IV – NECESSIDADE PRÁTICA DA PORTARIA
ÉPOCA DE TRANSIÇÃO
No Brasil diz-se de leis que numas vezes "pegam", noutras "não pegam". O comentário contumaz ressalta a ilusão recorrente, neste "país dos bacharéis", de que um novo diploma legal, por si, provoque transformações na realidade. Há leis que vêm referendar o que já consagrou a jurisprudência pela consulta ao consuetudinário. Exemplo disso é o novo Código Civil que põe em norma o que já era consenso social no concernente a casamento, conceito de ‘mulher honesta’, união estável, etc. Há também casos de leis que violentam o sentimento médio da comunidade e terminam em desuso, como já vimos.
Mas há outras leis, por vezes, que surgem mais como um anseio do que como realidade. É o Estado exercendo sua necessária liderança em busca de fazer a sociedade avançar. Um exemplo simplório disso é o dispositivo da lei de trânsito que tornou obrigatório o uso do cinto de segurança. Não havia a prática, consagrada, e nem a compreensão de sua justeza e necessidade. A lei veio, inicialmente, com fins pedagógicos. Até que se consolidasse, ‘pegasse’ efetivamente, vivenciou-se grande período de transição, em que aprendemos todos, motoristas antigos, motoristas noviços, instrutores, guardas de trânsito, a conviver com a nova realidade. Com paciência, alguma tolerância, e, a seguir, maior rigor na aplicação da norma, atingimos hoje um estágio em que é minoritário o setor que ainda permanece discordante.
As estatísticas vieram provar a validade e a importância da lei. Também o respeito pelo motorista à faixa de pedestres, no início, era reticente, tornando-se aos poucos mais efetivo, em parte pela ação dos guardas de trânsito, em parte pela atitude do próprio pedestre. Populares, tantas vezes ‘se meteram’ entre carros para esbravejar reivindicando a efetividade da faixa. Aos poucos vai se criando uma nova consciência coletiva, uma nova ética de trânsito.
Com novas leis, com fins pedagógicos, será sempre assim. Não basta que se as faça e publique. Há que divulgá-las, esclarecê-las, conquistar adesão, fazer com que ‘peguem’, com que o popular a reivindique. Com o ECA tem sido assim. É uma lei ainda nova. E por quinze anos já, vivemos uma travessia inacabada entre paradigmas éticos diferenciados. Creio que, como diria HANNA ARENDT, estamos entre o não mais, de um tempo que já terminou, e o ainda não, de um outro tempo que ainda não começou [62].
Da mesma forma que se concedeu ao guarda de trânsito elasticidade na disciplina do trânsito, nos primórdios da prática do cinto de segurança, temos o Juiz da Infância em posição de zelador privilegiado da divulgação e conquista de adesão ao Estatuto e, portanto, carecendo também de ‘elasticidade’ – discricionariedade especial e própria, como, entendemos, a própria lei prevê para exercitar seu mister nessa fase de transição.
Por isso, é contraproducente, sob a ótica da efetivação do ECA, a pretensão de restringir-se as Portarias ao rol do seu artigo 149. O juiz precisa da ferramenta mais ampla, que, a nosso ver, o Estatuto lhe faculta, para, dentre outras funções, cumprir esse papel promocional de propagar princípios e divulgar normas.
O rei de Espanha, D. JUAN CARLOS DE BOURBON, é um exemplo vivo de transição bem comandada. A um estado massacrado por décadas de autoritarismo franquista, até para dissolver o medo que estados policiais impregnam na sociedade, foi necessária a figura imponente do monarca como garante do processo democrático. A combinação de estatura moral, autoridade firme e visível e decidido espírito democrático, permitiu os Pactos de La Moncloa e a consistente retomada democrática.
Recorda-se como um dos grandes momentos da história do século XX o monarca, comandante em chefe, em uniforme militar reprimindo uma tentativa de golpe de Estado patrocinada por representantes do velho regime.
Pedimos os descontos óbvios pelas impropriedades da comparação, que não pode ser lida em literalidade. Fiquemos com o significado: de uma realidade marcada pelo poder autocrata absoluto, abriu-se nova era de liberdade e participação na qual foi essencial o simbolismo de um poder central ainda forte.
O elemento central da construção é o comprometimento inafastável da referida autoridade com o objetivo a ser alcançado na transição: gestão democrática e participativa. Tal comprometimento é condição sine qua non para a ação do Juiz da Infância, como a que aqui se defende.
