher as condições da lei para obter a posse.
Assim, na legislação brasileira temos reconhecido o direito à propriedade sobre arma de fogo, sendo, porém, um direito mitigado por restrições laterais à sua posse que podem levar a necessidade involuntária de liquidação do bem.
2 O FATO DO PRINCIPE
O fato do príncipe constitui instituto jurídico que antecede até mesmo ao direito brasileiro e representa em apertada síntese ato de Império da administração (Lato sensu) que de forma indireta afeta de maneira relevante negócios jurídicos de terceiros.
Tal instituto está positivado na legislação brasileira especialmente na lei de licitações, onde é aplicado como causa justificadora de renegociação contratual entre o particular e a administração, com vistas a restaurar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
O exemplo mais comum de fato do príncipe constitui na alteração de alíquotas de impostos que acabam por, de forma indireta, afetar o custo do cumprimento contratual sendo válida a sua aplicação mesmo quando a administração responsável pela alteração de alíquota não é a mesma com a qual o particular possui relação contratual.
Hely Lopes Meirelles [2] aponta a definição de fato do príncipe, bem como as consequências de sua ocorrência:
Fato do príncipe é toda determinação estatal, positiva ou negativa, geral, imprevista e imprevisível, que onera substancialmente a execução do contrato administrativo. Essa oneração, constituindo uma álea administrativa extraordinária e extracontratual, desde que intolerável e impeditiva da execução do ajuste, obriga o Poder Público contratante a compensar integralmente os prejuízos suportados pela outra parte, a fim de possibilitar o prosseguimento da execução, e, se esta for impossível, rende ensejo à rescisão do contrato, com as indenizações cabíveis.
O fundamento da teoria do fato do príncipe é o mesmo que justifica a indenização do expropriado por utilidade pública ou interesse social, isto é, a Administração não pode causar danos ou prejuízos aos administrados, e muito menos a seus contratados, ainda que em benefício da coletividade.
Quando isso ocorre, surge a obrigação de indenizar. O fato do príncipe, caracterizado por um ato geral do Poder Público, tal como a proibição de importar determinado produto, só reflexamente desequilibra a economia do contrato ou impede sua plena execução. Por isso não se confunde com o fato da Administração, que incide direta e especificamente sobre o contrato [...]
Assim como se vê o instituto jurídico do fato do príncipe apesar de positivado no direito brasileiro para situação específica, trata-se de conceito mais amplo, apto a descrever fenômeno jurídico o qual, caso venha a se confirmar os julgamentos da ADIs 6.675. 6.677 e 6.676, que pretende tornar ilegal os decretos presidenciais que permitiram a aquisição de armas em calibres antes considerados restritos, terá se consumado.
Tal consumação do fato do príncipe afetará de forma imediata centenas de milhares, quiçá milhões de proprietários de armamentos que de forma retroativa terão seu direito à propriedade completamente esvaziado por ato unilateral do poder público, dada a existência de prazo para regularização e à inviabilização de transferência a terceiro, operando se verdadeira desapropriação indireta dos referidos armamentos.
3 A DESAPROPRIACAO INDIRETA
A desapropriação indireta também é conceito jurídico reconhecido no direito brasileiro, que se constitui de situação na qual a Administração acaba por restringir de forma tão agressiva a possibilidade de uso e gozo do bem, que se considera ter havido objeção a própria propriedade em si.
Marcelo Alexandrino[3] apresenta clara definição do instituto, apontando que este se opera tanto quando o poder publico efetivamente se apropria totalmente de um bem, quando lhe aplica tantas restrições de uso e gozo que acaba por esvaziar completamente o conteúdo econômico da propriedade:
Desapropriação indireta é o fato administrativo por meio do qual o Estado se apropria de bem particular, sem observância dos requisitos da declaração e da indenização prévia.
Na desapropriação indireta, repudiada pela doutrina, o Estado apropria-se de um bem particular sem o devido processo legal: não declara o bem como de interesse público e não paga a justa e prévia indenização.
[...]
É também reconhecida pela jurisprudência a ocorrência de desapropriação indireta nas situações em que o Poder Público impõe a determinado bem particulares restrições tão extensas que resulta inteiramente esvaziado o conteúdo econômico da propriedade. A Prof. Maria Sylvia explica essa hipótese:
(destaques no original):
Às vezes, a Administração não se apossa diretamente do bem, mas lhe impõe limitações ou servidões que impedem totalmente o proprietário de exercer sobre o imóvel os poderes inerentes ao domínio; neste caso, também se caracterizará a desapropriação indireta, já que as limitações e servidões somente podem, licitamente, afetar em parte o direito de propriedade.
Em suma, para restar configurada a desapropriação indireta, impõe-se que sejam preenchidos os seguintes requisitos: (a) que o bem tenha sido incorporado ao patrimônio do Poder Público, ou que determinada limitação imposta por este ao uso do bem resulte no completo esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade; e (b) que a situação fática seja irreversível.
Importante apontar que no caso de desapropriação, quer direta, quer indireta, é garantia constitucional a indenização integral do valor do bem, sendo incabível indenizações simbólicas de qualquer tipo, nos termos do seu Artigo 5º, XXIV.
No presente caso a ocorrência de fato do príncipe, representado pela imediata e retroativa limitação da posse de qualquer armamento de calibre anteriormente considerado como restrito representa efetiva desapropriação indireta em razão de que, apesar de não retirar expressamente a propriedade sobre o armamento, torna impossível a manutenção da sua posse, havendo ainda a impossibilidade fática de transferência do referido bem a terceiros.
