De início, insta consignar que a teoria do adimplemento substancial do contrato, tem sido reconhecida, pela doutrina e jurisprudência, como impedimento à resolução do negócio jurídico da seara cível, pois, em casos tais, há o atendimento quase que integral das obrigações outrora pactuadas, isto é, o incumprimento da avença é ínfimo.
Na hipótese, não é razoável, do ponto de vista jurídico, que o descumprimento insignificante da obrigação devida, ocasione a extinção do pacto, de acordo com a busca pela preservação e à função social do contrato.
Sobre o tema, leciona a doutrina de Clóvis Couto e Silva, que a teoria do adimplemento substancial:
[...] constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva) (SILVA, 1980, p. 56).
Postas tais premissas, é de se concluir que a teoria do adimplemento substancial, em nome do princípio da boa-fé objetiva, obsta a resolução da avença quando substancialmente cumprida.
Com efeito, e avançando no tema, cabe obtemperar que a estrutura jurídica da teoria do cumprimento substancial deve ser aplicada, também, às ciências penais, especificamente no tocante ao novo instituto pertencente à justiça criminal negociada, a saber, o acordo de não persecução penal, insculpido no art. 28-A, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941).
Nesse sentido, o acordo de não persecução penal configura negócio jurídico pré-processual, entre o Ministério Público e o investigado, acompanhado de defesa técnica, como substituição ao ajuizamento de ação penal, e, se cumprido, poderá ensejar a extinção da punibilidade.
Em suma, "[...] trata-se de um direito subjetivo público de índole jurídico processual do investigado a realizar um negócio jurídico com o Ministério Público" (RANGEL, 2021).
Dito isso, e agora conjugando-se as temáticas, é certo dizer que a teoria do adimplemento substancial é perfeitamente aplicável ao processo penal, pois se harmoniza aos princípios da celeridade processual, proporcionalidade e razoabilidade, todos almejados pela justiça criminal negocial e também condizentes ao direito contratual, ramo que lastreia a teoria do cumprimento substancial.
Seguindo a mesma linha, a Procuradora da República Luciana Sperb Duarte Vassalli leciona sobre a introdução do consenso no processo penal, cujos institutos são "[...] norteados pelos princípios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, e ainda pela composição dos danos civis à vítima e pela aplicação de pena não privativa de liberdade" (VASSALLI, 2021).
Portanto, ainda que eventual avença de ordem processual penal não seja cumprida na íntegra, porque insuficiente em certa medida, se o descumprimento das condições for manifestamente irrisório em relação ao total das obrigações firmadas, haverá de ser reconhecido o adimplemento do pacto, o que alberga o acordo de não persecução penal.
Ademais, e com espeque nas lições de Bruno Joviniano de Santana Silva, a aplicação da teoria do cumprimento substancial aos casos penais também é justificada pelo fenômeno da constitucionalização do direito pátrio:
O Direito não pode ser visto como secções separadas sem correlação, mas, sim, como um todo coeso e interdependente. Nesse prisma, é relevante o fenômeno da Constitucionalização do Direito, ou seja, a incidência da Constituição sobre os compartimentos jurídicos, que consagra a majestade do Texto Supremo que irradia seus efeitos por todo o ordenamento jurídico (SILVA, 2016).
No ponto, importa notar que o direito penal se utiliza de analogia in bonam partem, o que também embasa repercussões da teoria civilista do adimplemento substancial para alcançar casos em que apenas ínfima parcela do acordo de natureza criminal firmado for descumprida, além das naturais incidências dos postulados da proporcionalidade, razoabilidade, e, à toda evidência, dos aforismos da boa-fé objetiva e da função social do negócio jurídico, decorrentes da seara civil.
A propósito do tema, leciona Bruno Preti de Souza:
Sendo assim, na hipótese de descumprimento de alguma das condições impostas na suspensão condicional do processo, por exemplo, diante de um adimplemento tão próximo do resultado final, exclui o interesse de punir do Estado, sendo de rigor a declaração da extinção da punibilidade do agente, pois não seria crível que ao réu seja concedido um benefício e, diante do cumprimento quase totalitário das condições que lhe fora imposta, deva responder uma ação penal (SOUZA, 2013).
Assevera, ainda, que "[...] o adimplemento substancial, sob a ótica da proporcionalidade e da proibição do excesso deve ser utilizado como espécie de readequação dos fatos", isto é, deve pautar-se pela adequação da "[...] sanção prevista ao caso concreto e suas peculiaridades, diante do sistema de garantias instituído com a Constituição Federal" (SOUZA, 2013).
Ao final, é possível se inferir, dos escritos do autor, que, para a aplicação do adimplemento substancial são necessários, em resumo, os seguintes requisitos: destacado cumprimento das condições pactuadas; possibilidade do atingimento da finalidade do instituto que deu azo ao acordo; e a presença da boa-fé objetiva durante a execução das obrigações impostas (SOUZA, 2013).
Em suma, a teoria do adimplemento substancial incidirá para fins de manutenção do acordo ou eventual declaração de extinção da punibilidade, em prestígio à função social da pena e ao respeito ao ne bis in idem.