PORTARIAS-MEIO: UMA NECESSIDADE
No cotidiano do Juiz menorista é freqüente a necessidade de vigilância sobre os direitos da infância e da adolescência. Por isso é que ele conta com um corpo especial de colaboradores, que vai a campo zelar pela política da proteção integral, efetuando autuações, prevenindo violações e prestando esclarecimentos e orientações.
Note-se que tal ação se dá em caráter de complementaridade à ação dos Conselheiros Tutelares. Não há sobreposição de tarefas, sendo ambas as atuações fundamentais.
Note-se ainda que o ECA dá ao Juiz a determinação de, na ausência do Conselho Tutelar, suprir-lhe as tarefas. Por extensão necessária, tem-se que, em caso de Conselho apenas formalmente existente, por inoperante, sem prejuízo das ações correicionais que promover o MP, não poderá também o Juiz quedar-se inerte frente a tão grave lacuna operacional, devendo suprir as tarefas mais urgentes por intermédio do seu corpo de serventuários e colaboradores. O princípio da proteção integral e a vedação da inércia compelem o Juiz a que compareça, sempre, um passo à frente das demandas.
No cumprimento de tal mister, é necessário ao Juiz criar as ferramentas para a sua ação. Para tanto ele promove reuniões, oficia, presta esclarecimentos, põe seus prepostos em campo, visita a rede de ensino, mobiliza voluntários, realiza palestras, estimula ajustamentos de conduta.
E é neste ponto que, muito freqüentemente, se faz necessária a figura da ‘portaria-meio’ (também tratada mais propriamente no capítulo referente ao Poder de Polícia do Juiz Menorista).
Exemplo de tal mecanismo é a Portaria da Juíza da Vara da Infância da Comarca de Teresópolis que determina aos clubes e casas de espetáculos que comuniquem previamente sua agenda ao Juízo, independentemente da faixa etária pretendida ao espetáculo ou evento. Por impossível a onipresença e onisciência do magistrado, tal informação se torna a ferramenta pela qual pode o Comissariado, sob orientação do Juízo, organizar suas escalas de fiscalização, e direcionar seus esforços de maneira conseqüente e eficaz.
Outro exemplo possível: entidades de atendimento que devem ser fiscalizadas pelo Juízo. Suponha-se que em determinada cidade haja um número elevado de entidades, e que, a par da visita à instituição, entenda o Juiz necessário que lhe venha periódico balanço das atividades, o que determinará por meio de Portaria. Seria um caso típico de criação de ‘obrigação-meio’ visando verificação de cumprimento de ‘obrigação-fim’ (fiscalização das entidades).
Esse tipo de ‘portaria-meio’, sempre fugirá ao rol do artigo 149. Mas sem a mesma, muito freqüentemente estará o Juiz da Infância de mãos atadas para o cumprimento inclusive das obrigações postas no próprio Art. 149. Relembremos que ‘quem dá os fins deve prover os meios’!
COMBATE À MOROSIDADE
Se a tão propalada morosidade do Judiciário é fatal para as possibilidades de efetivação da decisão justa ("Justiça atrasada é injustiça qualificada e manifesta", cfe. RUI BARBOSA [63]), ela se torna inominável violação a um bem maior, no caso da justiça menorista ("Muitas coisas que nós precisamos podem esperar. A criança não pode. Agora é o tempo em que seu ossos estão sendo formados; seu sangue está sendo feito; sua mente está sendo desenvolvida. Para ela nós não podemos dizer amanhã. Seu nome é hoje", cfe. GABRIELA MISTRAL).
As Varas da Infância vivem sempre em sobrecarga, dadas as suas peculiaridades e o agravamento dos problemas sociais decorrentes da injusta e secular estruturação da sociedade brasileira, cujas disparidades se acentuam no modelo econômico concentrador e excludente, vigente em último molde há mais de uma década. O Juiz é demandado por todos os lados em situações sempre eivadas de urgência e imperiosidade. O acréscimo da tutela de direitos do Idoso [64] veio agravar esse quadro.
Disso resulta que a Portaria, muitas vezes, pode funcionar como norma de economia processual e administrativa nos termos em que leciona LUIZ FELIPE SALOMÃO: "A economia processual visa obtenção do máximo resultado na atuação da lei com mínimo emprego possível de atividades processuais" [65].
Ao regular situações específicas (como, por exemplo, precauções a observar na freqüência de menores a Academias de Artes Marciais) para todo um segmento de atividades voltadas a menores de dezoito anos, pode o Juiz estar evitando a desnecessária análise caso a caso, pela via administrativa, de questões que se repetiriam ad infinitum, seja em exame de alvarás ou por via de lavratura de auto de infração.
