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O mito edênico e o drama da decisão jurídica

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10/03/2007 às 00:00
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O trabalho se baseia numa narrativa conhecida e influente para identificar na narrativa do Éden traços de um ceticismo germinal, com uma crítica à procura de um conhecimento científico e moral.

Sumário: 1. Esclarecimentos introdutórios: uma visão retórica e não religiosa; 2. Recontando o mito edênico; 3. Situando histórica e culturalmente a narrativa; 4. Uma análise retórica do mito do Éden; 5. Conclusão: recontando o caminho.


1. Esclarecimentos introdutórios: uma visão retórica e não religiosa

Os comentários aqui feitos não têm caráter religioso, nem pretendem construir uma interpretação melhor do que qualquer outra. Não está em questão se Deus existe ou não, se ele, existindo, é bom, ou qualquer outra temática de caráter teológico. Estamos nos valendo de uma narrativa conhecida e influente para realizarmos sobre ela um estudo retórico. Propomos esta abordagem sobre as falas dos personagens na narrativa. Para que as reflexões aqui sugeridas sobre o mito do Éden sejam relevantes, não nos parece necessário que o leitor creia em sua revelação divina ou que o tome com um fato literal.

Tratamos o texto de modo respeitoso e reconhecemos nele a sedimentação de uma longa tradição, que lançou raízes profundas em nossa civilização e que hoje é visto com fervor e devoção por três grandes grupos religiosos do planeta: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Quando usamos expressões como "mito" e "estória" não o fazemos para desmerecer a narrativa ou afirmar que ela não é digna de crédito, mas tão somente para enfatizar o nosso desejo de realizar uma aproximação não religiosa do texto.

A nossa intenção é buscar identificar na narrativa do Éden, traços de um ceticismo germinal, com uma crítica à procura de um conhecimento científico e moral, unido a um convite para uma vida "descomplicada" (sem a complexidade resultante da busca de certezas), semelhante à ataraxia do pirronismo [01]. Tentaremos, ainda, estabelecer um paralelo entre as dificuldades resultantes da perseguição de um conhecimento de absolutos morais (do bem e do mal) com as aporias presentes na inexorabilidade da decisão jurídica. Para isso faremos uma análise retórica das falas, seguindo a técnica ensinada por Joan Leach, [02] e tomaremos como referencial teórico os conceitos de ceticismo pirrônico apresentados por João Maurício Adeodato [03].

Inicialmente iremos "recontar" a narrativa do Éden, não somente para reavivar a memória do que ali se passa, mas também para fazer os destaques que nos parecem importantes (para uma leitura mais direta do mito edênico providenciamos um anexo com a transcrição do texto bíblico). Em seguida vamos tentar situar a narrativa em seu contexto cultural e histórico, para, finalmente, empreender a análise retórica que será dividida em quatro movimentos: a tradição, a linguagem, o conhecimento e a decisão.

O problema a que se dedica o presente artigo é buscar compreender como o texto do Éden desempenha sua função retórica visando persuadir os seus destinatários da importância de seguir as tradições recebidas.


2. Recontando o mito edênico

Um dos textos fundamentais para a civilização ocidental é o do "Jardim do Éden", narrado nos capítulos dois e três do livro de Gênesis. A passagem nos diz que depois que Deus criou o homem, plantou um jardim e ali colocou o homem para que nele vivesse. Fez, também, Deus todos os animais, doméstico e selvagens, e todas as árvores da terra com seus frutos bons para mantimento. Havia no meio do jardim duas árvores especiais, que receberam o nome de "árvore da vida" e do "conhecimento do bem e do mal" (2:9) [04]. A única limitação à plena liberdade recebida pelo homem era a de não comer o fruto que dava o conhecimento do bem e do mal, afirmando Deus que comer deste fruto implicaria em morte (2:16 e 17).

A esta altura da narrativa aparece um "não é bom". O texto nos faz saber que, em uma espécie de reflexão consigo mesmo, Deus disse: "não é bom que o homem esteja só. Farei uma pessoa que esteja ao seu lado e que lhe mereça" (2:18). E começou a procurar entre tudo o que havia criado algo que pudesse servir de companhia para o ser humano, mas não encontrou.

