II – CARACTERÍSTICAS ESPECIAIS DA JURISDIÇÃO MENORISTA
OBJETIVO: PROTEGER PERSONALIDADES EM FORMAÇÃO
Dentre todos os despossuídos do mundo, as crianças são as vítimas mais sofridas.
Corpos de crianças semeiam dor e sangram indignação em campos de batalha desde Ruanda ao Iraque. Do Haiti à Cachemira, ao som de tiros, pequenos órfãos tremem de pânico sob os leitos da miséria.
A AIDS multiplica-se em proporção geométrica em países africanos, vitimando inocentes ainda no ventre materno.
Com dieta inadequada ou inexistente, no mundo inteiro as crianças padecem a desnutrição que afeta e reduz suas capacidades cognitivas, condenando-as a uma vida de dificuldades e desvantagens.
O drama da exploração sexual infantil se espalha do Extremo Oriente às paradisíacas praias do nordeste brasileiro, dos castelos alemães às metrópoles americanas, seja em forma de pedofilia virtual, venda de crianças para escravidão sexual ou redes de prostituição.
Os lixões das cidades do Terceiro Mundo, e mesmo da naufragada Nova Orleans, são pródigos em cenas de ratos e crianças disputando os mesmos restos.
A violência doméstica agride corpos frágeis e espancamentos afetam e lesionam áreas cerebrais com comprometimentos irreversíveis, gerando, no mínimo, distúrbios de atenção e aprendizado.
O modelo neoliberal maximiza lucros na mesma proporção em que atira crianças ao circo rápido dos semáforos, aos becos da inalação de solventes, ao alcoolismo precoce.
A globalização econômica se espalha, alimentada pelo trabalho escravo de operários de oito anos costurando bolas ou tênis para multinacionais.
A falta de perspectiva dos jovens das comunidades periféricas prepara as chocadeiras das serpentes neonazistas e o caminho para a revolta cega e a rebelião violenta como as que a França tem vivenciado.
As crianças que vencem a barreira da miséria e nascem em lares privilegiados pela inclusão se vêem tragadas pelas ilusões do mercado de consumo e por um modelo educacional acrítico, que não quer formar seres humanos, mas apenas disponibilizar mão de obra barata, ordeira e qualificada ou eficientes capatazes do sistema.
O individualismo, a cultura da disputa, o mundo "big brother", ensinam que a vida é um "paredão" e, no zoológico humano sempre há que artificializar-se para as câmeras, sempre há que empurrar o parceiro ao limbo da derrota da solidariedade.
A baixa auto-estima corrói personalidades com a desconformidade da maioria aos padrões de beleza e consumo global. Aos quinze, meninas já enfrentaram duas plásticas. Mata-se por um tênis de marca.
Todos esses danos arrolados, a par de seu caráter objetivo e palpável, trazem junto a violência psicológica imensurável, o inconsciente repleto de pavores, o coração desregrado de afetos, a alma atormentada.
Perdão pela imagem, mas imaginemo-nos pegando um recém-nascido e pisoteando sua cabeça. É o que, como sistema, fazemos cotidianamente.
Disso tudo nascem o desespero e a alienação, o cinismo e a crueldade.
A crianças assim violentadas daremos ainda, por fim, um mundo de epidemias e desequilíbrios, com tsunamis e ondas de calor ou frio em descontrole, químicas cancerígenas pousadas no ar e na água, água potável escassa e privatizada, lavouras envenenadas. Deixaremos de herança as pragas do Apocalipse.
Perdoem-nos a longa digressão, mas essa é a realidade a atacar. É disso que esta dissertação trata. Com o advento da Constituição Federal e do ECA, a sociedade inaugurou uma nova ética, entendeu que é preciso salvar as crianças e os adolescentes do abismo impiedoso que essa mesma sociedade criou.
E para isso é preciso chegar antes. Almas infantis são cristais tão finos quanto belos. Quebrados, pode-se até obter da colagem dos cacos um vasilhame útil, mas as cicatrizes, as fissuras nunca se apagarão e ali, onde se pôs a cola, para toda a vida, o vidro será sempre mais frágil.
Por isso, proteção integral significa recolher as crianças no campo de batalha, ANTES que sejam moídas pelas metralhadoras. Significa tirá-las das ruas, ANTES que sua pureza seja maculada pelo estupro. Significa impedir o caminho do empresário desonesto e do traficante, ANTES que eles contaminem adolescentes inermes. Significa ensinar as defesas da educação verdadeira, formadora de inteligências versáteis e almas engrandecidas, anticorpos para a crueldade da existência moderna, ANTES do contágio da descrença.
Não se trata de criar redomas paternalistas e incapacitantes. Mas significa proteger a flor enquanto ainda é semente, para que um dia, como a flor de Drummond, rompa o asfalto, o nojo, a náusea e o ódio e nos purifique.
Proteger sementes. É disso que trata a proteção integral.
