Introdução
O presente trabalho se dedicará à apresentação, em linhas gerais, da importância do elemento histórico para a compreensão dos Fundamentos de Sociologia do Direito, de Eugen Ehrlich.
Publicada a primeira edição há cento e cinco anos, a obra emprega o elemento histórico como justificativa para a proposição de um método sociológico do direito. Essa ciência, ademais, é regida, conforme lição do referido autor, pela interpretação histórica realizada pelo estudioso acerca dos fatos do direito, apanágio de origem das normas jurídicas.
Por fim, verificar-se-á que a história, de maneira indireta, porém inexorável, influiu no desenvolvimento dos postulados da sociologia do direito de Eugen Ehrlich, na medida em que sua teoria ilustra o estado de desenvolvimento no qual essa ciência se encontrava no momento em que seu trabalho se desenvolveu e, ainda, permite depreender quais outras obras realizadas naquele período o influenciara e, assim, contribuem para a compreensão da obra do sociólogo austríaco sob um espectro mais amplo.
A história como fundamento da teoria ehrlichiana
Passados mais de cem anos desde a publicação da primeira edição de Grundlegung der Soziologie des Rechts[1], a obra de Eugen Ehrlich ainda causa interesse ao pensamento jurídico, em seus mais variados matizes, com finalidades diversas, desde a compreensão da proposta original do referido autor, sua adoção plena ou parcial no correr do tempo desde sua origem e, ainda, seu afastamento mediante crítica fundamentada.
É relevante, para um estudo contemporâneo, conhecer o período histórico no qual o trabalho intelectual ehrlichiano foi apresentado, cautela que, ademais, reflete favoravelmente à compreensão dos fatores de criação, do sentido, da dimensão e dos limites atribuídos ao direito pelo referido autor. Tal importância é reforçada diante do reconhecimento das diferenças fundamentais existentes entre a sociologia do direito contemporânea e aquela desenvolvida ao tempo de Ehrlich.
A proposta originalmente apresentada pelo autor austro-húngaro engloba, em linhas gerais, um objeto fundamental e um método adotado para sua análise pela comunidade jurídico-científica de seu tempo.
De forma indireta, pode-se inferir que a finalidade da sociologia do direito ehrlichiana, para além de promover e justificar a análise do direito sob a ótica da sua efetividade social, é a de estabelecer um marco científico referencial segundo o qual o direito, enquanto fato social, e sua evolução em dada localidade não são operados mediante a atividade legislativa estatal, pelas decisões dos tribunais ou pela ciência produzida pelos juristas, mas segundo as relações sociais estabelecidas verificadas na própria sociedade[2]. O direito nasce das relações sociais, primordialmente.
A história como fundamento do método ehrlichiano
A historicidade encontra, ainda, outra relevante função para a compreensão do modelo sociológico ehrlichiano. Se, num primeiro momento, a história é reconhecida como um fator explicativo da finalidade e dos limites da teoria em análise, nessa segunda etapa se faz possível indicá-la como um componente interno ideal do método proposto por Eugen Ehrlich[3].
Por conta da operação de instrumentos históricos no cerne do método em apreço, os resultados possíveis serão necessariamente atrelados a uma certa historicidade. Assim, reconhece-se que o objeto característico da teoria ehrlichiana, o chamado direito vivo, deve ser compreendido conforme sua dimensão histórica[4].
O período de formação intelectual e de produção científica desenvolvida por Eugen Ehrlich, particularmente aquele imediatamente anterior à publicação de Grundlegung, apresenta algumas significativas modificações nas formas de produção do direito e na teoria jurídica europeia continental. Dentre as numerosas modificações operadas naquela época, poder-se-á destacar o fenômeno da codificação do direito dos grandes Impérios de língua alemã.
O referido autor se oporia a reconhecer essa forma de geração de normas jurídicas, acoimando-a como negativa à historicidade do direito. A dependência judicial de um direito codificado, portanto, segundo esse ponto de vista, acabaria por eliminar, indevidamente, o direito e suas fontes socialmente fundamentados ao longo de tempos imemoriáveis e que permitiam à sociedade, geração após geração, reger suas próprias demandas e se manter estáveis sem os riscos característicos de uma legislação positiva coexistente, cuja características imediatamente verificável é a inconstância em face da possibilidade de modificação legislativa constante[5].