Deu Deus ordem ao homem para que "desse nome a tudo quanto havia feito e o nome que o homem desse, este seria o seu nome" (2:19), que comesse livremente de tudo quanto havia e que dominasse todos os animais, com apenas aquela ressalva em relação à árvore do conhecimento do bem e do mal. Foi então que tomou a decisão de fazer de parte do homem, da sua costela, um outro ser que lhe fosse complementar. Fez e o trouxe ao homem, ao ver a mulher que Deus havia feito comenta o homem: "Esta afinal é osso dos meus ossos, é carne da minha carne, será chamada minha mulher por que de mim foi tirada" (2:23). Ao final do capítulo, quase como uma nota de roda-pé, a narrativa nos faz saber que o dois, o homem e sua mulher, "estavam nus, e não sentiam vergonha" (2:25).

O capítulo três do livro de Gênesis começa apresentando-nos um quarto personagem na estória, a serpente. Ela convence mulher para que coma do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, através de uma engendrada argumentação. Primeiro ela pergunta a mulher se Deus havia dito que eles não deveriam comer das árvores que estavam no jardim. Ao que ela respondeu que não, que Deus havia dado autorização para que comessem de todas as árvores do jardim, mas que da árvore do conhecimento do bem e do mal eles não deveriam comer, nem tocar, sob pena de morte (3:2 e 3).

Notemos que a mulher acrescentou um elemento à ordem dada. Nada havia sido dito sobre tocar a árvore ou o fruto. Perceba também que a pergunta da serpente, intencionalmente, reclama uma resposta negativa e que trazia à mente a amplitude da liberdade em que os homens haviam sido criados. Depois deste momento a serpente faz uma afirmativa carregada de convicção dogmática: "Certamente não morrerão! Deus sabe que, no em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como Deus, serão conhecedores do bem e do mal" (3:4).

Após ouvir os argumentos da serpente, a mulher "viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento" (3:6). O texto continua dizendo que ela tomou o fruto comeu e deu ao seu marido e ele também comeu, ao que os olhos de ambos se abriram e viram que estavam nus. Envergonhados eles coseram para si vestes de folhas de figueira e se esconderam de Deus (3:6 e 7).

Quando Deus chega ao local do cotidiano encontro com o homem, ele não está lá e, então, passa a procurá-lo. Encontrando-o pergunta por que razão havia se ocultado, a resposta é: "ouvi os teus passos no jardim e fiquei com medo, porque estava nu; por isso me escondi" (3:10). Percebendo que algo havia mudado, Deus pergunta ao homem quem o fizera saber que ele estava nu, ao que indaga se ele havia comido do fruto da árvore que o proibira de comer (3:11).

A resposta poderia ter sido simplesmente um sim, mas o homem prefere fazer uma dupla acusação, ele diz "foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi" (3:12). Ele não apenas acusa a mulher de ser "responsável" por seu ato, mas envolve o próprio Deus nesta responsabilidade, uma vez que foi ele quem lha deu. Então Deus pergunta à mulher o que ela efetivamente havia feito, tendo como resposta o seguinte: "a serpente me enganou, e eu comi" (3:13).

Em seguida Deus começa a fazer uma série de condenações sobre os personagens. Começando pela serpente que condenada a comer o pó da terra e rastejar e que a sua descendência será inimiga da descendência dos homens. A mulher foi condenada a sofrer dores para dar à luz filhos e obedecer ao seu marido para que ele a governe. Ao homem Deus disse que por sua causa amaldiçoaria a terra e que esta passaria a produzir "espinhos e ervas daninhas" e que com sofrimento ele retiraria dela o seu sustento cotidiano comendo do suor do seu rosto até o dia em que ele haveria de voltar ao pó, "porque você é pó e ao pó voltará" (3:19).

A estória termina com uma significativa fala de Deus: "agora o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre" (3:22). Expulsa o homem e a mulher do jardim do Éden e colocou na porta do jardim querubins e uma espada flamejante que se movia para impedir que o homem para lá voltasse (3:24).


3. Situando histórica e culturalmente a narrativa

O primeiro livro da Bíblia hebraica e cristã recebe na tradição católica um nome de origem grega, mas que chegou até nós através do latim, genésis, que significa "início" ou "princípio". É uma referência à primeira palavra do livro, o vocábulo hebraico bereshit, que significa "no princípio". Ele é um dos mais importantes livros das culturas religiosas e sociais há pouco referidas por três motivos: a) nele é narrada a cosmogonia adotada por estas tradições; b) nele encontramos traços de uma organização social ecumênica, onde todos são vistos como advindos de uma mesma origem, uma mesma casa (oikós); c) nele encontramos a saga da família de Abraão, o primeiro dos patriarcas, de quem descenderiam figuras como Moisés, Jesus e Maomé.