QUANDO A REDE DE PROTEÇÃO FALHA, O JUIZ ATUA
É certo que o Código de Menores concedia ao Juiz um papel de predominância que, efetivamente, não se reprisa no Estatuto, até porque seu princípio regedor é o princípio da ‘rede’ e não o da ‘pirâmide’, sendo, portanto, o Judiciário não um elemento superior aos demais, mas um dos cordames da teia de proteção e garantia.
Ventos democráticos fizeram bem em trazer, com inspiração participativa, essa divisão de tarefas entre Poder Público, famílias e sociedade. A radicalização democrática é a chave para um Brasil mais justo e includente. Entretanto, como bem diz RUBEM ALVES: "a democracia... é uma obra de arte coletiva" [31]. Logo, não há democracia real sem participação ampla e efetivo engajamento. E decisão partilhada exige responsabilidade dividida.
Num mundo ideal, a militância dos Conselhos Tutelares, a fixação de diretrizes e políticas locais pelos Conselhos de Direitos, o papel atuante do Ministério Público, as práticas do Executivo dirigidas pelos mandamentos da prioridade absoluta, se aliariam a uma ação mais presente e harmônica das famílias conscientizadas, apoiadas por uma sociedade vigilante e participativa.
Para muitos, ao Judiciário estaria reservado, em tese, um papel sempre relevante, sim, mas suplementar e específico, de controle administrativo das entidades e de prestação jurisdicional nos quadrantes do princípio da inércia, já que uma atuação global e integrada dispensaria sua maior presença.
Esse seria o melhor dos mundos. Mas o que vemos, em concreto, apesar de tantos esforços sinceros, é a quebra do princípio solidário da ‘rede’, desfalcando, assim, os mecanismos imaginados pelo legislador. Tal pode se dar pela inexistência, omissão ou desaparelhamento de Conselhos Tutelares, pela inação de muitos Conselhos de Direitos, pelo assoberbamento do Ministério Público, pelos desvios ou inoperância dos executivos municipais, e, mais grave, pela falta de consciência e preparo das famílias, agravados pela negligência da sociedade, em inédita crise de valores.
Desta soma de desfalques resulta uma infância cada vez mais desassistida e uma adolescência vendo abortados os horizontes de um desenvolvimento equilibrado e sadio. O crime, o vício, a gravidez precoce, a depressão juvenil, os barris de pólvora em que se vão transformando as escolas, o desnorteio familiar, são alguns dos subprodutos desse quadro.
Ora, não pode o Juiz da Infância verdadeiramente vocacionado se refugiar ao fundo da cena, no script que muitos entendem lhe ter sido dado, aguardando que os outros personagens, em tempo oportuno, completem seu aprendizado e retomem a consciência da importância do cumprimento de suas obrigações.
No palco, o bom ator improvisa para cobrir o lapso do colega que, em mau dia, esquece a fala. A ação diligente salva o espetáculo e alcança o aplauso. Tal objetivo é de todos, atores e platéia, e é ação solidária cobrir a atuação do ausente de forma a alcançar a satisfação geral, mesmo que isso não tenha sido prescrito pelo dramaturgo ou previsto pelo encenador. Não pode o Juiz da infância permanecer inerte. Tem ele responsabilidades com ‘o público’ e com os demais atores também surpreendidos pela ausência de algum dos protagonistas.
A provocação, em sentido estrito, é o uso do direito de ação. Na jurisdição menorista, provocação é mais. É, desde o auto de infração lavrado por servidor, ao requerimento de Conselheiro Tutelar, passando pela representação do parquet, até a lágrima da mãe aflita desfilhada pelas drogas, ou mesmo a visão direta do magistrado quando pára seu carro no sinal e vê pequenos mortos-vivos cheirando cola ao relento.
A ‘provocação’, em sentido amplo, se faz cotidianamente, por cada pedaço de futuro que desfalece em cada criança desassistida, abusada ou negligenciada.
O PAPEL DIFERENCIADO DO JUIZ DA INFÂNCIA
Antes falamos em ‘juiz vocacionado’. Deixemos claro que todo bom Juiz, em qualquer área em que atue, deverá ser verdadeiramente vocacionado. A tarefa de ‘dizer o Direito’, com todas as remissões ancestrais e oraculares que comporta, demanda uma consciência de sacerdócio e um espírito de missão. Não é um ‘emprego’ comum. Senso de cidadania, capacidade científica e elevados padrões morais necessariamente deveriam compor o perfil do bom juiz. Uma aguçada compreensão da realidade social em que atua deveria ser o estrado da sua ação judicante.
