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“que putaria é essa aí”?a atuação do poder de polícia (e da polícia) no contexto da prostituição

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Agenda 24/01/2022 às 20:07

O uso do atributo da discricionariedade é elemento central do poder policial, em sua atuação prática. É possível, dentro de determinado contexto, optar entre as opções legais que se apresentam. Como isso se dá num cenário de prostituição de rua?

Resumo: No Brasil, atualmente, no contexto da prostituição, adota-se, oficialmente um sistema abolicionista, que não criminaliza a prestação de serviços (em teoria), e opta por não conceder direitos típicos de várias outras categorias, segundo o critério exclusivamente legalista. Na prática, a prostituição encontra-se em uma espécie de limbo jurídico, que causa uma série de consequências na sociedade como um todo, incluindo a atuação da administração pública, seja através de seu poder de polícia, seja através do poder da polícia. No contexto de uma abordagem de campo, realizada na cidade de Três Rios/RJ, é possível perceber uma série de arranjos no que se refere à prostituição na localidade conhecida como Rua da Zona, conhecida área de meretrício da cidade. A observação do comportamento e regras locais, entre prostitutas, clientes, donos de bares e policiais, forma um ambiente com regramento próprio, não positivado, na tentativa de se adequar à realidade.

Palavras-chave: Prostituição. Etnografia. Polícia. Dignidade. Regulamentação.


1 - Introdução

Num dia de imersão inicial na pesquisa de campo que comecei a executar para elaboração de meu projeto de pesquisa de mestrado, comecei a observar uma relação entre a falta de regulamentação positivada no que se refere ao exercício da profissão de profissional do sexo e a atuação do poder de polícia da administração pública.

Por óbvio, dentre as reflexões que farei, essa relação acabou por ir além da falta de regulamentação da profissão, para notar como a legislação vigente, que trata da temática da prostituição acaba por produzir uma série de arranjos entre a atuação do poder de polícia e o comércio de uma zona de meretrício, de forma a adequar a atuação da administração pública a determinadas situações práticas para as quais as leis escritas são absolutamente insuficientes.

Assim, ao observar o campo, ouvir interlocutores e ler outras pesquisas, passei a me atentar e a refletir sobre como o poder de polícia atua em um território específico, no contexto de uma zona de meretrício local, sobre quais as adequações produzidas pela discricionariedade do poder público, em especial do poder de polícia, bem como sobre quais os atributos - como presunção de veracidade, legitimidade e legalidade - atuam nesse contexto prático, de forma articulada. 

Há de se observar a necessidade de que há uma dificuldade de atuação dessa estrutura no mundo real, dada a dificuldade de aplicação da legislação vigente, bem como a falta de descrição de procedimentos e a falta de transparência com relação às normas de atuação que podem ser adotados pelos agentes públicos, em especial os policiais.

A observação da materialização dos aspectos do poder de polícia da administração em contexto prático torna-se importante, à medida em que entendemos que esses atributos são as ferramentas que permitem a atuação do poder da polícia, que, na prática, permitem que o agente público possa inverter a regra constitucional do princípio da inocência - segundo o qual todos são inocentes até que se prove o contrário - para uma lógica segundo a qual o acusado é que terá que provar sua inocência.

Esse cenário se assemelha ao que ocorre em multas de trânsito, como falta da utilização de sinto de segurança, cuja prova é tão somente a afirmação do agente público, algo que só é possível por força da presunção de veracidade,

Portanto, carregando para o campo as máximas legais do poder de polícia, procurei refletir, após observar e ouvir, a atuação da polícia militar no contexto da prostituição, e entender como os arranjos ocorrem, na busca pela manutenção da ordem pública, atendendo interesses e se adequando a situações.


2 - Entendendo o espaço estudado

É noite de sexta-feira, 26 de novembro de 2021, um dos dias escolhidos por mim para minhas primeiras incursões no campo, visando à coleta de dados para a elaboração de meu projeto de pesquisa para qualificação no mestrado. O campo, a conhecida Rua da Zona, localizada na cidade de Três Rios-RJ.