Trata-se, como de resto o são todas as tradições morais e religiosas, de um post scriptum, um texto que nos convida a olhar para trás com o propósito de nos fazer entender (e aceitar) o arranjo de coisas que encontramos no presente. A datação de uma passagem como a que estamos trabalhando é por si só um ato de fé, sendo-nos conveniente para o escopo desta pesquisa colocá-lo em um largo período, como entre VII e IV a.C. [05] O mito do Éden é a segunda das narrativas da criação presente no livro de Gênesis (a primeira narrativa na ordem canônica encontra-se no capítulo primeiro e nos três primeiros versículos do capítulo segundo).

A estória do Éden elucida (legitima) a razão de ser de um grande número de questões sociais a serem respeitadas pelos que a receberem enquanto cosmogonia. Poderíamos destacar as seguintes: Como tudo quanto existe veio a existir? Como cada coisa ganhou um nome? Por que o homem tem que sofrer tanto para ganhar o seu pão de cada dia? Por que a terra produz coisas que não servem pra nada? Por que as mulheres devem ser submissas aos homens? Por que as mulheres sofrem tanto para da à luz seus filhos? Por que há uma inimizade entre os homens e algumas espécies de animais? Por que o homem agride e mata o seu irmão ou semelhante?

É difícil imaginar a importância para as sociedades primitivas (e também para a nossa) de ter todas estas respostas. As tradições foram construídas com o propósito de estabelecer a paz e a ordem social, daí serem fundamentais as narrativas da criação e as teodicéias nestas culturas. Pode-se dizer que o mundo judaico, o mundo cristão e o mundo islâmico viveram e vivem sob a égide desta tradição. É a partir dela que toda uma antropologia cultural tem sido tecida. Construiu-se um modo de vida e de organização social que respeita o arranjo apresentado nesta passagem, como veremos adiante.

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4. Uma análise retórica do mito do Éden

Empreenderemos agora uma análise retórica da narrativa que acabamos de conhecer melhor. A intenção e discernir seus "objetivos". Não temos em mente descobrir quem escreveu, ou qual a intenção do autor. A nossa busca é tentar compreender qual a razão (objetivo) do texto e não do autor. O autor (ou autores) é inalcançável do ponto de vista hermenêutico e desinteressante do ponto de vista retórico, mas o texto é passível de estudo e tem uma funcionalidade. Articula-se de um modo tal que realiza na vida daqueles que com ele têm contato, e o assumem como sua tradição, movimentos discerníveis, ainda que, obviamente, esta seja apenas uma entre muitas interpretações possíveis. O que queremos saber é com que finalidade o texto foi efetivamente utilizado ao longo dos milênios, chegando a sua influência até os nossos dias. Em outras palavras, a nossa questão é a que tem servido o texto?

4.1 A tradição e o ordenamento jurídico primevo

Admitindo que a diferença entre a norma jurídica e as demais normas que orientam a vida em sociedade é o seu caráter cogente, imperativo, como faz Ferraz Jr. [06] Então a narrativa nos coloca diante de uma sociedade composta por várias normas sociais, tais como dar nome às coisas, procriar, dominar sobre os animais, cuidar da terra, mas apenas uma norma jurídica, que nem por isso deixa de ter todos os elementos do direito. Tem uma fonte legislativa legitimada pela aceitação e submissão do grupo social (Deus), tem uma proibição clara, que limita o comportamento dos homens (não comerás) e uma pena em face da transgressão desta norma (morrerás).

Em outra obra, Ferraz Jr. afirma que quando entre dois interlocutores se imiscui um terceiro elemento carregado de exigibilidade, o poder de reclamar uma conduta, estabeleceu-se uma ação comunicativa discursiva jurídica [07]. Em nosso objeto de estudo é exatamente isto o que temos. Os nossos protagonistas mantinham uma ação comunicativa simples, até que foi colocada a norma restritiva da liberdade (não comerás) e aquele que a outorga não apenas se vê no direito de fazê-lo e de exigir a sua observância, mas também de definir a punição. A redução da liberdade dos interlocutores é uma das características das relações jurídicas. Na continuidade da narrativa, observamos que de fato Deus, que é um ser também confinado à situação de conhecedor do bem e do mal ("se tornou como um de nós" 3:22), estabelece a pena, o castigo de cada um dos infratores.