O professor capixaba JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF, juiz aposentado, assim discrimina as características que o fazer Justiça exige do papel do Juiz:
"(...)que esteja a serviço, (...) que não ocupe apenas um cargo, mas desempenhe uma missão. (...) que carregue nos ombros um fardo, mas que carregue um fardo com alegria porque vocacionado para serviço dos seus semelhantes, para o serviço do bem público. (...) Um juiz menos técnico e mais ético.(...) A lei como instrumento de limitação do poder é, sem dúvida, um avanço da cultura humana. É justamente a limitação do poder pela lei que caracteriza o Estado de Direito. Mas a tábua de valores de uma comunidade, de um povo, não está apenas na lei. Está sobretudo no estofo moral dos aplicadores da lei. Não há arquitetura política, sistema de freios do poder, concepção de instâncias superpostas a permitir a utilização de recursos contra despachos e sentenças, não há enfim engenharia processual e judiciária que assegure a um povo tranqüilidade e justiça se os juízes forem corruptos, preguiçosos, egoístas, estreitos, sem abertura para o social, ciosos apenas de seus privilégios e de suas vaidades". [32] (grifo nosso)
De um juiz assim especial se espera a postura já destacada, de ver a técnica jurídica como um caminho para a Justiça e não como um balneário ideológico onde refugie a sua consciência amortecida. Daí o alerta do professor e desembargador aposentado gaúcho, MÁRCIO OLIVEIRA PUGGINA [33]:
"Nossa tradição jurídica acadêmica, de índole estritamente dogmática, não aceita o julgamento contra legem, nem mesmo sob a justificativa de fazer-se justiça. (De alguma maneira, introjetaram em nossas cabeças ser muito perigoso, isto de fazer justiça). Com freqüência, o juiz, para fugir da pecha de não científico, ou de assistêmico, acaba amortecendo a sua consciência e aliena de si a responsabilidade ética pelo resultado de seu julgamento. Passa a ser talvez o único profissional com álibi perfeito para cometer injustiças: a culpa não é sua, mas do legislador; a lei justa é questão ética que se impõe ao legislador, não ao julgador. Pelo mesmo álibi, passam as justificativas doutrinárias e filosóficas que atrelam o juiz à letra fria da lei. Certo de que a lei justa é responsabilidade ética do legislador, mas a sentença justa ou injusta é inalienável responsabilidade ética do juiz". (grifo nosso)
As citações anteriores referem-se ao papel do Juiz, genericamente. Entende-se como necessário ao magistrado uma série de qualidades especiais: estofo moral, índole missionária, generosidade, coragem de romper com a técnica estrita, senso de justiça. Mas, devido à natureza da jurisdição que exerce, ousamos destacar que, do Juiz da Infância e da Juventude, se pede ainda mais.
Exige-se algo como o que MUNIR CURY entende necessário ao Promotor de Justiça em função de Curadoria de Menores e ao próprio Juiz da Infância:
"A postura exigível do Curador de Menores, longe de ser a de um funcionário burocrático, é de permanente inquietação, no sentido de se encontrar alternativas e romper o ortodoxismo jurídico. (...) Segundo Gaston Fédon, Presidente do Tribunal de Menores de Paris, o magistrado dos tempos novos é o Juiz das relações humanas, que intervém no coração dos conflitos que existem entre os menores e a sociedade, entre eles e sua família; ele vai além da família, relaciona-se também com a comunidade, as equipes técnicas, os serviços administrativos, as instituições particulares; deve obter a adesão da família; falar em linguagem não estereotipada, não convencional; deve ter uma educação contínua; ir além dos seus julgamentos; acompanhar as medidas decretadas; acompanhar o progresso das técnicas das ciências sociais e humanas; deve ser uma autoridade real e conhecida." [34] (grifo nosso)
Acresça-se ainda o que bem explicita o Juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, GUARACY DE CAMPOS VIANA:
"O Juiz da Infância e da Juventude, tem, portanto, atividades jurisdicionais puramente jurídicas – soluções de conflitos de interesses que resolvem definitivamente com sentença – e atividades jurisdicionais socializantes – no sentido de modificar a realidade, criar novos hábitos individuais, redirecionar vidas, reformar atitudes, promover a solidariedade social ou individual, lidar mais proximamente com a miséria e a degradação social, atuar nas causas da violência, enfim, construir, de certa forma, o futuro de parcela significativa da sociedade - (...) a lei nº 8.069/90, inspirada na doutrina da proteção integral da criança e do adolescente não permitiu que o formalismo processual embaraçasse ou impedisse o poder oficial do Juiz, facilitando e autorizando sua ação sem se ater à maneira como foi provocado, porque procurou dar prevalência à proteção da infância e ao interesse da criança ou adolescente. (...) A função primordial do Juiz da Infância e da Juventude é a correção dos desvios detectados entre a realidade e as normas constantes da Lei nº 8.069/90 e da CF. A ação do Juiz pode ser direcionada contra o causador dos desvios e não apenas em favor (ou contra) da criança e do adolescente" [35]. (grifo nosso)
De todo o exposto resulta cristalina a compreensão de algumas peculiaridades da ação do Juiz da Infância, absolutamente especiais em relação aos demais ramos de jurisdição. Dele se espera postura ativa, militante até, na defesa dos preceitos constitucionais e legais de que é especial guardião.