Menção rotineira em obras que se dedicam a analisar a doutrina ehrlichiana, relevante em seu sentido histórico, refere-se à região de residência de Eugen Ehrlich e cuja realidade social o inspirara a desenvolver sua teoria sociológica. Ehrlich foi, durante quase todo seu período de vida, súdito do Império Austro-húngaro, Estado abolido ao final da Primeira Grande Guerra, por força do Tratado de Saint-Germain-en-Laye[6], em favor do estabelecimento de uma República. O referido Império se estendia por larga extensão territorial e albergava significativo número de grupos étnicos díspares, que, embora apresentassem detalhes culturais não congruentes entre si, conviviam em relativa paz[7]. Nove diferentes grupos étnicos[8] eram reconhecidos por todo o território da Bucovina, local que Ehrlich habitava[9].
A essa altura, poder-se-ia perguntar se à parte de Ehrlich enunciar sua teoria como inovadora em relação à ciência do direito existente ao tempo do desenvolvimento de sua obra, ela, em verdade, não seria apenas uma vertente da Escola Histórica. A pergunta é, de fato, legítima, pois, como acima se observou, o elemento histórico permeia, justifica e ilustra a teoria ehrlichiana[10]. Demais disso, o referido autor adota um dos postulados basilares da Escola Histórica para fundamentar o conceito de direito vivo[11], segundo o qual o direito está em contínuo desenvolvimento[12]. A evolução do direito se observa ao longo do tempo. Ademais, o direito é interpretado e se aplica nos limites de seu contexto histórico[13].
A resposta, não obstante, é negativa. Ehrlich inaugura uma nova maneira de conceituar e compreender o direito. Afirma o referido autor, que para as sociedades plenamente civilizadas segundo a ótica europeia do final do século XIX, o direito contemporâneo (o direito propriamente dito e o seu estado de evolução atual) pode ser apurado ao observar as relações familiares, outras formas de sujeição entre pessoas, contratos e as relações de propriedade[14]. O evoluir do direito, portanto, não ocorre pela sucessão de leis ou de códigos, como um juspositivista poderia supor, mas a partir de relações sociais observadas no interior de dessas instituições, as quais definidas por Ehrlich segundo o grau de evolução histórico-sociocultural de um povo[15].
A ciência do direito, conforme sua lição, compreende atividades de investigação teórico-empírica[16] dirigidas para o desenvolvimento de conceitos jurídicos, que derivam dos chamados fatos do direito. O emprego da sociologia do direito de Ehrlich não visa solucionar casos concretos, mas à elaboração de definições de normas (ideais)[17].
Admitir o modelo empírico da teoria ehrlichiana impende reconhecer, por conseguinte, que o modo de produção do conhecimento se dará em bases diversas daquelas comumente reconhecidas na operação da ciência do direito. Se, para essa, o modo de operação ocorrerá, predominantemente, segundo um modelo descritivo, no qual o cientista do direito atua a partir de um texto legal produzido por autoridade competente de acordo com o ordenamento jurídico local, para aquela a descrição somente se verifica após o emprego de métodos indutivos, que atuará como etapa preparatória. Eis o fundamento pelo qual sua doutrina fora recebida com interesse por países de tradição jurídica anglo-saxã e pelo Japão[18].
O direito, portanto, não comporta uma única fonte de origem. São múltiplos os canais de produção normativa. Afasta-se, com a referida assertiva, o monopólio Estatal de criação do direito[19], reconhecendo-se, na mesma toada, a existência de um pluralismo de fontes de criação jurídica, que emanam, primordialmente, das relações sociais locais.
A influência externa da história na obra de Eugen Ehrlich
Trata-se de relevante caraterística da teoria erhlichiana e, em grande medida, da teoria sociológica de seu tempo. A sociologia, desde o início de sua proposta metodológica, durante o a segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, foi compreendida como uma forma de dedicar às ciências humanas (Geisteswissenschaften) a segurança atribuía aos resultados das ciências naturais (Naturwissenschaften). Eugen Ehrlich não apenas admite tal correlação implicitamente, como, também, de maneira expressa ao relacionar, exemplificativamente, a atividade de cientistas naturais[20] à do teórico do direito. O método sociológico, portanto, capaz de objetivar o direito, dedicar-lhe a certeza empírica típica de uma verdade matemática, deveria ser aplicado com a finalidade de garantir existência de um direito puro[21], que indica não apenas o que deve ser (regra deôntica), mas o que efetivamente é (regra ôntica)[22] conforme a norma[23]. Para Ehrlich, a sociologia do direito é a doutrina científica do direito[24].
