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Embriaguez: justa causa para extinção do contrato de trabalho?

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Agenda 07/03/2007 às 00:00

4. EMBRIAGUEZ COMO FUNDAMENTO PARA A DISPENSA POR JUSTA CAUSA

Fixados os efeitos da dependência física e psicológica que se abate sobre parte daqueles que habitualmente consomem bebidas alcoólicas, cabe repetir a pergunta inicialmente proposta neste trabalho: deve o trabalhador alcoolista, dependente químico, receber a punição máxima de seu empregador, qual seja, a rescisão de seu contrato de trabalho, sem direito a qualquer indenização, ao apresentar os sintomas do alcoolismo?

Antes de responder a tal questão, faz-se necessário verificar quais as conseqüências da doença no desempenho das atividades do empregado alcoólatra.

4.1. Repercussão da embriaguez na vida funcional do empregado

Com tantas conseqüências graves sobre a saúde física e mental do indivíduo, obviamente seria ingenuidade imaginar que os reflexos da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas não incidiriam sobre a vida profissional do alcoolista.

Sintomas relacionados no capítulo anterior, como depressão, ansiedade, agressividade, perda de memória, diminuição da concentração, redução dos reflexos, danos à visão, impaciência e tremores podem influenciar negativamente a prestação de serviços, seja ela braçal ou intelectual 174.

Aparentemente, determinadas profissões estão mais sujeitas do que outras a abarcar maior número de alcoolistas. Motoristas de caminhão, trabalhadores em fábricas de bebidas e, principalmente, operários na construção civil têm índices elevados de ocorrência de alcoolismo. Trabalhadores domésticos ficam logo abaixo na lista. Dentre os empregados na faixa de renda mais alta, a maior incidência de alcoolismo está entre jornalistas, radialistas e publicitários, seguidos por médicos e advogados 175.

Sem tratamento, os alcoolistas têm chance quatro vezes maior de se envolver em acidentes de trabalho do que os não-alcoólicos. Além disso, recebem dezesseis vezes mais licenças do que os demais. Também consomem um tempo maior de intervalos – além do descanso intrajornada previsto no art. 71. da CLT – e produzem menos no período da tarde 176. Os alcoólicos têm cinco vezes mais faltas ao trabalho, o que totaliza cerca de 26 ausências por ano 177.

Conclui-se, assim, que o empregador não pode ficar inerte perante o quadro de embriaguez de seus funcionários, máxime em se considerando o risco de acidentes e possibilidade de vulneração da imagem da empresa 178.

4.1.1. A embriaguez do trabalhador no Direito Comparado

O Direito Comparado tanto pode estabelecer diferenças e semelhanças entre ordenamentos jurídicos tomados em sua integralidade como pode cotejar institutos jurídicos afins em sistemas jurídicos diversos. Não se pode olvidar, contudo, que a confrontação de ordens jurídicas de países diferentes esbarra na limitação de que circunstâncias específicas, diferenças de cultura e realidade social podem dificultar o traçado de um quadro comparativo 179.

Passa-se, então, a uma breve análise do modo como outros países lidam com a embriaguez do trabalhador.

Dentre os países estudados, conclui-se que, na prática, não se aplica a punição máxima nos casos de embriaguez fora do local de trabalho, ainda que habitual, sendo que o trabalhador que se apresente alcoolizado ao serviço somente é dispensado por justa causa se os efeitos da ingestão excessiva de bebidas alcoólicas interferirem diretamente no desempenho de suas funções.

4.2. Necessidade de reconhecimento da mudança de paradigma: embriaguez como doença

Conforme descrito no item 2.2.6.2 deste trabalho, a alínea "f" do art. 482. da CLT comporta duas hipóteses para a demissão por justa causa: embriaguez habitual ou em serviço. Assim, o trabalhador que compareça ao local de trabalho sob os efeitos de ingestão de bebida alcoólica ou que regularmente se exceda no consumo de álcool pode ser dispensado sem direito a qualquer indenização.

Parte da doutrina considera correto possibilitar ao empregador a rescisão do contrato de trabalho no caso de embriaguez habitual. Crêem que a regularidade da embriaguez, mesmo que em serviço não apresente qualquer sinal de intoxicação, denota a existência de vício, de incapacidade de autocontrole, o que leva à perda da fidúcia necessária para a manutenção do liame empregatício 187. Até mesmo sustentam que a inserção da alínea "f" no art. 482. da CLT se deve à "preocupação da sociedade em coibir os excessos alcoólicos" 188.