O interessante é notar que no texto não há justificativas morais para que não se coma o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O que temos é uma proibição arbitrária, que deve ser observada por medo da condenação. Não há discursos defendendo a importância de se abster daquele alimento, nem justificativas do mal que ele poderia causar aos homens. A simplicidade acaba sendo profundamente reveladora. Para dizê-lo no mesmo tom épico do texto... no princípio era a tradição.

Temos uma proibição que se justifica na autoridade de quem a faz e uma observância que não se estriba em juízos morais sobre a legitimidade da norma proibitiva, mas sobre um temor "inocente" (in+non+cientia) de punição. Um comportamento ditado pela tradição. Este parece ser o modelo sugerido pelo mito, posto que propõe uma obediência que antecede a capacidade de conhecer o bem e o mal. Como poderiam os homens saber que obedecer é bom e desobedecer é mau se eles ignoram o bem e o mal? Baseados na tradição, na entrega e no recebimento da norma de conduta.

Não há no texto uma só palavra sobre crer, tudo se limita a fazer e abster-se de fazer, em suma, de seguir a tradição ou quebrá-la. Como irá acontecer mais uma vez no judaísmo posterior e no movimento de Jesus, a figura de Deus se dilui nos mandamentos, de modo que servir a ele é viver segundo as suas palavras. São exemplos destes momentos estas duas passagens, respectivamente marcantes de cada uma destas épocas:

"Tão-somente tende cuidado de guardar com diligência o mandamento e a lei que Moisés, servo do Senhor, vos ordenou: que ameis ao Senhor vosso Deus, andeis em todos os seus caminhos, guardeis os seus mandamentos, e vos apegueis a ele e o sirvais com todo o vosso coração e com toda a vossa alma." Josué 22:5

"Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus". Mateus 5:19

O que observamos é que o poder do mandamento vem da tradição e a tradição vem de Deus, ou ainda mais precisamente, a tradição é Deus. Ela define o ethos retórico da norma, enquanto discurso persuasivo. O que fica patente é que o texto pretende ensinar que o "pecado original" foi a quebra da tradição, o desrespeito a lei de Deus. Esta conduta causou uma desordem cósmica e o caminho para retomar a ordem é, agora, seguir os mandamentos que ele nos confiou através da tradição, herdeira e continuadora do "não comerás".

Leach nos lembra que o discurso tem um kairos e uma phronesis, que são, segundo ele, a oportunidade e a conveniência do discurso [08]. Neste sentido convém recordar que o mito edênico é apresentado aos seus destinatários como o prólogo do pentatheucos, os cinco livros da Lei. Neste conjunto encontramos não apenas os Dez Mandamentos (Êxodo 20), mas uma centena de outras regras que vão desde lavar as mãos antes de comer, às regras para instituição e paramentação dos sacerdotes, passando pelas razões pelas quais se poderia tirar a vida de uma pessoa que tivesse transgredido alguns dispositivos das normas que deveriam reger o povo. Todo este conjunto é dado como a Lei de Moisés, que na obra é apenas um amanuense das revelações divinas. Logo, há aqui um pathos: se vocês transgredirem os mandamentos, como fizeram Adão e Eva, o castigo de Deus virá sobre vocês, exatamente como aconteceu com eles.

Além deste, há outros dois momentos em que a narrativa parece trabalhar as paixões dos leitores: a cena em que o homem e sua mulher se escondem porque se descobrem nus e aquela em que eles são mandados embora do jardim. No primeiro somos instados pela própria consciência a nos cobrir, a esconder o corpo, pois os olhos de Deus podem vir sobre nós. Veja como o hábito (ou melhor, a tradição) oriental está aqui delineado de modo claro. Importa cobrir. Vergonha.

No entanto, o mais forte é o desterro do jardim. A conseqüência da quebra da tradição é a perda da terra, o exílio, a expulsão do espaço dado pelo próprio Deus. É forçoso lembrar que Israel sempre enfrentou um problema em relação à questões territoriais. De acordo com o livro de Êxodo, após a saída do povo do Egito, sob a liderança de Moisés, a nação peregrinou nômade por quarenta anos no deserto, à espera de uma "terra prometida", mas nunca alcançada. O livro de Josué nos diz que Deus lhe revelou onde seria esta terra e lha deu, só que havia um problema: muitos outros povos habitavam esta terra e eles não foram informados da doação. Sob a liderança de Josué estes povos foram expulsos e a terra foi "dada" a Israel. Mas há sempre o risco de perdê-la. E como isso poderia acontecer? Pela quebra da tradição. Medo.