A Portaria, nestes casos, informa, esclarece, uniformiza e torna desnecessário o acesso continuado à máquina judiciária, reduzindo sua sobrecarga de trabalho. Torna-se um elemento de racionalização produtiva, liberando juiz e serventuários para implementarem maior celeridade às suas rotinas e melhor atenção a ações mais relevantes.
EDIÇÃO DE PORTARIAS – UM MODO DE FAZER
Se defendemos que a Portaria tem um papel pedagógico, não podemos esquecer que a boa pedagogia, como ensinou PAULO FREIRE, é, necessariamente, dialógica. Como conciliar tal proposta com o caráter impositivo da Portaria Judicial?
Creio que pode nos auxiliar o exemplo produzido na Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Teresópolis, em que a Juíza Titular, INÊS JOAQUINA SANT’ANA SANTOS COUTINHO promoveu interessante experiência ao baixar a Portaria 012/2004 cuja ementa diz: "Regulamenta a freqüência de crianças e adolescentes em Academias de Ginástica, Musculação, Dança, Natação, Tênis, Artes Marciais e congêneres".
Em face de noticiadas irregularidades na freqüência de menores de dezoito anos a academias de ginástica e artes marciais – tais como acesso a esteróides anabolizantes, gazeta escolar, exercícios inadequados, com comprometimento ortopédico – esboçou a magistrada um elenco de itens para edição da Portaria.
A seguir, convidou todas as academias da cidade para uma reunião, na qual explicou suas razões e intenções e apresentou os pontos iniciais da futura ordem administrativa. Ocorreram queixas, sugestões, pedidos de esclarecimento, num franco e saudável debate.
Foi aberto um prazo para sugestões por escrito e diversas academias e profissionais da área as apresentaram. Foram ouvidos profissionais da área médica, o Conselho Regional de Educação Física e confederações desportivas. A partir daí, foi elaborada uma pré-minuta da Portaria. Em nova reunião, novos debates, dos quais entendeu-se necessário destacar, por suas especificidades, capítulos especiais para segmentos como dança, artes marciais e capoeira. Foram realizados, então, encontros com os profissionais e empresários daquelas áreas.
Finalmente, com alto grau de consenso, a Portaria foi baixada, atendidos os interesses de crianças e adolescentes na visão do Juízo e acatada a maior parte das sugestões dos destinatários da ordem. Deste modelo, resultou compreensão, comprometimento e maior consciência quanto as políticas voltadas à infância e à adolescência.
Entendemos que, em grande parte dos casos, tal modelo participativo pode ser adotado na edição de Portarias. Aliás, a gestão participativa das Varas da Infância, mais que em qualquer outra vara especializada, deveria ser um objetivo a ser constantemente perseguido.
É difícil romper com a tradição hierárquica, rígida e autoritária que transfere indevidamente autoridade oracular do Juiz ‘prestador jurisdicional’ ao Juiz ‘gestor’. Mas é uma tarefa necessária. Exige nova postura tanto dos magistrados como dos servidores. Estes, chamados a não só cumprir tarefas pré-determinadas, mas, sem abrir mão de suas próprias reivindicações, a pensar o trabalho de forma solidária e cidadã, contextualizá-lo, dar-lhe alma e propósito.
Daí podemos no futuro alcançar modelos participativos voltados ao público interno e mais, modelos gerais e externos como um hipotético ‘Fórum da Criança e do Adolescente’, que reuniria mensalmente, em pé de igualdade, o Juiz Menorista, o Ministério Público, o Conselho Tutelar, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, e as organizações não governamentais ligadas ao tema.
PORTARIAS – CLASSIFICAÇÃO, RITO E CONTROLE
Nos levantamentos decorrentes da Resolução 02/06 do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sob comando da Drª Inês Joaquina Sant’Ana Santos Coutinho, promovemos, na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca de Teresópolis, estudo sobre as Portarias alcançadas pela anulação.
Por força da metodologia adotada, terminamos por obter uma forma de classificação das Portarias, que aqui reproduzimos, por entender que pode servir de parâmetro para eventuais normas a serem baixadas em caso de se pretender um regramento da ação dos magistrados nesta área.
Também foi elaborada uma proposta de rito e controle, que, dado o interesse comum a este trabalho, reproduzimos na seqüência.