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Na estrutura da rua, há uma clara divisão: uma parte mais iluminada e com vários bares e trailers, e uma segunda parte, que fica após uma curva acentuada, onde só há uma casa em um trecho que possuí pouquíssima iluminação. Na primeira parte da rua, várias mulheres, na segunda parte, as travestis.

No trecho inicial da rua, em aproximadamente 600 ou 700 metros, há casas de padrão médio a baixo, até o ponto em que há uma curva relativamente acentuada, de tal forma que só é possível ver o que há em seu segmento após transpassa-la.

Bem no início da curva está localizada um espaço para festas, desde aniversários, confraternizações e casamentos e, após virar completamente a curva, somos acometidos pela sensação e de ter entrado em outro mundo, ultrapassado uma fronteira. À frente, vários bares de ambos os lados da rua, vários carros estacionados, muitas mulheres caminhando pela rua e observando atentamente os carros que passam, buscando possíveis clientes, algumas vestidas com roupas chamativas e outras somente de lingerie.

Seguindo, há um ponto onde há mais uma curva e uma decida, com um matagal em ambos os lados da rua, acabando a descida fica um último estabelecimento, com aspecto velho, de estrutura e acabamentos totalmente deteriorados, seu salão é pouco iluminado, de forma que quem olha da rua não consegue ver o que há lá dentro. Esse trecho da rua é, inclusive, pouco iluminado, e é nessa parte onde ficam a imensa maioria das travestis.

Segundo vários interlocutores, na parte onde se encontram as travestis há também uma boca de fumo, que faz com que o trecho se torne relativamente perigoso. Em minhas observações realizadas durante cerca de quatro dias, não notei qualquer movimentação que pudesse atestar tal informação.

Antes de iniciar o processo de entrada nos estabelecimentos, decidi observar a rua, sua movimentação e interações. E foi aí que que o primeiro estalo surgiu em relação à atuação da polícia: observei que, constantemente, uma patamo costuma fazer rondas pela referida rua em vários momentos da noite, o que inicialmente me pareceu ter a finalidade de dar uma sensação de segurança àqueles que frequentam a localidade.

Nesse sentido, é importante frisar que a localidade recebe visitantes de diversas cidades próximas, que não possuem locais similares, a saber, as vizinhas Areal, Comendador Levy Gasparian, Paraíba do Sul e Sapucaia, movimentando de forma considerável o comércio local, independentemente de crises econômicas que ocorram no país.

Por fim, é importante frisar que os bares que funcionam na localidade oferecem seus quartos para a prestação de serviços oferecida na rua, ficando com uma parte do valor do programa cobrado, variando entre 20% e 30% da quantia, segundo algumas das interlocutoras.


3 - A atuação policial na Rua da Zona em perspectiva comparada ao policiamento de proximidade das favelas pacificadas.

É noite de quinta-feira, o dia mais movimentado da semana na rua da Zona, em virtude de várias prostitutas que vem de fora da cidade para trabalhar entre as noites de quinta-feira e a madrugada de sábado, quando retornam às suas cidades logo ao amanhecer do dia.

A patamo da Policia Militar faz rondas pela rua de forma mais frequente do que em outros dias, e, em algumas das vezes, chega a parar, conversando com pessoas que estão na rua, sejam homens ou prostitutas, sem que os policiais deixem o veículo para tanto.

Em vários momentos, pelo tom do diálogo, dos quais não pude identificar palavras, fui levado a crer que não se tratavam de completos estranhos, mas de pessoas que já se conheciam há algum tempo. Nesse sentido, a atuação dos policiais me pareceu ter características do policiamento de proximidade, buscando a inserção na localidade provocando o menor estranhamento possível, bem como despertando confiança e sensação de segurança.

Contudo, em tal contexto, fui levado a pensar em conjunto com meus conhecimentos jurídicos: segundo os ditames do nosso código penal, a atuação dos donos de bares facilmente se enquadraria no crime de ter casa de prostituição e, sendo o funcionamento dessa prestação de serviços local notoriamente conhecida na região, não estariam esses policiais prevaricando? Eles não estariam deixando de cumprir seu dever legal, em atuar para coibir o cometimento de crimes previstos na legislação penal?

