III – BASE LEGAL
O ROL DO ARTIGO 149 É EXEMPLIFICATIVO
Do exposto no já citado artigo do Dr. TORELLI (capítulo sobre inércia do juiz), temos a sustentação da hipótese de que o Juiz baixe portarias à parte do rol do art. 149, que seria, desta forma, exemplificativo, e não taxativo, como querem muitos.
O rol é exemplificativo e dentro de uma referida hipótese, qual seja, a de regular acesso de menores a diversões públicas, como também exemplificativo é o do art. 148 (ISHIDA, op. Citada, pp. 266: "Entendemos que o rol não é taxativo, posto que não abarca todas as hipóteses de competência da vara menorista").
Basta ver que todas as competências administrativas ou complementares que são explicitamente enumeradas no Estatuto ou restam óbvias por implícitas, não foram elencadas. São exemplos do que se diz: a supervisão administrativa específica prestada aos técnicos da equipe interprofissional, eis que lhe são subordinados, como prescreve o Art. 151; a instauração – por Portaria, peculiaridade que trataremos à frente – de procedimento para apuração de irregularidades em entidades de atendimento (art. 191); a supervisão da fiscalização implícita na possibilidade de lavratura de autos de infração elaborados por servidores ou colaboradores, (art. 194); a possibilidade de instaurar procedimentos verificatórios e tomar providências não legalmente prescritas (art. 153); a concessão de autorizações de viagem (art. 83).
Sendo a lei um sistema ordenado e com lógica própria, não haveria sentido em, para artigos tão próximos, adotar o legislador métodos descritivos tão diferenciados, sem ressalva clara de exceção. Veja-se que, em momento algum, em todo o ECA há especificada vedação à edição de portarias! Há, apenas, a ressalva do art. 149 que, trazendo rol exemplificativo, exige apenas que não ocorram ordens de caráter geral para aquelas hipóteses.
Taxativo é, sim, por exemplo, o rol do art. 122, em que uma simples partícula – ‘só’ – assim o define (art. 122: A medida de internação SÓ poderá ser aplicada quando:(...)).Não se diz: ‘É proibido ao juiz edição de Portarias fora das hipóteses acima previstas’. Diz-se: ‘Quando da edição de alvarás e Portarias nas hipóteses acima previstas, são vedadas as determinações de caráter geral’! Parece-nos límpido.
Segue-se a isso jurisprudência que identifica restrição à generalidade e, portanto, vinculação ao rol do art. 149 apenas para alvará. É o entendimento, por exemplo do Tribunal de Justiça paulista, como se vê, ainda em ISHIDA (pp. 268/269):
Estabelecimento comercial – Alvará denegado em face do disposto no art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente – Admissibilidade – Pretendida a nulidade da Portaria Conjunta n. 1/90, sob alegação de existência de antinomia entre o caput e § 2º do art. 149 à análise caso por caso, vedando as disposições gerais, entende-se que essa proibição diz respeito somente aos alvarás e não às portarias, do caput, eis que inviável a análise particular quanto a estas. O conceito de portaria, ademais, é diverso daquele de Direito Administrativo, pois vincula particulares. Assim, a Portaria Conjunta n. 3/90, de caráter geral, não é nula porque o § 2º do art. 149 não a atinge, mostrando-se correta, por objetivar a proteção do menor nos termos do art. 227 da Constituição da Republica de 1988. (Rel. César de Moraes – Apelação 13.470-0-SP-266-91).
Assim, acolhendo (e acrescendo) a tese do Dr. TORELLI, por determinação do próprio ECA, competiria ao Juiz a faculdade de baixar as Portarias explicitadas nos artigos 149 (disciplina de entrada e permanência de criança ou adolescente em casas de espetáculo e/ou de lazer e eventos pertinentes) e 191 (apuração de irregularidade em entidade), mas também as necessárias em face do Art. 194, quando, tomando ciência de irregularidade não atacada pelo MP, pelo Conselho Tutelar ou mesmo por Auto de Infração, sendo-lhe vedada a inércia, deverá instaurar procedimento de apuração por Portaria específica.
Logo, por norma legal, por, data venia, exegese adequada e por razoabilidade, tem-se largamente rompido o rol do artigo 149, de que emerge a hipótese que defendemos de que – sem inovar, mas trazendo a lei à minúcia e com sólida fundamentação -, pode o Juiz Menorista, com parcimônia, editar ainda todas as Portarias que se fizerem necessárias ao bom cumprimento da jurisdição que lhe foi cometida.