Causa estranheza, entretanto, que se busque reduzir os índices de alcoolismo – que muitas vezes gera ou decorre de problemas de auto-estima, depressão, dificuldades financeiras – retirando o alcoolista do mercado de trabalho, fazendo-o perder sua fonte de renda e também sua dignidade.

Ainda mais surpreendente é a idéia de que o empregador pode punir o empregado que se exceda habitualmente no consumo do álcool mesmo que não haja repercussão negativa na prestação de serviços. Que direito tem o empregador de se arvorar no papel de guardião da moral e bons costumes? Se for concedido ao patrão o poder de fiscalizar a conduta de seus funcionários mesmo sem que haja pertinência com as atividades desenvolvidas, abrir-se-á oportunidade para, por exemplo, que os trabalhadores casados que tenham relacionamentos extra-conjugais sejam demitidos por justa causa com fundamento na alínea "b" do art. 482. da CLT, ou seja, por incontinência de conduta 189.

Ademais, isso significaria retirar do empregado o direito à intimidade. Há muito o trabalhador deixou de ser propriedade daquele para quem presta serviços, motivo pelo qual não tem obrigação de prestar contas do que faz fora do local de trabalho se quaisquer que sejam suas atividades nos momentos de lazer não tiverem pertinência com as funções que exerce.

Por outro lado, o indivíduo que faz uso abusivo do álcool a ponto de fazer com que seu empregador perceba que sua relação com a bebida extrapolou os limites do consumo médio certamente é dependente químico do álcool. Excetuada a possibilidade de a empresa tomar conhecimento por terceiros ou pelo convívio social com seu empregado fora do local de trabalho e, com isso, assistir ao trabalhador em estado de embriaguez, não há outra forma de o empregador saber do alcoolismo de seu funcionário se não pelos sintomas da doença descritos no item 3.2 do presente estudo.

Deste modo, se o empregador chega a tomar ciência de que seu empregado habitualmente encontra-se embriagado fora do local de trabalho – sem que tenha testemunhado o fato ou sem que alguém tenha lhe feito alguma denúncia – é porque o quadro clínico do alcoolismo de seu funcionário já está em um patamar razoavelmente avançado.

Na mesma linha de raciocínio, o trabalhador que comparece ao local de trabalho alcoolizado, na maior parte das vezes, o faz por ter perdido a capacidade de refrear o impulso para ingerir a bebida alcoólica – sinal de dependência química.

Os índices de desemprego, embora possam aumentar ou diminuir alguns pontos percentuais dependendo da época do ano ou da política econômica, sempre são elevados. Raros são os casos em que o trabalhador apresentar-se-ia ao local de prestação de serviços deliberadamente embriagado, pois quem possui um emprego com carteira assinada tem como prioridade sua manutenção nos quadros do empregador. Portanto, via de regra o trabalhador que comparece ao trabalho alcoolizado é vítima da dependência química.

É claro que tal raciocínio comporta exceções. Não se pode ignorar a existência de empregados que sejam indisciplinados e que apreciem causar constrangimentos a seus superiores hierárquicos, ou mesmo os casos em que o trabalhador pretende forçar seu empregador a demiti-lo. Mas dependendo do modo como o empregado se comporta ao se apresentar para o trabalho, seus superiores hierárquicos têm condições de constatar se a embriaguez é intencional e, portanto, merecedora de punição, ou se decorrente da impossibilidade de resistir à bebida 190.

Deste modo, para a aferição da ocorrência de justa causa por embriaguez "deve o empregador analisar cuidadosamente o caso concreto, levando em consideração os antecedentes do trabalhador, os problemas patológicos, familiares e sociais que este possa estar enfrentando" 191 192.

Impossível admitir que o ordenamento jurídico reconheça a validade da rescisão de um contrato de trabalho com fundamento na constatação de uma doença do trabalhador. O descompasso da Consolidação das Leis do Trabalho com as descobertas científicas e a evolução da sociedade é evidente. O Código Civil em vigor corrigiu muitas das falhas havidas no regramento anterior, inclusive na matéria em debate: o art. 4º, II, da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, relaciona como incapazes os ébrios habituais e os viciados em tóxicos.

