O inspirado conto "Estão apenas ensaiando", de Bernardo Carvalho [01], narra a história de um ator que ensaia a fala de um lavrador que perdeu a esposa durante a guerra e que agora implora à Morte a restituição da mulher amada. Acontece que o ator diz o texto com certo "distanciamento", o que leva o diretor da peça a freqüentemente interromper os ensaios, exigindo muito mais vigor e desespero na interpretação. Não obstante, o ator insiste numa postura indiferente, que considera mais adequada, jamais cedendo aos apelos sensatos do diretor.
Durante o ensaio o ator aguarda a chegada de sua esposa no teatro, olhando constantemente no relógio, já que haviam combinado se encontrarem ali com horário marcado, estando ela atrasada.
É em meio a esse cenário que um personagem adentra o teatro e se dirige ao diretor, dizendo-lhe algo ao pé do ouvido. A simples troca de olhares e a reação da assistente do diretor, desatando em choro, dão ao ator a intuição de que algo terrível acontecera à sua mulher e que esta seria a razão do atraso. Nessa oportunidade o ator está no meio de sua fala e, por fim, encarna como nunca o lavrador desesperado. Nas palavras de Bernardo Carvalho:
"(...) e por fim compreende aterrorizado e a um só tempo a sinistra coincidência da cena e do momento, o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, com buzinas, motores e sirenes; compreende por que o diretor não o interrompeu desta vez, porque por fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da morte; compreende que por um instante encarnou de fato o lavrador, que involuntária e inconscientemente, por uma trapaça do destino, tornou-se o próprio lavrador pelo que aquele vulto veio anunciar; compreende tudo num segundo, antes mesmo de saber dos detalhes do acidente que a matou atravessando a rua a duas quadras do teatro, diante dos olhos arregalados do diretor e da assistente (...)". [02]
Este é um claro exemplo de que a cultura geral e, em específico, a literatura, com sua carga sensibilizante, deve integrar a formação do jurista e do homem. Há incontáveis lições a serem aprendidas pelo jurista com a arte, a literatura, a filosofia..., as quais jamais serão encontradas nas letras frias das leis ou nos limitadíssimos "comentários" doutrinários dos manuais "didáticos".
Em tempos de "cruzada contra o crime", "combate à delinqüência" e outras expressões belicosas disparadas sob o jugo midiático de apelos emocionais, cada vez mais se apequena a devida importância a ser dada aos direitos e garantias individuais. Na verdade, tais direitos e garantias passam a ser encarados como um "escudo protetor da criminalidade", de forma que aos poucos vai encorpando uma espécie de "Teoria da Conspiração", segundo a qual as garantias seriam obra insidiosa de criminosos e seus "simpatizantes", a fim de perpetuar a impunidade.
A tão decantada "opinião pública" e até mesmo o pensamento exposto por alguns juristas e operadores do direito, somente não se dá conta de que a redução das garantias individuais fere de morte a liberdade e o nosso incipiente Estado Democrático. Mais que isso, devido a um sinistro mecanismo psicológico de não – identificação, têm dificuldade tremenda em perceber que os direitos e garantias daqueles chamados aleatoriamente de "criminosos", "marginais", "menores infratores", não são garantias "deles", como se fossem categorias apartadas. São, em verdade, as garantias de todos e de cada um de "nós".
Na realidade, a reflexão mais urgente e imprescindível para evitar reações desesperadas a formularem pretensas justificativas para legislações de terror e autoritarismo, é aquela de recordar e repisar constantemente que o "outro" é um semelhante, portador dos mesmos direitos e garantias que sua condição humana comum impõe e que, quando pensamos retirar-lhe esses direitos é de nós mesmos, nossos familiares, amigos e futuras gerações que retiramos. Desprezar ou destruir os direitos e garantias erigidos ao longo de anos é ato tão insano quanto um suicídio. É matar a própria liberdade.
A verdadeira emergência em tempos de crise é encarnar sem demora o humano que há nos "outros", ou melhor, reconhecer e encarnar irresignavelmente "nossa" humanidade. Isso sob pena de algum dia experimentar essa identificação de forma abrupta como aconteceu ao ator no conto de Bernardo Carvalho.
Notas
01
MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 592 – 595.02
Ibid., p. 595.