A INTELIGÊNCIA DO ART. 153 DO ECA
Já discorremos antes sobre a impossibilidade de lacuna no ordenamento jurídico, e sobre a imperiosa necessidade de o magistrado exercitar a sua criatividade jurisprudencial. E aqui, tomemos o termo juris-prudentia na sua melhor acepção de "direito aplicado com sabedoria" [53].
Ora, ao prever a impossibilidade de lacuna em sentido lato, está o legislador, na verdade, admitindo exatamente o oposto sob ótica estrita. Ou seja, ele admite que a minúcia da lei poderá não cobrir em plenitude todas as variações e possibilidades de fatos jurídicos a serem examinados pelo magistrado. Mas alerta para a realidade sistêmica do ordenamento que, por ser um todo complementar e lógico, sempre municiará o Juiz do mecanismo que instruirá a decisão justa e adequada. E neste ponto, os preceitos constitucionais e os princípios de direito são elementos fundamentais para a ação judicante.
Com a mesma inteligência, previu o legislador menorista a impossibilidade da lacuna, impondo ao Juiz da Infância a criatividade jurisprudencial. Assim diz o Art,. 153 do ECA: "Se a medida judicial a ser adotada não corresponder a procedimento previsto nesta ou em outra lei, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério Público.".
Registre-se que, para o ECA a figura da Portaria, no âmbito da Justiça Menorista, guarda caráter híbrido. Sendo figura administrativa típica [54], serve, entretanto, à jurisdição, e é, por conseqüência, "medida judicial", garantida pelo Art. 153. Tanto é assim que, referindo-se a medidas determinadas com base no Art. 149, que prevê disciplina de eventos e locais de diversão por Portaria ou Alvará, estabeleceu o Art. 199: "Contra as decisões proferidas com base no art. 149 caberá recurso de apelação".
Por tal construção, data maxima venia, entendemos, inclusive, com o magistrado GUARACI DE CAMPOS VIANA, que seria impróprio o mecanismo da revisão administrativa, como a promovida pelo Conselho da Magistratura na resolução citada ao início, das Portarias Judiciais menoristas:
A competência administrativa exercida através de portarias e alvarás de caráter específico (vedadas as deliberações genéricas) está definida no art. 149 da Lei n. 8.069/90, sendo relevante esclarecer que a Lei equiparou a esfera administrativa à esfera jurisdicional, no que concerne aos efeitos jurídicos, como se vê, por exemplo, no art. 199 da Lei n. 8.069/90, admitindo o reexame do recurso através da apelação. Com essa equiparação do ato administrativo a provimento jurisdicional não tem mais cabimento, concessa vênia, a remessa de portarias dos Juízes da Infância e da Juventude aos órgãos da superior administração do tribunal (Presidência, Corregedoria, Conselho de Magistratura) nem, tampouco, o reexame de ofício, por quaisquer desses órgãos. Vale dizer, se não houver recurso de apelação, não pode a segunda instancia impor, por exemplo, a cassação ou alteração de uma Portaria específica. Opera-se a denominada "coisa julgada administrativa" [55]
Com tal entendimento posicionou-se o STJ, por sua 4ª Turma, em julgado referente a Mandado de Segurança impetrado pelo Ministério Público em face de Portaria Conjunta expedida por Juizes da Infância e da Juventude da Comarca de São Paulo: "Ato de natureza jurisdicional. Havendo recurso próprio para atacar a matéria contra a qual se insurge a parte, descabido é o uso do mandado de segurança. Recurso ordinário improvido" (ROMS n° 1. 343/SP, 4S Turma, Relator o Senhor Ministro Barros Monteiro, DJ de 23.05.94).
Logo, a Portaria pode revestir-se, de per si, do caráter de "medida judicial", eis que ela pode ser o instrumento para as "providências necessárias". E nem se diga que faltaria a tal mecanismo a oitiva do Ministério Público, determinada no art. 153, já que, de todas as Portarias sempre faz o Juízo chegar cópia ao parquet, a quem, em papel de fiscal da lei competirá, quando necessário, atacar a medida por recurso adequado.
LEGALIDADE DAS PORTARIAS NORMATIVAS
Têm objetado, os que sustentam impossibilidade de edição de Portarias, que as mesmas ferem o princípio da legalidade – ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, senão em virtude de lei (CF - art. 5º, II). Parece-nos que não se sustenta tal hipótese. JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que "o princípio da legalidade (...) não exclui atuação secundária de outros poderes" [56]. E cita o italiano MASSIMO SEVERO GIANNINI:
"Não é necessário que a norma de lei contenha todo o procedimento e regule todos os elementos do provimento, pois, para alguns atos do procedimento estatuído e para alguns elementos do provimento pode subsistir discricionariedade."