Não seria difícil ver aqui uma evidência de ceticismo. O comportamento não é guiado pela apreensão das essências, por visões do bem ou do mal, mas tão somente pela força da tradição e o seu poder de constranger o comportamento. Não há necessidade de verdades. De fato, no texto, só Deus e a serpente têm certezas, respectivamente: "certamente morrerás" e "certamente não morrerás". Certeza não é coisa de homem, este foi criado para cuidar da terra, comer, governar os animais, amar a sua esposa e dar nome às coisas.

4.2 A linguagem como modo de recriação das coisas

Um dos pontos mais interessantes do mito e o que está ligado ao fato de que, segundo o texto, Deus criou todas as coisas que existem sem nomes. Ele trouxe primeiramente os animais ao homem para que ele desse nomes aos mesmos. E o nome que o homem deu às coisas passou a ser o que elas eram. A escolha destes nomes não foi guiada por nenhum princípio ou parâmetro. Não se espera que o homem conheça a essência dos seres. Ele não é chamado para descobrir seus nomes, nem para chamá-los por um nome que estivesse acessível através da oração ou da meditação em algum lugar superior. Tão somente lhe é dado o poder para que, num ato arbitrário de vontade, atribua nomes às coisas.

Isto é feito por um homem que não tem o conhecimento do bem e do mal, mas que tem vontade, que é capaz de fazer escolhas e as faz. Assim sendo, os nomes são vistos como meras atribuições, como convenções. Não expressam nem decorrem da essência dos seres. Os nomes falam mais do homem que os deu do que da coisa em si. Os nomes nascem no interior dos homens e servem somente para que os homens se comuniquem. Eles não tocam a coisa em si. A expressão hebraica para "coisa" é dabar, que tem a mesma raiz do vocábulo que designa os verbos "falar", "declarar", "ordenar" e "cantar". [09] As palavras são coisas com o poder de criar outras coisas delas distintas, mas que com elas se relacionam pelo ato de vontade de falar seus nomes.

Ao criar os nomes o homem recria o objeto, só que agora o faz para o mundo da comunicação. Visto deste modo, os nomes não podem ser motivos de contenda, mas de acordo. Eles só serão nomes se houver concordância. Se cada um quiser dar um nome, o que pode de fato acontecer, não se tem nome nenhum, uma vez que ao nos referirmos a um objeto que tomamos por um nome, se este não for identificável para o outro indivíduo com quem conversamos, o nome mesmo será inútil, posto que não denomina.

Nesta esteira, não pode haver um nome verdadeiro e um falso de coisa alguma que há na terra, mas tão somente a forma como nós chamamos e a forma como outros chamam algum objeto. E tudo na esfera do conhecimento é um nome que se dá a um fenômeno que se pretende compreender. Mas a compreensão é só um modo arbitrário e nosso de dar um nome à matéria em apreço. Conclui-se que não basta dar nome às coisas para que elas tenham nome, é preciso fazer um acordo sobre este nome. Este acordo não é necessário, mas é desejável, na medida em que nós queremos conviver (não é bom que o homem esteja só).

Os nomes nada dizem sobre as qualidades dos objetos, se são bons ou ruins, se amáveis ou desprezíveis, se promotores de virtudes ou de vícios. São só nomes e cada indivíduo no encontro com o nome terá as suas próprias impressões do objeto e desenvolverá com ele sua pessoal relação. Ocorre, que quando o "homem original" deu pela primeira vez um nome às coisas ele criou uma tradição de denominação. Esta é uma tradição diferente da que estudamos anteriormente, porque esta, na narrativa, provém do homem e não de Deus. Mas esta tradição é útil para explicar porque as coisas se chamam deste ou daquele modo e nos dá um motivo para chamá-las desta maneira.