Exemplifica bem o papel do Juiz da Infância, a posição manifesta pela experiente magistrada da Comarca de Teresópolis, INÊS JOAQUINA SANT’ANA SANTOS COUTINHO:
"Colocam-se, os magistrados, muitas vezes, como lei viva, preenchendo as vacuidades de outras autoridades, desatentas para a defesa dos direitos de seus tutelados. Lutam contra a náusea social que adoece a comunidade. Lutam contra as dificuldades de entendimento dos que observam, com simplismo cético, seu idealismo. Impossível permanecerem neutros e passivos com o instrumento que o legislador lhes colocou nas mãos: o ECA. Impossível continuarem discursando e utilizando apenas os chavões surrados de defesa às crianças, que nem a elas enganam mais." [36] (grifo nosso)
Notar como os três últimos citados, do alto de suas experiências como Juízes menoristas, ressaltam o papel de agente de transformação social. É certo que não é aceitável retroceder ao protagonismo absoluto do Poder Judiciário nas políticas de proteção ao menor, mas, de outro turno, não se pode olvidar que tem o Juiz da Infância papel determinante, em complemento à sua função jurisdicional, sendo mesmo um multiplicador de cidadania, um formador de consciências.
Logo, não seria razoável dar-se ao magistrado tarefas especiais e diferenciadas, sem lhe disponibilizar adequados mecanismos para o bom exercício do mister que lhe compete.
Hoje, os defensores da Infância e da Juventude lutam ‘a braço’ disputando crianças com o tráfico, a miséria e a falência moral, patrocinadas por inimigos poderosos e bem servidos das armas de uma cultura midiática e individualista. Sem receio de parecer teatral: é uma guerra. Não se manda soldados desarmados à guerra. Usada com parcimônia, a Portaria Judicial pode ser uma competente defesa.
INFLUÊNCIA E PODER DO JUIZ DA INFÂNCIA
Do exposto até agora, verificamos a necessidade de que o Juiz da Infância esteja em condições de agir sobre a realidade para modificá-la em prol da promoção e preservação dos direitos da criança e do adolescente. Exerce, portanto, ressaltemos novamente, um papel fundamentalmente jurisdicional, mas de grande relevância política, no melhor da expressão, e influência social.
Em conceitos diversos dos comuns ao mundo jurídico, a ciência política distingue dois mecanismos de controle social, a influência e o poder. Quando influi, o agente político está na busca de determinar o comportamento do outro, incidindo nas suas escolhas, tornando-se relevante na sua opção de agir. Quando exercita poder, entretanto, o agente político busca condicionar um comportamento único do outro, impossibilitado de agir diferentemente. [37] BERTRAND RUSSEL é sucinto: "Poder é a produção de efeitos desejados" [38].
Tem sido e supomos que será sempre considerado em alta conta na sociedade o dizer extra-processual do Juiz da Infância, haja vista a sua opinião sempre tida por tecnicamente abalizada. Constituindo-se em referência moral, será sempre voz privilegiada em foros de debate e centros de discussão. As instituições, autoridades e ONG’s ligadas à criança em sua Comarca normalmente buscarão orientação e subsídios na sua oitiva. Estará, assim, portanto, exercendo sua influência, sempre importante.
Mas o que fazer, se sua voz não é ouvida em assunto urgente e relevante aos interesses que tutela? Como agir, se numa reunião com empresários de lazer não consegue convencê-los da necessidade de inibir eventual burla às políticas de proteção à infância (por exemplo, bilheterias frouxas em eventos para maiores de 18 anos que terminam invadidos por adolescentes depois flagrados, embriagados, às dezenas)?
Em tais situações é necessário mecanismo impositivo, que determine comportamento que, a priori, não possa ser contrariado. É necessário, portanto, não mais apenas o exercício persuasório da influência, mas também, com temperos, parcimônia e justificação, o imperativo do poder.
Da determinação genérica – sistematicamente desrespeitada – de vedação de ingresso a menores de 18 anos, parte o Juiz para, por Portaria, determinar, por hipótese, procedimentos verificatórios e inibitórios do ingresso de adolescentes (por exemplo, não aceitação de documentos de identidade por fotocópia ou carteiras originais de entidades não oficiais). Assim, a par das eventuais infrações detectadas pela presença de menores em recinto não autorizado, ou mesmo independente desta, ter-se-á infração autônoma caso constatada inobservância da ordem, por descumprimento de procedimentos discriminados.
No exemplo dado, mesmo que a fiscalização – nem sempre suficiente, nem sempre passível de estar presente a todos os eventos – não detecte qualquer menor no recinto, no momento em que o Comissário lá estiver, o eventual descumprimento das medidas determinadas com base no princípio da precaução que regeu a edição da Portaria aqui suposta obrigará à sanção do clube e/ou promotor do evento, por descumprimento ao artigo 249 do ECA [39]. Tal sanção é a garantia do cumprimento do preceito, e esta arquitetura da norma é que permite, neste caso, o exercício, não mais de mera e nem sempre atendida influência, mas sim de poder, nos limites necessários à proteção que se almeja.