O constitucionalista conclui que "isso quer dizer que os elementos essenciais da providência impositiva hão de constar da lei", ou seja, a lei será sucinta, vindo a minúcia por norma própria.Esclarece ainda a distinção entre ‘legalidade’ e ‘reserva de lei’, aquela submetendo abstratamente a coletividade ao império da lei, genericamente, e a última, determinando que temas discriminados só poderão ser regrados por lei formal, emanada do Legislativo.
Não há reserva de lei nos temas da Infância. Temos o art. 227 da CF, preceito vinculante de todo o ordenamento e lei específica, que a ele se submete, não o revogando, por absurdo, e, mais, efetuando ressalva de omissão legal, entendendo, no art. 72 ("As obrigações previstas nesta lei não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos princípios por ela adotados") que o ECA não exauriu as disposições relativas à proteção da infância e da adolescência.
Mais evidente a tese se torna no exame do art. 3º: "A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou POR OUTROS MEIOS, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade".
A Portaria Judicial fundamentada, no exercício do poder discricionário (art. 153), resguardado em poder normativo subsidiário, implícito na atribuição de poder de polícia menorista depreendido das várias atribuições da espécie cometida ao Juiz da Infância e da Juventude, é ‘outro meio’ previsto no art. 3º, tudo, em última instância, atendendo a preceito inscrito no art. 227 da Carta Maior. Não há como, de plano, atribuir-lhe ilegalidade.
A legalidade se reforça no exame do que JOSÉ AFONSO DA SILVA define como princípios complementares e garantes do princípio da legalidade. A inafastabilidade do controle jurisdicional, o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada, como ainda a irretroatividade das leis. Logo, sendo a Portaria Judicial passível de controle jurisdicional, como prevê o art. 199 - lido extensivamente para abrigar no rito os comandos ‘extra art. 149’ –, se não fere os demais princípios complementares, não há ilegalidade.
Fechemos aqui, com o exemplar trecho de voto acolhido por unanimidade, proferido pelo Desembargador ALMEIDA MELO quando relatou na 4ª Câmara Cível do TJMG a Apelação 190.759-1/00:
(...)As portarias, atos normativos que são, explicitam o conteúdo da lei, a fim de que sua aplicação seja possível, alcançando-se o interesse que justificou a criação legislativa. Certamente, não seria legítimo que tal instrumento alterasse o comando legal ou ultrapasse seus limites. Assim, fala-se na impossibilidade de que o ato normativo inove. Contudo, a vedação à inovação não retira dos atos normativos a possibilidade de interferirem ou acrescentarem normas, até porque, se assim fosse, nada justificaria sua existência. A máxima que consagra a proibição de inovação traduz, em verdade, a idéia de que há uma relação de subordinação entre tais atos e a norma legal, razão pela qual a norma só é legítima se descansar em comando legal. A venda de bebidas alcoólicas é proibida a criança e adolescentes, nos termos do art. 81 da Lei 8.069/90. O dever que surge para a sociedade como um todo, e para a apelante no caso particular, encontra sua origem na lei que o obriga a realizar conduta omissiva, qual seja, deixar de vender bebidas alcoólicas a menores. A portaria nada mais faz que tornar esta norma exigível, sem lhe alterar as características próprias, até porque o estabelecimento somente se desincumbe do dever legal, deixando de comercializar bebidas alcoólicas, quando investiga a idade de seus "clientes", pois o empirismo não é suficiente para evitar a infração legal. Portanto, não há ilegalidade na exigência de apresentação do documento de identidade." (...) [57] (grifo nosso)
A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Acórdãos pesquisados em que o STJ negou recursos contra sentenças condenatórias baseadas em descumprimento de Portaria de Juiz Menorista [58], trazem indicações de que, também naquela Corte, parece correr entendimento que somaria com os que defendem rol estrito. Entretanto, não localizamos decisões em que o mérito indicasse tal posicionamento de forma cabal e expressa.
De outro lado, em julgado que passamos a considerar, manifestou-se o STJ sobre o tema, de maneira favorável à edição de Portarias, ressaltando a condição peculiar da jurisdição menorista.
Foi em caso em que o Ministério Público do Estado do Maranhão insurgiu-se contra Acórdão da segunda instância que manteve válidas duas Portarias da Juíza da Comarca de Imperatriz-MA (MS n° 8.563 (1997/37892-6)).