Tal impossibilidade fática se constitui no fato de que em se tornando o armamento de calibre restrito, simplesmente não haverá a quem transferir a propriedade uma vez que conforme já citado é requisito para transferência que o comprador reúna as condições da lei.
Ademais há outro fator de extrema relevância que diferencia esta situação das alterações legislativas anteriores, quer seja o prazo concedido ao cidadão para solucionar a ausência dê cumprimento dos requisitos legais.
Historicamente, quando há perda dos requisitos da posse, em maior ou menor grau o cidadão contribui com a situação de descumprimento dos requisitos legais para a sua manutenção.
Ou este perde condições objetivas da posse (perdendo a idoneidade por exemplo), ou por desídia não realiza a renovação de seu registro a tempo, sendo, portanto, contribuidor para a situação em que a única alternativa é o recebimento da diminuta indenização pré-fixada pelo Estado.
Porém no caso de perda das condições para a manutenção da posse em decorrência de fato do príncipe, o cidadão não contribuiu de qualquer maneira para tal perda, não havendo ato comissivo ou omissivo de sua parte que tenha contribuído de qualquer forma para a revogação de sua posse.
Trata se de efeito colateral de ato unilateral e imprevisível por parte da administração (em sentido lato), que esvazia completamente o conteúdo econômico da propriedade do cidadão que se submeteu integralmente aos requisitos legais, seguindo ordenamento jurídico que possuía presunção de legitimidade, o qual inclusive passou pelo crivo do legislativo antes de ter sua validade questionada pelo judiciário, recentemente alçado à categoria de poder moderador.
4 A CONSEQUENCIA DA INDENIZAÇÃO INTEGRAL
Como se verifica, em caso de o Supremo Tribunal Federal decidir pela procedência das ADIs, lançando na ilegalidade grande universo de armamentos em posse dos particulares, estaremos diante da ocorrência de desapropriação indireta dos referidos bens, sendo necessário que o estado os indenize de forma integral.
Note-se que mesmo que se conceda prazo para a transferência dos armamentos na decisão que torne determinados calibres como restritos, ainda assim opera-se a desapropriação indireta pois findo o prazo não haverá nenhum ente apto a permanecer com os armamentos destes calibres a não ser o próprio Estado, ou seus agentes.
Portanto eventual concessão de prazo, por apenas adiar o efeito final de transferência de tais armamentos ao Estado importa ao fim e ao cabo na ocorrência de desapropriação indireta que demanda a indenização integral dos armamentos.
Tal situação tem o potencial de gerar um passivo bilionário ao Estado, uma vez que temos na atualidade cerca de 600 mil CACs (Colecionadores Atirados e Caçadores), os quais em sua maioria possuem mais de um armamento em calibres antes considerados restritos, especialmente o 9mm.
Isto porque quando foi alterada a classificação de calibres restritos, os armamentos disponíveis para o cidadão no mercado nacional, especialmente no anêmico calibre 380, possuíam valores de venda muito superiores ao armamento de maior sucesso da fabricante nacional Taurus, quer seja o modelo G2C 9mm.
Para fins de comparação o modelo mais barato em calibre 380 era comercializado a época pelo valor médio de R$ 4.500,00 enquanto o modelo G2C em 9mm era comercializado pelo valor médio de R$ 2.500,00 podendo ser encontrado por até R$ 2.100,00 em algumas ocasiões.
Isso significa que a partir de 2019 não havia nenhum motivo para aquisição de armamentos nos calibres 380 e 38, considerados permitidos pela legislação anterior, migrando os interessados para os calibres 9mm e 357 Magnum (que pode também disparar o calibre 38).
Ciente disso, podemos estabelecer que em média cada proprietário de armamento no Brasil possui cerca de 2 armas em calibre restrito (lembrando que os CACs Caçadores, Colecionadores e Atiradores, por participarem de modalidades esportivas, em geral possuem acervos com mais de 3 armas), e considerando que atualmente a popular G2C está custando em média R$ 4.500,00 teríamos um custo médio indenizatório de R$7.000,00 por cidadão que terá sua propriedade esvaziada.
Assim as estimativas mais comedidas, falam em cerca de 400.000 novas armas registradas no SINARM, e cerca de 500.000 novos CACs, (cujos acervos não possuem informações oficiais divulgadas, sendo, porém possível presumir que possuam mais de uma arma cada) num total de cerca de 1.400.000 novas armas em calibres antes restritos registradas em mãos de particulares.[4]
Portanto não foge muito à realidade uma estimativa de potencial indenizatório de ao menos 1.400.000 armas, cuja indenização média girará em torno de R$ 4.500,00 cada, resultando numa indenização bruta, sem considerar custas processuais e o custo próprio do impacto das milhares de ações que inundarão o judiciário, em torno de 6,3 bilhões de reais em indenizações.
Urge, portanto, que o legislativo se debruce sobre a questão apresentando solução legal para os milhares de armas compradas seguindo de forma estrita a legislação, o que se dá hoje, de forma mais madura, pela votação do PL 3723, que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e encontra-se hoje pronto para votação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Notas
- https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/25082020-Segunda-Turma-decide-que-arma-de-fogo-pode-ser-penhorada-em-execucao-fiscal.aspx
- Direito Administrativo Brasileiro, 42ª Edição, Editora Malheiros, São Paulo, 2016
- Direito Administrativo Descomplicado - Marcelo Alexandrino, Vicente de Paulo 24 ed ver. E atual. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2016
- https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-15/brasil-duplica-o-numero-de-armas-de-fogo-nas-maos-da-populacao-em-tres-anos.html