Boaventura de Sousa Santos, ao dissertar sobre a formação do conhecimento científico e de seu estado na oitava década do século XX, concluíra que o período das luzes fora determinante para o surgimento das ciências sociais durante o século XIX. A orientação fundadora não fora, contudo, talhada originalmente. Ela derivou diretamente do estudo das leis da natureza, então aplicado às ciências naturais, buscando, assim, estabelecer racionalidade e previsibilidade ao objeto e às conclusões do trabalho de um cientista social, cujos contornos se estabeleceriam segundos padrões empírico-racionais.
Ao tempo da formação do método comteano, também mencionado por Eugen Ehrlich em sua obra[25], a ciência social não se encontrava inserta no domínio da filosofia positiva, pois sua produção ainda sofria a com a (indevida) interferência dos métodos metafísicos e teleológicos, que, embora proscritos pela metodologia positivista em voga desde o século XVI, foram indistintamente aplicados a tudo o que concerne à produção científica em ciências sociais[26].
Ela deveria ser submetida a um período de adequação, para que a comunidade científica contemporânea se adaptasse ao método positivo e, assim, pudesse preparar os futuros membro de acordo com a forma correta de produzi-la. Somente a partir desse momento se poderia compreender a ciência social, a física social, em um verdadeiro contexto científico-positivo, livre de toda a consideração metafísica (e teleológica) que impregnam seu discurso de incertezas, incorreções e de falsidades[27].
Se o reconhecimento de tal fenômeno tende a rescindir a dissensão entre as ciências humanas e as exatas, congloba-as no mesmo gênero do pensamento como científico. Sob tal visão, a adoção do termo científico para ilustrar um certo domínio de saberes é exclusivo.
A subdivisão da ciência em categorias tão-somente se dedica a regulamentar, didática e profissionalmente, os ramos do saber científico. Tratam-se, as categorias comteanas, de ramas pertencentes a um único tronco, indivisíveis do todo por uma dependência fundamental da filosofia positiva, até que atinjam a maturidade necessária para produzir seus próprios resultados, um período de que a integralidade das ramas dependerá. Não se dissociarão, contudo, do tronco de maneira definitiva.
Auguste Comte reconhece a perenidade da filosofia positivista como berço da ciência moderna e como imutável repositório de instrumentos e de métodos para a manutenção do status quo científico alcançado por dado conjunto de conhecimentos. Se, em um primeiro momento, a filosofia positiva tem a finalidade de moldar a ciência, no momento imediatamente posterior à emancipação do ramo ela se presta ao estabelecimento de seu registro histórico-evolutivo e de um núcleo de generalidades científicas para que seja mantida a integridade dos princípios da ciência positiva e, assim, evite-se a indevida influência de métodos vinculados à metafísica e à teleologia.
Para o fundador da sociologia acadêmica[28], inaugurada por Émile Durkheim em 1897 com a publicação da obra Le suicidé, o estudo dos fatos sociais deve ser realizado como se ocorressem sobre fenômenos naturais, ou seja, dever-se-ia reduzir os factos sociais às suas dimensões exteriores, ponderáveis, objetivas[29].
As obras dos referidos autores, que representam de maneira basilar o pensamento sociológico do período em que fora originalmente apresentadas, influenciaram, de maneira profunda, o lavoro de Eugen Ehrlich. Tal afirmação é depreendida tanto das linhas de Grundlegung quanto dos livros de alguns dos seus comentadores acima observados e dá azo a considerações relevantes acerca da originalidade intelectual da obra de Ehrlich.
Conclusão
Eugen Ehrlich[30] vivera e se formara em período de pujante modificação dos costumes, da cultura, das ciências e do direito. Inegavelmente a efervescência da época repercutiu positivamente no desenvolvimento de sua doutrina do direito, pois aderira, de maneira pioneira, uma nova maneira de pensar e de desenvolver estudos humanísticos, ao empregar a nascente sociologia à solução de problemas típicos do pensamento jurídico. Cometera ao seu método sociológico função diversa da que obviamente se cogitaria na atualidade, distante, portanto, de um caráter teórico-descritivo, mas voltada para a definição de normas jurídicas verdadeiras, puras, consideradas infalíveis, oponível aos demais métodos e destinado a ser a verdadeira ciência do direito.
À parte das críticas justas que possam ser apostas à sua doutrina, a qual dificilmente resiste a uma análise pormenorizada segundo o ponto de vista da teoria do direito atual, a relevância de seu trabalho ainda pode ser verificada, por exemplo, no debate sobre a existência de múltiplas fontes de produção do direito e consiste em uma fonte relevante para o debate jurídico contemporâneo.