A primeira Portaria (01/96) objetivava inibir "a permanência de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos nas ruas, praças, casas de videogames, fliperamas, bares, boates ou congêneres, logradouros públicos, parque de diversões, clubes, danceterias, após as 20:30, salvo se acompanhados estritamente, pelos pais ou responsável". A Portaria complementar (02/96) determinava procedimento investigatório e expedição de mandado de condução das crianças e adolescentes nas situações referidas.
Em julgamento relatado pelo Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO a 4ª Turma do STJ, ao negar a segurança, por unanimidade, firmou: "...esclareço que as Portarias impugnadas pela via do mandamus não encerram conteúdo teratológico" e fundamenta com a transcrição de trechos do Acórdão atacado, em que se declara:
"É atribuição da autoridade judiciária disciplinar, mediante portarias e alvarás, tudo o que vise a proteger a criança e o adolescente, como pessoas em condição de desenvolvimento, resguardando-as de toda sorte de negligência, que coloque em risco a sua dignidade e o respeito a que têm direito" acrescendo que "isso não implica em violação aos seus direitos e garantias fundamentais". (grifo nosso)
Parece óbvio que, ao basear seu voto vencedor nos termos do Acórdão do Tribunal maranhense, que fez transcrever, emprestou-lhe o eminente relator sua concordância, fazendo-o, naquele caso, pronunciamento do próprio STJ.
Em outra transcrição, é destacado o caráter especial da jurisdição menorista, ao afirmar que:
"... o permanente estudo das questões atinentes à criança e ao adolescente, constitui obrigação dos setores organizados da sociedade, dentre os quais o Poder Judiciário, que não pode se furtar de oferecer a sua parcela de contribuição, coliinando escopo de conferir-lhes proteção integral...".
Entendemos reforçar-se neste ponto do voto a necessidade da criatividade do magistrado que, estudioso da matéria e atualizado sobre as demandas, deverá sempre oferecer respostas novas e soluções adequadas a ramo do direito de dinâmica tão veloz.
Em nova transcrição nos instrui ainda o ilustrado voto, sobre a justa compreensão do que seriam as "medidas de caráter geral", vedadas pelo Estatuto no Art. 149:
"De outra parte, não se pode acolher a afirmação de que tais Portarias contenham determinações de caráter geral, se a lei prevê medidas fundamentadas, caso a caso. Basta que se leia o teor dessas portarias, para se tenha certeza de que são especificamente dirigidas aos menores com idade máxima de até 14 anos de idade, desde que desacompanhados de seus pais ou responsável, após as 20:30 horas, e bem assim aos menores que estejam perambulando pelas ruas, na condição de pedintes, e consumindo drogas, mostrando-se razoável a medida tomada pela impetrada". (grifo nosso)
Ou seja, o TJ-MA entendeu, secundado pela Corte Superior, que a fundamentação ciosa e a objetivação clara – não restrita ao rol do art. 149! -, desde que respeitados os princípios da proteção integral, se bastam para a justeza da ordem judicial.
O recurso questionava ainda Portaria que, complementar à primeira, determinava procedimento investigatório para os casos de apreensões de menores, argumentando que, por baseada no Art. 153, estava a mesma viciada de irregularidade por ausência de oitiva do MP. E aqui, pronunciou-se o STJ:
"Quanto à Portaria n° 02/96, a irresignação recursal vem pautada no artigo 153 da Lei n° 8.069/90. No entanto, não restou caracterizada a mencionada contrariedade, já que foi determinada a oitiva do Ministério Público, o que foi cumprido com a expedição do oficio n° 77/96 (fis. 14), ficando ciente a Promotora da Infância e Juventude do inteiro teor da referida Portaria. Ademais, como bem disposto no Parecer do Ministério Público Federal, ‘percebe-se que é da natureza do impulso oficial a desnecessidade da oitiva prévia do Ministério Público’ (fis. 275)".
Outro interessante pronunciamento é o que se colhe no exame da negativa do STJ, por sua 4ª Turma em julgamento – já antes mencionado - de Recurso em Mandado de Segurança nº 1.343 (91.0020499—4) SP impetrado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra Portaria Conjunta dos Juizes da Infância e da Juventude Comarca de São Paulo (nº 03/90, que estabeleceu restrições à entrada e permanência de criança ou adolescente em locais de diversões públicas, independentemente de acompanhamento dos pais ou responsáveis).