Essa questão me incomodou por algum tempo, não do ponto de vista legal, mas de como os policiais lidavam com essa dicotomia de atuar ou não atuar, foi quando tive a oportunidade de conversar com um policial aposentado, 65 anos de idade, que atuou na cidade durante décadas, inclusive atuando naquela região.

Assim, tomando os devidos cuidados para não produzir uma resposta politicamente correta que não refletiria a realidade, iniciamos uma boa conversa sobre a rua da Zona e, dentre as falas de meu interlocutor, saltou-me aos olhos o seguinte ponto:

Você tem que entender que nossa atuação naquele ponto é muito difícil! Os policiais sabem daquilo que ocorre na região, com relação a prostituição, mas os mecanismos que a lei coloca para o flagrante são inaplicáveis. Por exemplo, para que eu consiga dar o flagrante, preciso entrar no local, arrombar a porta e testemunhar o ato sexual ocorrendo naquele momento, além do aspecto da remuneração pela prestação de serviços e se há retenção de parte do valor pela casa. Não tem como, simplesmente não dá.... Aí, se inicio uma ação assim e não obtenho resultados robustos, posso responder por abuso de autoridade e ainda ficar mal visto naquela região, o que vai prejudicar a confiança daquelas pessoas em mim e a minha atuação no combate a crimes violentos e tráfico de drogas que possam ocorrer naquela rua.

Talvez um observador ou ouvinte desatento não consiga observar o quão rico em tantos pontos é, em especial, esse pequeno trecho da conversa, que revela muito sobre a realidade da atuação da polícia naquele local.

A princípio, pude confirmar uma de minhas suspeitas: os policiais atuam naquela região realmente de forma similar ao policiamento de proximidade, buscando a confiança das pessoas que passam pela rua como ferramenta de trabalho.

Partindo desse ponto, podemos notar que há uma notória falta de aplicabilidade dos parâmetros para o flagrante, segundo o policial aposentado, à situação fática, o que torna sua atuação inexequível, o deixando mais suscetível a uma punição do que ao cumprimento do seu dever legal, algo que pude verificar de forma bastante similar na atuação da polícia de proximidade em comunidades pacificadas, conforme esse depoimento de um policial, constante da pesquisa realizada por Muniz & Melo (2015):

Para fazer polícia, para atuar na proximidade, parece ser preciso equilibrar-se no fio da navalha de nem fazer de menos e nem fazer de mais: A questão de diversos gatos de luz, eu, como policial, deveria cortar tudo, e levar todo mundo preso, e chamar os responsáveis na delegacia, a Light. Só que eu não posso fazê-lo porque a luz é um bem muito básico, e todas as pessoas deveriam ter, né? Só que eu tenho que conviver com isso todos os dias.

Assim, podemos notar que um dos elementos principais que compõem a atuação dos policiais na região pesquisada se assemelha à atuação dos policiais da polícia de proximidade em comunidades pacificadas, onde as leis existentes são insuficientes e inaplicáveis a situações práticas, o que gera temor em agir por parte dos policiais, deixando-os sujeitos ao enquadramento no crime de prevaricação. Por outro lado, revela uma espécie de regramento paralelo na atuação policial, a fim de se enquadrar ao mundo real.

Assim, se criam zonas cinzentas onde vigorará um regramento paralelo, que abrangerá ilegalidades e clandestinidades, conforme explicam Muniz e Mello (2015), citando Cunha e Mello (2011):

Esta zona cinzenta, entre legalidades e legitimidades, em disputa no decidir policial, adquire tonalidades mais fortes e críticas nos territórios pacificados. Neles, a própria ordem local compreende o entrecruzamento de práticas ilegais, informais e clandestinas, que vão do serviço não regulamentado de moto-táxi ao consumo irregular de água, energia, sinal de TV a cabo e internet, passando pela ocupação do solo urbano e realização de atividades comerciais e de lazer sem alvará ou autorização formal das agências públicas de controle e fiscalização (Cunha e Mello, 2011)

Como podemos verificar, os policiais se veem em uma linha tênue entre a atuação e a não atuação com relação a diversas situações específicas, em um entroncamento de práticas, que leva a opção mais segura ao seguimento de suas carreiras dentro da corporação, se adequar a realidade criando essa espécie de regramento paralelo para lidar com essas situações.