Somente o preconceito, ou uma visão retrógrada do Direito, impediriam a equiparação da demissão com base na alínea "f" do art. 482. da CLT à dispensa de um empregado por ser portador de HIV, idoso, acometido de doença profissional, lesionado por acidente de trabalho, e assim por diante.

Não se diga que não há razoabilidade na comparação proposta: quem pode negar que os trabalhadores nas condições mencionadas por vezes apresentam reflexos negativos na prestação do serviço, como por exemplo perda de produtividade, justamente em razão da situação em que se encontram?

Obviamente que não se pretende aqui defender a rescisão do contrato laboral por justa causa em todas essas hipóteses. Ao revés, a intenção é demonstrar que estes trabalhadores merecem tratamento digno e devem ser protegidos pelo ordenamento jurídico, em vez de se permitir ao empregador que lhes negue a possibilidade de prover o próprio sustento.

O que a legislação trabalhista pátria tem acarretado com a inserção de tal hipótese de dispensa por justa causa é o agravamento da situação, já desesperadora, do alcoolista. É evidente que a perda do emprego leva à redução da renda familiar – quando não a suprime totalmente –, gera conflitos com os demais integrantes da família, torna o indivíduo deslocado na sociedade, entre diversas outras sérias conseqüências: tudo isso leva à depressão, à sensação de fracasso, o que reforça o ciclo da dependência psicológica do álcool.

Entretanto, este trabalho tampouco defende a estabilidade do empregado alcoólatra como solução para a preservação da saúde mental e financeira do trabalhador. Não seria justo com o empregador obrigá-lo a conviver em sua empresa com um empregado doente, sem tratamento, com redução de rendimento, podendo causar acidentes.

O que se poderia fazer, então, para resguardar tanto o funcionário alcoólatra quanto o empregador?

Dependendo do porte da empresa, é possível a implementação de programas de prevenção e recuperação dos empregados dependentes químicos. Para o empregado, a vantagem óbvia: a melhoria de sua saúde física e mental somada à manutenção do emprego. Para o empregador, a contenção de gastos com treinamento de novos empregados, contratados para substituir os dependentes demitidos, perda de produtividade em decorrência do excesso de gozo de licenças-médicas e faltas injustificadas 193.

[Ademais,] o empregado em recuperação produz mais, sente-se estimulado e quer recompensar a empresa pela dedicação e apoio em seu tratamento, além de se tornar um agente multiplicador da eficácia do programa e colaborador da equipe na abordagem de outros empregados com o mesmo problema 194.

[Outro aspecto positivo para o empregador é que] investir na prevenção da dependência química ou na recuperação do empregado doente significa [...] a possibilidade de resgatar um bom profissional treinado e experiente e não correr o risco de contratar um novo, inexperiente, que já seja dependente ou que venha também a desenvolver a doença 195.

O programa de prevenção e recuperação dos dependentes deve abranger todos os funcionários 196 por meio de seminários, conferências, palestras e cursos educativos, dentre outras opções 197, podendo-se aplicar questionários – sigilosos, a fim de não violar o direito de intimidade dos trabalhadores – para que se verifique a melhor forma de se proceder ao tratamento dos alcoolistas 198.

Várias empresas aderiram a esta idéia, como a Petrobrás, Empresas Brasileiras de Correios e Telégrafos – EBCT, Caixa Econômica Federal 199, UFRJ 200, Mercedes-Benz Daimler Chrysler 201, todas elas com elevados índices de contenção de despesas e recuperação de empregados alcoolistas. Isto porque, "do ponto de vista social e econômico, muitas empresas já concluíram que sai mais barato orientar, tratar e enfrentar o problema de forma bastante aberta do que arcar com os custos de uma demissão" 202.

Infelizmente, nem todos os empregadores que se deparam com um alcoólatra em seus quadros funcionais têm condições de implantar um programa de prevenção e recuperação, principalmente empresas de pequeno porte, com número reduzido de funcionários.

Alguns autores defendem que o contrato de trabalho deve ser suspenso e o trabalhador encaminhado para tratamento médico por meio da Previdência Social, com fundamento nos artigos 471 a 476-A e parágrafo único do art. 850. da CLT, artigos 59 a 63 da Lei n. 8.213/91 e artigos 71 a 80 do Decreto n. 3.048/99. Caso constatada séria dificuldade na recuperação do empregado, este receberia uma aposentadoria provisória até que se conseguisse minimizar os efeitos da dependência química ou, no caso de irreversibilidade do quadro, converter-se-ia a aposentadoria para definitiva 203.