O recurso foi vencido por descabido o mandado de segurança quando a lei prevê, como é o caso, o recurso de apelação. Mas do caso, tem-se que a fundamentação do impetrante argüia que "b) as medidas deverão ser fundamentadas caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral". Constam do relatório do Acórdão as circunstâncias da decisão da Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo que denegou a segurança:
"sob o fundamento de que a Portaria em tela tem amparo no art. 227 da Constituição Federal e no art. 6º da Lei n 8.069/90, sendo prescindível a ouvida prévia do Ministério Público em face da natureza do ato. Aduziu o V. Acórdão ser inexeqüível numa cidade como São Paulo a exigência de serem as portarias fundamentadas caso a caso, vedadas as de caráter geral".
Note-se aqui o recurso à determinação constitucional que estabeleceu o princípio da proteção integral e especial à infância e adolescência, e mais, a verificação de que a atividade jurisdicional, ao interpretar o ECA, deverá ter em conta, como diz o Artigo 6º, "as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento".
Notar mais, que o Tribunal de São Paulo manteve íntegra Portaria Conjunta – que permanece em vigor! - sob argumento de ser inexeqüível a fundamentação caso a caso e a vedação ao seu caráter geral, dadas as peculiaridades e complexidades da Comarca de São Paulo!
A LEI BRASILEIRA AMPARA A ATUAÇÃO DE OFÍCIO DO JUIZ
Sempre em busca de fazer justiça, tem-se que o Direito é mecanismo e o processo, ferramenta. Logo, não podem estes últimos obstar o alcance do primeiro. Por visão assim sensível, estabeleceu o ordenamento jurídico nacional diversas exceções que privilegiam a atuação de ofício do Juiz, em prol do equilíbrio da demanda, de forma a que, desta, se alcance efetiva justiça.
Exemplos do que se diz, na área cível, são os dispositivos que permitem ao Juiz decidir cautelares sem audiência das partes (Art. 797 CC) e optar pelas que "julgar adequadas" (Art. 798 CC). Diz ANTONIO LUIZ BUENO DE MACEDO [59] que esse poder concedido ao Juiz, "de deferir qualquer medida acautelatória, tendo em vista a situação de cada caso, é um poder essencialmente discricionário, considerando a oportunidade e a conveniência de sua adoção, denominado pela doutrina como Poder Geral de Cautela do Juiz".
Citado pelo mesmo autor, GALENO LACERDA, in Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, VIII Vol, Tomo I, 2ª Edição, considera tal atribuição como a mais importante e delicada atribuição confiada à magistratura. Para ele,
"no exercício desse imenso e indeterminado poder de ordenar as medidas provisórias que julgar adequadas para evitar o dano à parte, provocado ou ameaçado pelo adversário, a discrição do juiz assume proporções quase absolutas. Estamos em presença de autêntica norma em branco, que confere ao magistrado, dentro do estado de direito, um poder puro, idêntico ao do pretor romano, quando, no exercício do imperium, decretava os interdicta". (grifo nosso)
Notar que, nitidamente, a lei busca garantir o equilíbrio da relação processual, através da intervenção do Juiz em favor de alguém em episódica desvantagem. Isso não parcializa a sua atuação, nem o macula de suspeição, eis que o fará sempre dentro da legalidade e respeitando critérios de razoabilidade, que explicitará na fundamentação do decisum. Tal intervenção, facultada pelo legislador, é parte indissociável da função judicante, pois integra o mister de buscar a solução justa.
Não esqueçamos de outras licenças concedidas ao Juiz para atuar em prol do equilíbrio da relação processual, sempre almejando a justa decisão. Lembramo-nos aqui da possibilidade, ainda que em caráter de exceção, do uso do ‘juízo de eqüidade’ quando o juiz pode julgar sem qualquer limite material, resolvendo a controvérsia sem recorrer a uma norma legal preestabelecida [60]. E ainda anote-se a possibilidade de ‘inversão do ônus da prova’, como consentida pelo Código de Defesa do Consumidor.
Ora, se a lei protege o mais fraco, o que tem perspectiva de ver perecimento de direito, não podemos olvidar, trazendo, por analogia, o mesmo permissivo para o âmbito da infância e da juventude, que, frente a um sistema econômico excludente, a uma ótica empresarial que preza a lucratividade a qualquer custo, a executivos que não cumprem o dever constitucional de prioridade à infância, acham-se, criança e adolescente, sempre em situação de inferioridade e subjugação.
Portanto, entendemos plenamente razoável que, se a lei facultou a atuação de ofício em casos em que pretendia preservar o equilíbrio da lide, esteja o Juiz da Infância autorizado a, tendo em conta o conteúdo do Art. 6º do ECA ("Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento") [61], atuar de ofício, criteriosa e comedidamente, é certo, mas atuar sempre, em defesa da infância desfavorecida. E isso, no entendimento aqui defendido, se fará, freqüentemente, pela via da edição de Portarias normativas.