Observamos nesta abordagem, a linguagem como um ato pelo qual o homem cria uma versão da coisa para a comunicação, recolhendo-a para o seu mundo de significação. Uma aproximação do que se elaborou no início das mudanças em relação a linguagem capitaneadas por Wittgnestein:

"A palavra seria, nesse caso, a designação, o nome de objetos, e isso, segundo a tradição, constitui a palavra enquanto palavra. A designação é o ato por meio do qual se faz a ligação entre um ato espiritual e um som físico, que tem como efeito que tal palavra designa um objeto do mundo. É, na expressão de Wittgenstein, uma espécie de quase-batismo de um objeto". [10]

Seguindo ainda os passos desta corrente, não há que se falar das essências das coisas, posto que nós não sabemos delas. A essência que nós conhecemos é aquela criada por meio da linguagem, da denominação, é uma invenção filosófica.

O ato interpretativo é um ato de observação do objeto e de atribuição de um nome que o designe, o qual, neste caso, será entendido como significado do objeto. É neste sentido que Streck nos lembra que "pelo procedimento interpretativo o jurista não reproduz ou descobre o verdadeiro sentido da lei, mas cria o sentido que mais convém a seus interesses teóricos e políticos... vem de fora e é atribuído pelo intérprete". [11]

Poderíamos dizer que estamos na esfera do círculo hermenêutico de Gadamer, com o adendo de que o mito edênico retrata um encontro que produz interpretação e nos oferece, ele mesmo, como é de regra acontecer, um ponto para que nos encontremos nós também com ele, para fundirmos horizontes. [12] Tentando ser mais claro, quando nos aproximamos de um objeto qualquer, particularmente aqueles que nos interessam, os textos e falas, deflagra-se em nós um mecanismo automático de compreensão. Neste processo, o autor (ou a origem) contribui com os dados e nós com as nossas pré-compreensões, conscientes ou inconscientes.

4.3 O fruto proibido: o perigo e os limites do conhecimento

Chama-nos a atenção o fato de que o objeto da proibição não é, como poderia ocorrer em outras tradições, a riqueza, a luxúria ou a vaidade, mas o conhecimento moral, a capacidade de fazer a diferença entre o bem e o mal e, por conseguinte, de exercer juízos sobre quem é bom e quem é mau. Buscar tal capacidade estava vedado e implicaria em morte, a mais terrível das ameaças. Simultaneamente há uma outra árvore cujo fruto é permitido, o da árvore da vida, mas o homem não parece demonstrar interesse por ele. E quando o homem finalmente alcança, por meio da transgressão, o conhecimento do bem e do mal é expulso do jardim para não comer da árvore da vida.

O texto parece sugerir que a escolha de comer o fruto do conhecimento do bem e do mal implica em abrir mão da vida. Conhecer o bem e o mal é perder a vida. E é justamente isso que acontece logo em seguida. A primeira coisa que ocorre após haverem comigo do fruto é que se lhes abriram os olhos, mas para o quê? Para a sua nudez. E do que lhes fala a nudez recém descoberta? Da sua indignidade de estar na presença de Deus. O conhecimento é para eles fonte de constrangimento, de juízo sobre si mesmo e sobre o seu semelhante, de fuga de Deus.

Perderam a capacidade de ver com simplicidade a nudez do outro e a sua própria, este contínuo estado de flagrante revelação de si mesmo sem qualquer constrangimento. Segundo a narrativa, houve um tempo em que se podia existir sem a necessidade de que nos escondêssemos, de que nos camuflássemos, de que nos disfarçássemos. Ninguém precisava se (en)cobrir. Só não sente vergonha de sua nudez quem não teme o olhar alheio, e só não se teme um olhar neste estado quando ele vem desprovido de juízo, de avaliação, de medição.

Em seguida, no diálogo que têm com Deus o homem e a mulher fazem acusações. O homem acusa a mulher e a Deus de serem os responsáveis pelo seu comportamento; a mulher acusa a serpente de tê-la enganado; a serpente não tem a quem acusar, por isso é a primeira a ser punida. Perdeu-se a solidariedade primitiva em que o homem via a mulher como "osso dos meus ossos, carne de minha carne". Agora ela é não somente um outro, mas alguém cujo comportamento lhe causa dor e o desvia, uma ameaça.

Todas as mazelas da sociedade são atribuídas a esta desventurada escolha, a esta paixão pelo conhecimento, este "querer ser como Deus" conhecedor do bem e do mal. Por causa do conhecimento a terra e as feras se voltam contra o homem; o corpo e a perspectiva de vida se voltam contra a mulher; a terra entra em convulsão e os homens começam a se hostilizar. Mais uma vez digo, segundo o mito, a certeza ou é divina ou demoníaca, não é coisa de homem. O homem está limitado ao exercício de sua vontade e o que ele conhece no mundo são os nomes que ele mesmo dá.