Porém, há quem sustente a impossibilidade de encaminhamento do empregado para tratamento junto ao INSS com a suspensão do contrato de trabalho, por considerar que o auxílio-doença somente pode ser concedido no caso de ocorrência de uma das enfermidades listadas no art. 151. da Lei n. 8.231/91, in verbis:

Art. 151. Até que seja elaborada a lista de doenças mencionadas no inciso II do art. 26. 204, independe de carência a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez ao segurado que, após filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social, for acometido das seguintes doenças: tuberculose ativa; hanseníase; alienação mental; neoplasia maligna; cegueira; paralisia irreversível e incapacitante; cardiopatia grave; doença de Parkinson; espondiloartrose anquilosante; nefropatia grave; estado avançado da doença de Paget (osteíte deformante); síndrome da deficiência imunológica adquirida-Aids; e contaminação por radiação, com base em conclusão da medicina especializada (sem grifo no original).

Tal raciocínio, entretanto, afigura-se equivocado: as doenças relacionadas no art. 151. da Lei n. 8.213/91 são aquelas em relação às quais não há necessidade de cumprimento de período de carência para concessão do auxílio-doença, ou seja, não é um rol taxativo de enfermidades que autorizam a percepção do benefício previdenciário. Tanto é assim que o caput do art. 59. da mesma lei assim estabelece:

Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos (sem destaque no original).

Não se olvide, ainda, que a Lista "B" do Anexo II do Decreto n. 3.048/99 inclui como doença relacionada ao trabalho o alcoolismo crônico (CID-10, código F 10.2) decorrente de "problemas relacionados com o emprego ou desemprego: condições difíceis de trabalho (Z 56.5) [e] circunstâncias relativas às condições de trabalho (Y 96)". Deste modo, se o alcoolismo pode ser reconhecido como doença profissional, também pode ser considerada como causa para a concessão do auxílio-doença "genérico".

Logo, conclui-se pela razoabilidade da tese de suspensão do contrato de trabalho do empregado alcoólatra para que este se submeta a tratamento por intermédio da Seguridade Social.

É preciso, portanto, que a comunidade jurídica – não só a acadêmica, como também os operadores do Direito – aceitem a mudança do paradigma: a embriaguez, quando decorrente de doença, não pode ser motivo para a demissão do trabalhador, sem direito à reabilitação nem indenização.

Nessa linha, fundamental é a contribuição do Ministério Público do Trabalho 205 no sentido de incentivar as empresas a implementar programas de prevenção e recuperação de dependentes químicos; defender maior regulamentação quanto às propagandas de bebidas alcoólicas, incluindo referência aos males causados pelo álcool no rótulo, a par do que ocorre com os cigarros; celebrar convênio com a Secretaria Nacional Antidrogas do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República para atuação conjunta e capacitação dos membros do MPT a respeito do tema; e, finalmente, defender a modificação da alínea "f" do art. 482. da CLT, para excluir os trabalhadores dependentes da hipótese de demissão por justa causa 206.

Mas não apenas o Ministério Público do Trabalho pode, desde já, reverter este quadro: decisões judiciais que interpretem a alínea "f" do art. 482. da CLT de modo a excetuar a hipótese de constatação de doença do trabalhador a acarretar a embriaguez habitual ou em serviço, estabelecendo que o empregador deve encaminhar o trabalhador para tratamento, são fundamentais para a reparação da injustiça de se demitir por justa causa quem não tem a capacidade de conter o impulso pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas 207.

O que não mais pode ocorrer é a sociedade compactuar com a discriminação de trabalhadores doentes, com a legitimação do agravamento da situação dos alcoolistas por intermédio de sua demissão sem que lhe seja dada a chance de recuperação ou pelo menos uma indenização para garantir seu sustento enquanto busca outro emprego ao mesmo tempo em que tenta se reconstruir.

Sobre a autora
Flavia Ferreira Pinto

bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Flavia Ferreira. Embriaguez: justa causa para extinção do contrato de trabalho?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1344, 7 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9575. Acesso em: 23 nov. 2024.

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