5. Conclusão: recontando o caminho
É possível que após a leitura desta insólita interpretação a respeito do mito edênico, alguém se pergunte se tudo isso não é somente uma ginástica hermenêutica que foi por nós engendrada com o fito de lhe fazer pensar em coisas que jamais passaram pela mente do autor do texto e que jamais encontrou guarida na história de Israel. Se isto aconteceu devemos ficar tristes e felizes. Tristes porque não conseguimos, juntada toda evidência, apresentada toda a lógica dos argumentos, dissuadi-lo de uma interpretação tradicional da passagem (muito embora tenhamos dito no início que não era nossa intenção apresentar uma interpretação melhor do que qualquer outra). Demonstrando que estórias como estas têm um poderosíssimo arsenal retórico e fundam civilizações. Revelado, ainda, que jamais, de modo algum, saberemos de fato o que se passou na mente do autor, mas podemos ver o que tem sido feito pelo texto e com o texto na história dos povos.
Mas por que a felicidade? Se não conseguimos persuadir da plausibilidade de nossos argumentos, oferecemos um exemplo do que é argumentar retoricamente. Então vejamos: quando no início do texto afirmamos que não estávamos fazendo uma interpretação religiosa, mas retórica e que abordaríamos o texto mui respeitosamente, tínhamos a intenção de tocar seus sentimentos e deixá-lo simpático à nossa abordagem (pathos); quando apresentamos a narrativa do texto e arrazoamos sobre as implicações da construção de uma tradição, fato que qualquer um pode, com facilidade, ver no que são hoje as sociedades influenciadas pela estória, quisemos dar um caráter lógico ao pensamento (logos); quando sustentamos estes argumentos com várias citações bíblicas e referências às línguas originais em que as mesmas foram escritas, quisemos aparentar um conhecimento teológico, cultural e lingüístico que nos colocasse numa condição de confiabilidade (ethos).
Se tudo isso é verdade ou foi só criação, nunca saberemos. Ou será que já sabemos?
Referências Bibliográficas
ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002.
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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2002.
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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
Anexo
Gênesis 2:4 - 3:24 [18]
Capítulo 2
4 Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados. No dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus
5 não havia ainda nenhuma planta do campo na terra, pois nenhuma erva do campo tinha ainda brotado; porque o Senhor Deus não tinha feito chover sobre a terra, nem havia homem para lavrar a terra.
6 Um vapor, porém, subia da terra, e regava toda a face da terra.
7 E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida; e o homem tornou-se alma vivente.
8 Então plantou o Senhor Deus um jardim, da banda do oriente, no Éden; e pôs ali o homem que tinha formado.
9 E o Senhor Deus fez brotar da terra toda qualidade de árvores agradáveis à vista e boas para comida, bem como a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.
10 E saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços.
11 O nome do primeiro é Pisom: este é o que rodeia toda a terra de Havilá, onde há ouro;
12 e o ouro dessa terra é bom: ali há o bidélio, e a pedra de berilo.
13 O nome do segundo rio é Giom: este é o que rodeia toda a terra de Cuche.
14 O nome do terceiro rio é Tigre: este é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto rio é o Eufrates.
15 Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e guardar.
16 Ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim podes comer livremente;
17 mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
18 Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora que lhe seja idônea.
19 Da terra formou, pois, o Senhor Deus todos os animais o campo e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem, para ver como lhes chamaria; e tudo o que o homem chamou a todo ser vivente, isso foi o seu nome.
20 Assim o homem deu nomes a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais do campo; mas para o homem não se achava ajudadora idônea.
21 Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre o homem, e este adormeceu; tomou-lhe, então, uma das costelas, e fechou a carne em seu lugar;
22 e da costela que o senhor Deus lhe tomara, formou a mulher e a trouxe ao homem.
23 Então disse o homem: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; ela será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada.
24 Portanto deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão uma só carne.
25 E ambos estavam nus, o homem e sua mulher; e não se envergonhavam.
Capítulo 3
1 Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo, que o Senhor Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim?
2 Respondeu a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim podemos comer,
3 mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.
4 Disse a serpente à mulher: Certamente não morrereis.
5 Porque Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal.
6 Então, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, comeu, e deu a seu marido, e ele também comeu.
7 Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; pelo que coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais.
8 E, ouvindo a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim à tardinha, esconderam-se o homem e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim.
9 Mas chamou o Senhor Deus ao homem, e perguntou-lhe: Onde estás?
10 Respondeu-lhe o homem: Ouvi a tua voz no jardim e tive medo, porque estava nu; e escondi-me.
11 Deus perguntou-lhe mais: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses?
12 Ao que respondeu o homem: A mulher que me deste por companheira deu-me a árvore, e eu comi.
13 Perguntou o Senhor Deus à mulher: Que é isto que fizeste? Respondeu a mulher: A serpente enganou-me, e eu comi.
14 Então o Senhor Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isso, maldita serás tu dentre todos os animais domésticos, e dentre todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida.
15 Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a sua descendência; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.
16 E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.
17 E ao homem disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei dizendo: Não comerás dela; maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias da tua vida.
18 Ela te produzirá espinhos e abrolhos; e comerás das ervas do campo.
19 Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás.
20 Chamou Adão à sua mulher Eva, porque era a mãe de todos os viventes.
21 E o Senhor Deus fez túnicas de peles para Adão e sua mulher, e os vestiu.
22 Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem se tem tornado como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Ora, não suceda que estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente.
23 O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden para lavrar a terra, de que fora tomado.
24 E havendo lançado fora o homem, pôs ao oriente do jardim do Éden os querubins, e uma espada flamejante que se volvia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida.
Notas
01 O pirronismo foi um movimento filosófico grego do séc. III a.C. que se caracterizava pela busca de uma imperturbabilidade decorrente de uma completa renúncia ao exercício de juízos morais.
02 LEACH, Joan. Análise retórica. In: BOUER, Martin W., GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 293-318.
03 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 317-347.
04 Todas as referências bíblicas foram retiradas da Bíblia Sagrada (trad. João Ferreira de Almeira). São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. pp. 9 e 10.
05 Enciclopédia eletrônica Wikipédia. Gênesis: estudos e discussões. http://pt.wikipedia.org/wiki/G%G3%AAnesis. Acesso em 15 de agosto de 2004.
06 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 99.
07 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 60.
08 LEACH, Joan. Op. cit. p. 299.
09 HARRIS, R. Laird, ARCHER JR, Gleason, WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999. p.292.
10 OLIVEIRA, Manfredo Araúdo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2001. p. 128.
11 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 90.
12 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 402.
13 ADEODATO, João Maurício. Op. cit. p. 317.
14 Idem. p. 319.
15 Idem. p. 327.
16 CARNELUTTI, Francesco. As miséries do processo penal. 7ª ed. Campinas: Bookseller, 2005. p. 53.
17 Idem. p. 47.
18 Bíblia Sagrada (trad. João Ferreira de Almeira). São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. pp. 9 e 10.