As diferentes correntes filosóficas estão entre dois pólos perigosos, no limiar de dois equívocos lógicos. Ou descambam em uma petição de princípio (as opções ontológicas) ou são auto-refutáveis (as opções de ceticismo radical). Ou afirmam ter um conhecimento que é verdadeiro porque sabem que o é ou afirmam não ser possível nenhum tipo de conhecimento, logo este conhecimento (o de não ser possível nenhum conhecimento) não é possível. A solução que o texto nos apresenta é de que, ainda que o conhecimento que temos das coisas do mundo seja apenas o resultado de expressões de vontade, logo arbitrárias, estas podem e precisam ser em alguma medida aceitas para que tenhamos uma tradição que nos permita a convivência e a comunicação. Não porque é verdade, não porque encontramos as essências, mas porque é essencial que convivamos. E conviver com fraternidade, reconhecimento mútuo e respeito só é possível na medida em que ganhamos uma maior consciência de que os nossos saberes são parciais (ou melhor, passionais) e que o jogo a que somos convidados é o da sedução e não o da demonstração.

Adequadamente pondera Adeodato;

"de um ponto de vista gnoseológico, o postulado de que um conhecimento preciso do mundo, uma relação inteiramente adequada entre a mente de cada ser humano e os objetos em torno não é possível, o que relativiza de modo intransponível a percepção dos mesmos acontecimentos." [13]

Comenta, ainda, que uma das razões para que o ceticismo não seja muito popular em nossa sociedade está ligada "a uma necessidade atávica de crenças e de segurança, visto que o ceticismo assusta as pessoas em suas incertezas e dilemas existenciais". [14]

A única necessidade que a narrativa diz ter o homem é de companhia (não é bom que o homem esteja só). Observemos que o homem não estava absolutamente só, Deus passeava pelo jardim todos os dias, os animais estavam ali etc. Ocorre que o mito ensina que nem Deus serve de companhia para o homem, mas somente um ser como ele (osso dos meus ossos). Concluímos que a necessidade do homem não é de certezas, de conhecer verdades, mas de solidariedade e fraternidade, de companhia.

4.4 A inexorabilidade da decisão jurídica como confinamento

A estória termina com uma espécie muito incomum de confinamento. O homem e a mulher são presos fora do jardim. São de uma vez por todas impedidos de adentrarem novamente aquele espaço de ordem. São lançados na selva, no caos. Ali eles têm os seus filhos e constroem a sua sociedade. E a razão para os querubins e a espada flamejante obstarem o regresso dos homens ao jardim é para que eles não comam da árvore da vida. Quem escolheu saber, não pode depois escolher viver. A partir deste momento o homem precisará em todos os dias de sua vida sofrer a angustiosa tarefa de distinguir o bem do mal, de julgar e dar veredictos.

Há várias evidências de que a melancolia pelo jardim esteve presente na cultura hebréia. Observa-se a força da tradição em lugar da ciência moral. Não há esforços apologéticos ou proselitistas. Não há uma verdade a ser defendida e que precisa se impor diante de outras. O que existe é uma tradição que deve ser guardada e ensinada de geração em geração: "E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração; e as ensinarás a teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andando pelo caminho, ao deitar-te e ao levantar-te" (Deuteronômio 6:6 e7).

A religião, o direito e a vida social hebréias são marcadas pelo legalismo. O centro da vida é a observância dos mandamentos, os quais não têm nenhum parâmetro conhecido de racionalidade. Por exemplo, a circuncisão precisaria ser feita no oitavo dia (Levítico 12:3), mas por que circuncidar as crianças e por que no oitavo dia? Não há respostas. Ninguém poderia trabalhar aos sábados, mas por que não poderiam trabalhar e por que não neste dia? A tradição diz que Deus depois de ter criado todas as coisas em seis dias descansou no sétimo, então ele mandou que todo mundo trabalhasse seis dias e descanse no sétimo, daí shabath, que significa descanso. Mas por que Deus precisou descansar? Não é o fato dele ter descansado que nos obriga a descansar, mas o de ele ter mandado descansar (Êxodo 20:8). Os mandamentos são sempre auto-referentes.