Esta posição tem harmonia com a própria definição de Juiz de Menores, que embora saibamos vencida pelo novo Estatuto, é expressão que, significativamente, sem ressalvas, ainda adota edição recente do Vocabulário Jurídico de DE PLÁCIDO E SILVA [40]:
Juiz de Menores: juiz a que se comete o encargo de superintender e tomar conhecimento de todas as questões referentes a menores, resolvendo-as conforme determinação legal e tomando as deliberações e providências indispensáveis à proteção dos menores desamparados e à solução dos problemas que aos mesmos dizem respeito.
Logo, defende-se aqui que não seria prudente inibir, pelo impedimento à edição de portarias, o poder necessário ao exercício das funções do Juiz da Infância e da Juventude, para que ele não se torne, por mais reconhecido que seja, mera ‘voz que clama no deserto’!
INÉRCIA DO JUIZ DA INFÂNCIA É EXCEÇÃO
Em recente artigo [41], o Juiz da Infância de Jundiaí (SP), JEFFERSON BARBIN TORELLI explicita bem as peculiaridades da função do Juiz da Infância e da Juventude, quando afirma:
"O princípio da proteção integral consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, proclamado em seu artigo 1º, cobra do juízo menorista atuação sui generis e, dentre outras particularidades, desconsidera o princípio da inércia da jurisdição e obriga o magistrado, por regra, a atuar de ofício e só por exceção aguardar provocação"
Está o magistrado, em seu artigo, a sustentar a faculdade de o Juiz iniciar procedimento para apuração de infração às normas de proteção à criança e ao adolescente, por meio de Portaria. Tal iniciativa somar-se-ia àquelas exemplificadas no Art. 194, de provocação do Juízo pelo Ministério Público, pelo Conselho Tutelar ou por servidor ou voluntário credenciado, via auto de infração.
Com lógica cristalina, defende a tese de não ser razoável compreender-se vedada a iniciativa do Juízo, quando se dá a prerrogativa da provocação a um seu preposto, no caso, o serventuário ou colaborador que lavra autos de infração nas suas diligencias.
"Afinal, não teria sentido nem lógica assegurar ao subordinado a possibilidade de início do procedimento, mas negar ao seu superior hierárquico o mesmo poder. Quem pode o mais pode também o menos".
E mais, ataca o problema da suposta falta de isenção do julgador em caso de procedimento por ele mesmo instaurado, exemplificando com a prerrogativa explícita de se estabelecer procedimento de apuração de irregularidade em entidade de atendimento, por portaria, conforme prevê o artigo 191. Diz:
"Se o legislador houvesse enxergado a possibilidade, mesmo que remota, de qualquer perda de isenção do magistrado por iniciar procedimento de ofício, certamente não teria consagrado a possibilidade de início do processo de apuração de irregularidade em entidade de atendimento por portaria da autoridade judiciária, como o fez no artigo 191 do Estatuto da Criança e do Adolescente".
Em concordância com o exposto, entendemos que deve presidir a avaliação norteadora da aplicação dos princípios, a regra da ponderação, que determina a prevalência do princípio mais relevante. Logo, da mesma forma que o nosso ordenamento acolheu a possibilidade de relevar o princípio da liberdade contratual em favor do princípio da defesa do consumidor, elo mais fraco no processo de comercialização, não deve o princípio da inércia do julgador preponderar sobre o princípio da proteção integral.
Não nos esqueçamos ainda que dois capítulos do ECA consagram, no Título III, a prevenção como princípio norteador da ação garantidora de direitos da criança e do adolescente, impondo como "(...) dever de todos PREVENIR ocorrência de AMEAÇA ou violação (...)" (art. 70).
Notamos que o legislador não fala somente em ação acabada, mas em mera ameaça. Também previne a necessidade de complementação das obrigações que prescreve (sobre viagens, diversões em geral, comercialização de produtos), ciente da atualização necessária no confronto da norma com a multiplicidade de situações concretas do dia a dia.
Vendo o Juiz Menorista a ocorrência de situação de ameaça não explicitada na lei, terá que romper a inércia e agir, muitas vezes disciplinando situação por Portaria, em atendimento ao espírito do art. 227 da CF, ao ditame do art. 70 do ECA e ao princípio da precaução que, no caso, entendemos, prepondera sobre o princípio da inércia da jurisdição.
PODER DE POLÍCIA DO JUIZ DA INFÂNCIA
MIGUEL REALE, com sua habitual sabedoria, não se preocupou apenas em estabelecer a fórmula hoje tornada clássica por sua abrangência e brevidade, para definir o Direito em sua tridimensionalidade (fato-valor-norma). Estabeleceu ainda que aquela estrutura demanda ser éticamente bem fundada, formalmente bem produzida e, por último, o mais importante para nosso estudo: a norma precisa estar internalizada na consciência do coletivo a que se dirige como pré-condição de eficácia. [42]
Entendemos que a internalização somente se afere no teste que a norma enfrenta na aplicação concreta. Prima facie, o atendimento à mesma se comprova, pela consonância do comportamento social com o ‘fazer’ ou ‘não fazer’ estabelecido. Mas a prova dos nove quanto à adesão efetiva, particularmente nas normas de cunho administrativo, se fará quando do exercício pela autoridade de seu poder de polícia.