Outro ponto a se destacar do depoimento do meu interlocutor, policial aposentado, é uma certa confusão sobre os limites de sua atuação legal, não por culpa sua, mas por uma ausência de regramento e de clareza das regras do jogo: nem os próprios agentes sabem qual a forma correta de agir em determinadas situações, o que leva ao receio na atuação, com um misto de confusão entre o que lhe é permitido fazer, segundo o poder de polícia e seus atributos (quase que imperiais), bem como o crime que lhe é imputado pela não atuação, versus o que não lhe é permitido fazer, sob o risco de ser configurado abuso de autoridade o que gera, em suma, um cenário de insegurança generalizada, sem que ninguém (nem os próprios agentes), saibam o que esperar da atuação policial, gerando assim um grau de imprevisibilidade que só produzirá mais insegurança, como ensina Muniz (2014):

De fato, na ordem cotidiana dos atos e fatos das ocorrências policiais, os chamados procedimentos operacionais padrão (POP) seguem, em boa medida, ininteligíveis e cambiantes. Tal imprecisão ou vagueza vai das práticas mais elementares de abordagem policial, passando pela atuação em eventos de massa, 6 até os supostos critérios normativos da fundada suspeita. Ao fim e ao cabo, fica-se com a desconfortável sensação de que cada cabeça (policial) é uma sentença e de que cada cidadão tem (a sua própria) razão.

Um e outro figurando como ilhas de direitos ou privilégios em confronto ou em estado latente de conflito. Fica-se com a expectativa de que tudo pode (vir a) acontecer durante a intervenção policial. Talvez seja esse o consenso desagradável e indesejado que se possa extrair sobre a lógica em uso policial e as respostas advindas dos cidadãos. A falta de transparência dos procedimentos policiais fragiliza as relações entre polícia, sociedade e governo. Estabelece a suspeita como modo de convívio. Gera desconfiança de parte a parte, quase sempre por desconhecimento de coisas que são banais para um dos lados, mas não para o outro. Abre-se um precedente para todo tipo de incidentes entre policiais e cidadãos.

De fato, em que pese as circunstâncias diferentes, podemos notar a similaridade com relação a falta de determinadas normas, e a falta de transparência e de coordenação entre as normas que permeiam atuação policial, gerando um ambiente de insegurança que vai se guiar unicamente pelos conceitos firmados a partir de interações já ocorridas entre populares e policiais que, normalmente, guardam mais vividas as interações traumáticas, responsáveis pela maior parte daquilo que se conceitua como negativo nessa interação.

Então, na continuidade de minhas observações ficou claro que a intenção policial na região é atuar como na conhecida expressão futebolística bola de segurança, utilizada quando no momento do pênalti o cobrador bate no meio do gol, já que a maior probabilidade é a de que o goleiro tente adivinhar um dos cantos poucos segundos antes da batida. Assim, devido ao receio de cometer equívocos em relação às regras que ao mesmo tempo são ausentes, confusas, turvas e não aplicáveis à realidade, o policial opta pelo caminho menos tendente a lhe render problemas, preferindo se ater ao patrulhamento que visa coibir a violência e a venda de drogas na localidade. Contudo, de forma mais rara, assim como o goleiro pode optar por não tentar adivinhar o canto e permanecer ao centro do gol, o policial corre o risco de enfrentar problemas disciplinares e judiciais, além de ter sua autoridade e atuação questionadas.

Sobre o autor
Manuel Flavio Saiol Pacheco

Pesquisador, Advogado e funcionário público, graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Campus Três Rios. Atualmente é mestrando em Justiça e Segurança, pela Universidade Federal Fluminense. É Pós Graduado em Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Tributário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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