Cremos ser justo supor que Jesus seguiu esta mesma tradição. Parece-nos evidente em face de sua pregação a cerca do paraíso, do grego paradizo, que significa "jardim". Há inclusive aquela interessante passagem, no evangelho de Lucas, capítulo vinte e três, versículo quarenta e três, em que ele diz a um ladrão condenado e que fora crucificado ao seu lado: "hoje mesmo estarás comigo no paraíso" (no jardim).

Além disso, ele é extremamente radical em relação à incapacidade humana de exercer qualquer tipo de juízo sobre seus semelhantes, ele diz:

"Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu?" Mateus 7:1-4

Isto nos parece muito semelhante a descrição feita por Adeodato do pirronismo, tendo em vista que "o objetivo da investigação cética, em sua acepção pirrônica, é induzir o sujeito cognoscente a suspender quaisquer juízos definitivos". [15] O que temos tanto no mito edênico como em Jesus é uma epoché (abstração de juízos definitivos), com a diferença de que no pirronismo isto se dava pela isostenia, a percepção que os dois lados de uma questão têm iguais forças, e no mito edênico isto se dá pelo ideal de afastamento da presunção de conhecimento, a renúncia ao fruto proibido.

Não poderíamos esquecer da atitude de Jesus em favor da mulher flagrada em adultério, quando ele diz que somente aqueles que nunca tinham cometido qualquer pecado teriam o direito de puni-la "jogando a primeira pedra" e com isso desqualificou todos os presentes para executar a sentença (João 8:7); ou, ainda, quando ele ensina que o que contamina um homem não é aquilo que ele faz, mas aquilo que ele diz, porque lhe sai do coração (Mateus 15:18).

Uma última evidência que situa Jesus dentro da tradição do mito edênico é o fato de que ele não é alguém que proclama a justiça num sentido convencional, mas a justiça ensinada por ele é algo que transcende o conceito tradicional, sua justiça é fulcrada no amor e recebe o nome de "graça e misericórdia". Entendendo justiça como dar a cada um que lhe é devido, a graça e a misericórdia ensinadas por Jesus são avessas à mesma, posto que graça é dar a alguém o bem que ele não merece e misericórdia é não dar a alguém o mal que ele merece. Logo, o amor ignora qualquer critério de merecimento e nos afasta de qualquer possibilidade de penalização, quer seja retributiva (ou punitiva), quer seja educativa. A disciplina é um convite ao arrependimento, e em havendo arrependimento se aperfeiçoa a disciplina, não havendo qualquer razão para retaliações (Mateus 18:15).

Há uma inadequação essencial entre o ser humano e a prática de julgar, em face da incerteza em relação à verdade e, consequentemente, à justiça. Ainda que o juiz tenha convicção de que Mévio matou Tício, o que é um fato típico (com conduta, resultado, relação de causalidade e tipicidade inquestionáveis); por um motivo banal, o que é anti-jurídico e de modo que a sua culpabilidade seja clara, mesmo assim ele nunca saberá perfeitamente se ele (o agressor) é ou não vítima das inumeráveis conjunturas que produzem a ação de um homem e, pior, jamais saberá se a pena de reclusão em uma das prisões brasileiras será o melhor para o homicida e para a sociedade. Resta-lhe a angústia da impossibilidade do non liquit, fruto de seu confinamento do lado de fora do jardim.

Sobre o drama do juiz, bem disse Carnelutti:

"Em realidade o juiz não tem a paciência e se tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo; e se escutasse por resumo não teria ainda escutado a história verdadeira, porque a história é também feita pelas pequenas coisas, as quais importam, para a consciência de um homem, muito mais do que as coisas grandes". [16]

Não são apenas os juízes que padecem este drama. O mesmo Carnelutti, que advogou durante praticamente toda a sua vida e escreveu As Misérias do Processo Penal com mais de 80 anos, diz não saber se os seus talentos serviram para inocentar culpados ou se foram insuficientes para levar a absolvição todos os inocentes que nele confiaram [17]. O mesmo poderia ser dito sobre os membros do Ministério Público e, de resto, todos os seres humanos que, em alguma medida, precisam decidir, conhecendo apenas a sua incapacidade de conhecer perfeitamente.

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Sobre o autor
Martorelli Dantas

Mestre em Direito (Teoria Geral do Direito) pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE); professor de Introdução ao Estudo do Direito da Faculdade Metropolitana da Grande Recife e da Faculdade Marista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Martorelli. O mito edênico e o drama da decisão jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1347, 10 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9573. Acesso em: 19 mai. 2024.

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