O poder de policia significa a norma em dinâmica plena, deixando seu estado potencial para ingressar no mundo real, e aí exercer, inclusive, papel formador e pedagógico a que a sociedade responderá com adesão ou transgressão e protesto.
A doutrina consagra definições de poder de polícia [43] que, para os fins deste trabalho, imaginamos, possam ser assim sintetizadas: poder do Estado de limitar direitos individuais em nome da prevalência do bem comum.
O poder de polícia se exterioriza de diversas maneiras, desde a edição de regulamentos, passando pela concessão de autorizações, até ações de fiscalização e controle, detecção de infrações, apreensão de bens e detenção de pessoas. Reforcemos a tese supra com a seguinte citação:
A manifestação material deste poder de interferência da Administração pode se dar, a partir do que BANDEIRA DE MELLO chama atos preventivos, fiscalizadores e repressivos. Dos primeiros (preventivos) seriam exemplo as autorizações e licenças as quais a Administração tem a competência de conceder ou não. Os atos fiscalizadores, de sua vez, seriam aqueles tais quais inspeções, vistorias e exames realizados pela Administração. E repressivos, os atos que importem, por exemplo, a produção de multa, embargo, intervenção de atividade e apreensões. [44]
Com essas definições podemos entender que, a par do poder de polícia específico que todo magistrado detém, como diretor do processo e autoridade administrativa da Vara, a lei atribuiu ao magistrado da área menorista, poder de polícia de caráter especial, autorizado pelo princípio da predominância do interesse público, no caso, a proteção integral à infância e adolescência, sobre o particular.
Se não, vejamos. A fiscalização que realizam os prepostos do Juízo, das quais resultam autos de infração e possivelmente, autos de apreensão de bens, ou mesmo, detenção de pessoas, são atos típicos de poder de polícia extra-fórum, extra-processo. São atos de poder discricionário administrativo, revestidos de auto-executoriedade, eis que o magistrado não precisa de qualquer assentimento.
São também ações típicas do exercício de poder de policia a concessão de autorizações de viagem e de alvarás permissivos do ingresso de menores de 18 anos em eventos ou estabelecimentos de lazer. Ao contrário do parentesco que tem o Alvará Judicial em geral, com o mandado, eis que ambos trazem ordem judicial oponível pelo mandatário ou pelo licenciado aos destinatários específicos, o alvará do Juiz Menorista, nos casos citados, é endereçado à coletividade, tem caráter de licença administrativa, logo, exercício de poder de polícia.
Definida a questão de cometimento de poder de polícia especial ao Juízo Menorista, temos, por conseguinte, a constatação de lhe ter sido também reservado não mais o poder normativo pleno ‘pré-ECA’, mas sim poder normativo residual, relacionado ao exercício do referido poder de polícia.
Aqui se relembre a máxima que determina que "quem dá os fins, deve prover os meios". Não há como exercer poder de polícia de característica especial, sem o mecanismo de, residualmente, sem ferir a legalidade, e, portanto, sem inovar, edição de normas próprias a facilitar aquele exercício. Assim ensina HELY LOPES MEIRELES:
No dizer de Cooley, «O poder de polícia («police power»), em seu sentido amplo, compreende um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado busca não só preservar a ordem pública, senão também estabelecer para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem necessárias para evitar conflito de direitos e para garantir a cada um o gozo ininterrupto de seu. próprio ´´direito, até onde for razoavelmente compatível com o direitos dos demais» («Treatise on the Constitucional Limitation), 1903, pág. 829) (grifo nosso) [45]
Veja-se, portanto, que o ‘estabelecer regras’ é elemento constitutivo do poder de polícia. Assim entendeu o legislador, quando, na única regra existente em nosso ordenamento sobre o assunto, definiu no art. 78 do Código Tributário Nacional:
Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a ´´Prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.(grifo nosso) [46]
Deve ser notada a distinção de vocábulos entre lei (‘regular’) e doutrina (‘regulamentar’), com conhecidas diferenças jurídicas. Entretanto, aqui não nos aprofundaremos, aceitando, primariamente, que o vocábulo do doutrinador explica a lei, e que o sentido geral é o de ‘ordenação de regras suplementares ou subsidiárias, instituidoras, praticamente, do modo de se conduzirem as coisas, já reguladas por lei’. [47]
Destaquemos que se tem entendido que diversos órgãos estatais e paraestatais, ao receberem atribuição de polícia, recebem, necessariamente, poder normativo específico e subsidiário na área de atuação. É o caso de órgãos controladores como a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Em trabalho sobre prerrogativas da CVM, assim esclarece o advogado com militância na área, PETRÔNIO R. G. MUNIZ:
(...)Os exemplos do Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil, e outros organismos dentre os quais se inclui a CVM, são flagrantes exemplos de que, no exercício de seu poder de polícia, esses órgãos procedem edição de normas, regulamentos e apreciam ilícitos, realizando um verdadeiro poder normativo de conjuntura dentro dos parâmetros gerais fixados em lei, o que não pode ser de outro modo, pena de inconstitucionalidade (...) (grifo nosso)
(...)Assim é que testemunhamos SANTIAGO DANTAS, no estudo Poder Regulamentar das Autarquias, concluir que: "a um órgão destinado essencialmente a coordenar atividades de particulares, e não a dirigir um corpo de funcionários, é indispensável o poder regulamentar... A ação disciplinadora seria impossível e ficariam frustradas as razões de sua criação, se o órgão se limitasse à prática de atos repressivos, sem poder enunciar, com caráter de generalidade, as normas veiculatórias de sua política econômica. Mais nítida se torna essa capacidade quando é a própria lei que faz apelo ao seu pronunciamento integrativo". [48]
Notar que todos os exemplos acima situam-se na área de funções do Poder Executivo, a quem, originariamente compete o poder normativo geral, e de quem, em face do poder de polícia delegado, se deriva o poder normativo subsidiário.