QUANTO À CLASSIFICAÇÃO, entendeu-se naquela Vara que as Portarias poderiam ser classificadas, em categorias como abaixo:
CATEGORIA |
DISCRIMINAÇÃO |
JUSTIFICATIVA |
Administrativas |
Que explicitam providências e ordens administrativas internas, das quais necessário fazer prova a terceiros. |
Porque necessárias ao bom cumprimento da função judicante de natureza peculiar que exerce o Juízo Menorista |
Baseadas no Artigo 149 do ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE |
Que, à luz do Artigo 149, regulamenta ingresso, acesso e funcionamento de estabelecimentos/ eventos de lazer, diversões e similares. |
Porque assim determinado no E C A e no CODJERJ (art.92, IV e VII); |
Baseadas no Artigo 4º do ECA e em Lei existente |
Que especificam deveres implícitos no dever geral de proteção integral, conforme estabelecidos em outra Lei vigente. |
Porque se baseiam em lei já existente, divulgando-a para exigência de seu cumprimento |
Baseadas no Artigo 4º do ECA e em outro Artigo do próprio Estatuto |
Que especificam deveres implícitos no dever geral de proteção integral, conforme estabelecidos em outro Artigo do próprio ECA. |
São exemplos as portarias que, à luz dos arts. 4º, 13 e 245,obrigam os nosocômios a informarem ocorrências envolvendo menores de dezoito anos |
Baseadas no Artigo 4º do ECA e no Artigo 227 da Constituição Federal |
Que especificam deveres implícitos no dever geral de proteção integral, conforme interpretados pelo Magistrado. |
Com a maior margem de discricionariedade, estas dependentes de sólida justificação, a priori, não poderiam se dar em caráter liminar |
Baseadas no Artigo 95 do ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE |
Que determinam providências relativas a entidades de atendimento decorrentes da fiscalização atribuída ao Juiz Menorista. |
São decorrentes das atribuições fiscalizatórias do art. 95 do Estatuto, instrumentalizando o encargo |
Referentes a Projetos de Apoio e Assistência a Crianças e Adolescentes |
Que instituem ou regulamentam Projetos de Assistência aos jovens atendidos pela Vara. |
Como exemplo, a que institui a Justiça Terapêutica na Comarca |
Como se vê da proposta, ela obrigaria o magistrado à reflexão sobre o enquadramento de suas iniciativas na área, percebendo, necessariamente seu o revestimento legal.
QUANTO AO RITO, sugeriu-se que as Portarias sejam processadas em rito célere, mas com padrão técnico adequado, de prestação jurisdicional de caráter especial. Assim, mereceriam:
-Registro no Sistema de Informática (no Rio de Janeiro, Sistema DCP, conhecido como Projeto Comarca);
-Autuação nos padrões processuais, mas em capa diferenciada;
-Oitiva do MP, ressalvada a hipótese em que a Portaria teria caráter de medida liminar
-Diligências e audiências eventualmente necessárias, inclusive reuniões de oitiva das partes que serão alcançadas pela medida;
-Decisão, que será a base para os considerandos;
-Publicação da Portaria;
-Prazo para recurso contado regularmente das ciências de praxe, inclusive dos destinatários da ordem. O recurso cabível, seria o de apelação, à luz do Art. 199, estendido analogamente a espécies não contempladas, em leitura estrita, pelo Art. 149;
-Trânsito em julgado. Cumpridos os prazos, ter-se-ia coisa julgada, com sentença, exigível à luz do Art. 249;
-Divulgação de redação definitiva, caso haja alterações determinadas pela superior instância;
-Arquivamento do procedimento, da forma usual aos demais feitos da Vara;
-Arquivamento da Portaria editada em Pasta própria de Gabinete, na qual se anotaria o número do processo e a caixa do Arquivo Geral;
QUANTO AO CONTROLE - Havendo a adoção das anteriores proposições, articuladamente, seria necessário promover adequações nos sistemas de informática do Tribunal, tais como:
-Criação de codificação para espécie própria de ação, da qual conste remissão à classificação supra mencionada;
-Separação do mecanismo de baixa do procedimento, de forma a que, mesmo com a baixa e arquivamento do feito pudesse ser mantida em existência a Portaria dele resultante;
-Campo para indicação do prazo de vigência da Portaria, a partir do qual a mesma seria automaticamente baixada no Sistema;
-Comando para baixa da Portaria com prazo indeterminado de vigência;
-Demonstrativos discriminados das Portarias editadas por cada Juízo, contendo nº, ementa, data e prazo de vigência, facilitando os controles, próprio, do Ministério Público e da Corregedoria;
-Relatório das Portarias em vigor, com suas ementas;
-Acesso ao texto completo (ou resumido) da Portaria.
Com as sugestões acima, entendemos ser possível, caso haja o reexame antes ventilado, não só manter o indispensável mecanismo de ação do magistrado, como promover sua maior qualidade e eficácia.
Ao mesmo tempo, ao magistrado estaria dado o imperativo de mais profunda reflexão sobre cada ordem baixada, inibindo, assim, eventuais impropriedades.