Na mesma linha, trazemos discussão relativa às diversas Agências Reguladoras que hoje atuam no controle de diversas áreas da produção nacional. Em parecer encomendado pela Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos-AGR, intitulado ‘Poder normativo de agência reguladora estadual: competências’ o professor NELSON FIGUEIREDO, da UFG, estuda o tema:
Citando MARÇAL JUSTEN FILHO: "(...)O STF teve oportunidade de examinar, ainda que com a sumariedade inerente ao julgamento de liminares, o tema da competência normativa abstrata reconhecida a uma agência reguladora. A conclusão do julgamento, por apertada maioria, indica a complexidade do tema. Mas pode assinalar que a orientação consagrada foi de que a Constituição impõe limitações à competência normativa abstrata das agências, que se pode desenvolver apenas como manifestação de cunho regulamentar não autônoma."
(...) Todavia, a competência normativa abstrata entendida apenas como "manifestação de cunho regulamentar", não exclui, antes reafirma, a competência para preencher, por ato normativo o campo da discricionariedade deixada pela norma legal ou regulamentar, quando esta provier de outra instância administrativa – por exemplo, da chefia do Executivo. [49]
Parece razoavelmente ilustrado o que defendemos, que a um poder de polícia de natureza especial concede-se poder normativo subsidiário. O debate na área da funções executivas parece levar à predominância de tal reconhecimento, ainda que com todas as ressalvas e preocupações quanto à legalidade dos atos administrativos derivados de tal faculdade.
Mas o Juiz Menorista não é preposto do Executivo e talvez melhor lhe supra a constatação do poder de polícia cometido ao Juiz Eleitoral, de que deriva poder normativo subsidiário, a ser exercido de forma a preservar a lisura do pleito que preside – bem comum mais relevante frente a interesses particulares. Como exemplo disso, vejamos extratos da Portaria 01/02 do Juiz Eleitoral da 36ª Zona de Campo Grande MS:
Considerando que compete ao Juiz Eleitoral, no exercício do poder de polícia, adotar providências necessárias para assegurar o cumprimento da lei e a manutenção da ordem pública, durante o período de propaganda eleitoral; (...) Art. 1° Proibir a instalação e o uso de alto-falantes, amplificadores de som ou similares, com a finalidade de propaganda eleitoral, nos dois sentidos da Avenida Afonso Pena, nesta capital, no espaço compreendido entre as Ruas Pedro Celestino e 14 de Julho;
Sobre a competência do Juiz Eleitoral para o exercício do poder de polícia, inclusive com a edição de Portarias, trazemos o julgado que segue, lavrado pelo TRE-MG, em que foi mantida decisão expressa em portaria:
Mandado de Segurança n.º 4151/2004. Montes Claros/184ª. Impetrante: IBOPE - Opinião Pública Ltda. Impetrado: MM Juiz Eleitoral. Assunto: Contra ato que, por meio da Portaria de nº 001/2004, suspendeu a publicação de todas as pesquisas eleitorais. Pedido de Liminar. Eleições 2004. Relator: Juiz Weliton Militão dos Santos. Decisão: Denegaram a ordem, vencido parcialmente o Juiz Antônio Lucas Pereira que extinguia o processo. [50]
Esperando haver esboçado um rumo de entendimento quanto ao poder de polícia do Juiz Menorista, das últimas citações teremos, inclusive, possibilidade de ocorrência da discrepância de um mesmo juiz, acumulando funções, poder estabelecer determinações na área eleitoral, sem a mesma contrapartida na área da infância, sendo que ambos os bens tutelados por sua jurisdição guardam grave relevância pública, com evidente primazia para a jurisdição menorista!
PODER DISCRICIONÁRIO DO JUIZ
Parece-nos que o assunto abordado neste trabalho vai de encontro a amplo e secular debate doutrinário e filosófico sobre a existência e os limites do poder discricionário do magistrado, já que o que se defende é, a teor do art. 153, sem vinculação com o rol do art. 149, a livre escolha do Juiz sobre a medida a prestar diante de fato que lhe demande ação, podendo esta ser um procedimento, a edição de uma Portaria, ou mesmo a ausência de qualquer atitude.
O debate se alimenta dos receios de abuso e arbítrio. Mas dele se vê como impossível que o Juiz não tenha ‘margem de manobra’ diante de situação concreta que escapa à minúcia das hipóteses legais.
KELSEN [51], prevendo a hipótese da lacuna, aceita a discricionariedade do Juiz. Lembre-se o conceito de ordenamento como moldura, dentro da qual o Juiz escolheria, dentre as opções possíveis, aquela ajustada ao caso concreto. Kelsen alça a discricionariedade do juiz ao patamar de integrante do próprio ordenamento, embora ressaltando, dentro da sua construção piramidal, a necessidade do fundamento de validade da decisão.
HART, igualmente, previu a hipótese da lacuna, a que chamou de "casos difíceis" (hipóteses em que a lei seria omissa ou confusa), a serem resolvidos pela ação discricionária do Juiz, que, ressalta, não se fará por escolha arbitrária ou irracional, eis que, necessariamente se balizará em norma válida.
Já RONALD DWORKIN refutou a tese dos "casos difíceis", preocupado em garantir a concepção de que no ordenamento não haveria espaço para o poder discricionário do Juiz. Para ele, o fato de os magistrados utilizarem outros critérios que não apenas as regras, na aplicação do Direito, não significa que estejam agindo discricionariamente, mas apenas aplicando elementos estruturantes do próprio ordenamento. E, neste particular, ganham relevância os princípios, pois são eles mesmos integrantes do ordenamento, e, por sua generalidade, ocupam posição de predominância sobre todas as esferas do direito.
Como não nos compete no âmbito deste trabalho ingressar na relevante discussão acadêmica, importa destacar o comum a todos os autores, ou seja, a constatação da inevitabilidade de que o magistrado recorra a mecanismos ausentes das normas específicas, mas presentes na concepção global do ordenamento, sejam eles trazidos à decisão por discricionariedade ou vinculação aos princípios.
CONTROLE DAS AÇÕES DO JUIZ DA INFÂNCIA
Do que temos defendido, pode restar como dúvida que se pretenda a instituição de um juízo plenipotenciário, exercido por ‘super-juiz’, sem controle. Nunca. Além de submetido à disciplina correicional regular, estarão sempre, suas decisões - inclusive as veiculadas em Portarias – submetidas à fiscalização do Ministério Público e à regra geral do duplo grau de jurisdição.
Aliás, destaque-se aqui a mais relevante diferença entre a Portaria do antigo Juiz de Menores e a Portaria cujo uso defendemos ao Juiz da Infância. Esta tem controle jurisdicional regular, a teor do art. 191 do ECA. A lei anterior recomendava "prudente arbítrio", alertava sobre eventual responsabilidade por "abuso ou desvio de poder", mas não firmava o controle jurisdicional [52].
Não bastassem outras razões, por esta logo se vê que a Portaria que defendemos não é, como tem sido afirmada, a mesma do antigo Código de Menores. Portanto, a prerrogativa que aqui defendemos não é arbitrária, não é excessiva, não é inconstitucional, não fere a legalidade, respeita o Estado de Direito, e está submetida a controle. É, antes, uma prerrogativa instrumental, amparada em preceito constitucional, que serve às características especiais da jurisdição peculiar da infância e juventude.
Mas, perguntemo-nos ainda: uma tão larga margem de ação ao Juiz da Infância, como a aqui defendida, poderá gerar monstruosidades, arbitrariedades e excessos? Certamente não mais do que eventualmente ocorre na jurisdição regular, em decisões que precisam de reforma. Entender diferente seria negligenciar a importância das instâncias e subdimensionar a vigilância do Ministério Público.
Cabe ao Ministério Público a fiscalização diuturna sobre a ação do magistrado, recorrendo, sempre que necessário, dos atos que considerar juridicamente descabidos, prerrogativa, aliás, facultada a qualquer jurisdicionado alcançado pela decisão. Qualquer decisão absurda sempre poderá ser corrigida por superior instância.
O magistrado está, também, sujeito a controle correicional e disciplinar próprio, que, por óbvio, observando reiteração de ilegalidades e abusos, poderá acionar adequados mecanismos de controle.
Outra forma inteligente de combate ao abuso e à teratologia é o estímulo à auto-organização dos magistrados da área. Do saudável debate, da troca de experiências, podem magistrados iniciantes somar ao seu saber jurídico o acúmulo da vivência do colega mais antigo.
E, melhor, de tais reuniões sempre poderá surgir o mecanismo eficiente e adequado da "Portaria-Conjunta", já adotado nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, dentre outros, que uniformiza argumentos e parametriza normas a serem adequadas a cada Comarca conforme suas peculiaridades. Isso contribui para, por exemplo, evitar a possível confusão de decisões injustificadamente divergentes em Comarcas vizinhas.
Não se deve esquecer ainda a aprovação de enunciados que passam a representar o pensamento vigente em determinada área, condensando e consolidando entendimentos que passam a orientar os operadores do direito.