De igual sentir pontifica Aury Lopes Jr.:
[...] Considerando ainda que estamos diante de um negócio jurídico processual, é aplicável, por exemplo, as teorias civilistas da boa-fé e também a do adimplemento substancial, para fins de manutenção do acordo ou extinção da punibilidade por cumprimento das condições. Somos contra a importação de categorias do direito civil e do processo civil para o processo penal, mas aqui justifica-se, não só por coerência, mas também pela hibridez do próprio instituto da negociação no processo penal (LOPES JR., 2020, p. 320-321).
No mesmo sentido, aliás, o magistério da doutrina de Francisco Dirceu Barros e Jefson Romaniuc:
[...] Sendo assim, e hipoteticamente, é possível que diante de um ANPP firmado com cláusulas de prestação pecuniária e de serviços por 24 (vinte e quatro) meses, no qual a prestação pecuniária foi completamente quitada e a de serviços foi cumprida por 22 (vinte e dois) meses, o Promotor de Justiça opte pelo adimplemento substancial e subsequente arquivamento das investigações em vez de desprezar todos os indícios de ressocialização do investigado e oferecer a correspondente ação penal (BARROS; ROMANIUC, 2019).
A propósito, é sabido que a teoria do adimplemento substancial há muito é aplicada aos demais institutos despenalizadores, que possuem a mesma ratio essendi que institui o acordo de não persecução penal, como demonstram os seguintes arestos que versam sobre a suspensão condicional do processo, prevista na Lei nº 9.099, de 1995:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DAS CONDIÇÕES DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. 1. É possível a revogação do benefício da SCP se comprovado que o motivo da revogação ocorreu no período de prova da medida, ressalvada a hipótese de cumprimento substancial das condições estabelecidas. 2. Todavia, na hipótese, o paciente pagou a totalidade da doação estipulada e cumpriu com a integralidade dos comparecimentos em juízo. 3. Possibilidade de pronunciar a extinção da punibilidade pelo cumprimento substancial da suspensão condicional do processo, com base no § 5º do art. 89 da Lei n. 9.099/95. RECURSO MINISTERIAL DESPROVIDO (TJ-RS - RC: 71006662175 RS, Relator: Edson Jorge Cechet, Data de Julgamento: 22/05/2017, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: 02/06/2017).
SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DAS CONDIÇÕES IMPOSTAS. REVOGAÇÃO INVIABILIZADA. Ainda que possível, na linha de jurisprudência do Pretório Excelso, a revogação da suspensão condicional do processo após o seu termo final, evidentemente que por fato ocorrido durante o seu curso, não se justifica medida com esse rigor quando, ainda que não de modo integral, houve substancial cumprimento das obrigações assumidas, com as apresentações e reparação de expressivo percentual do valor do dano, cujo saldo, que era objeto de ação cível, só não foi cobrado porque não encontrados bens passíveis de penhora, do que resultou o arquivamento do processo respectivo. Revogação que não atenderia ao princípio da proporcionalidade. Recurso não provido (Recurso em Sentido Estrito Nº 70011591484, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em 07/07/2005).
RECURSO CRIME. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. ART. 150 DO CP. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. DESCUMPRIMENTO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE Embora certa a possibilidade de revogação da suspensão condicional do processo mesmo após o seu termo final, se comprovado que o motivo da revogação ocorreu durante no período de prova, quando descumpridas as condições impostas, não menos certo é que, na espécie, houve substancial adimplemento das condições e, tratando-se de hipótese de revogação facultativa do benefício, ficava a critério do Magistrado revogá-la ou não. RECURSO MINISTERIAL IMPROVIDO (TJ-RS - RC: 71005432471 RS, Relator: Luis Gustavo Zanella Piccinin, Data de Julgamento: 23/11/2015, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: 26/11/2015).
RECURSO CRIME. AMEAÇA. ART. 147 DO CP. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. DESCUMPRIMENTO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE Embora certa a possibilidade de revogação da suspensão condicional do processo mesmo após o seu termo final, se comprovado que o motivo da revogação ocorreu durante no período de prova, quando descumpridas as condições impostas, não menos certo é que, na espécie, houve substancial adimplemento das condições e, tratando-se de hipótese de revogação facultativa do benefício, ficava a critério da Magistrada revogá-la ou não. RECURSO MINISTERIAL IMPROVIDO (TJ-RS - RC: 71003990355 RS, Relator: Cristina Pereira Gonzales, Data de Julgamento: 12/11/2012, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 13/11/2012).
Por oportuno, transcrevo trecho do parecer ministerial exarado nos autos da Apelação Criminal nº 00047897520044013900, processada perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, às folhas 321/322, também versando sobre a suspensão condicional do processo, instituto análogo ao acordo de não persecução penal como visto, que também entendeu que não se justifica a extinção do compromisso formalizado por ter o acusado faltado com sua obrigação de maneira ínfima: "[...] Não se justifica a revogação do benefício em casos tais, em que o acusado deixa de cumprir parte mínima de condição estabelecida para a suspensão processual, cabendo a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial".
Desse modo, decidiu com acerto o magistrado, nesses mesmos autos (fls. 292/293), em que o caso penal sub judice, "[...] na espécie, comporta a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial - descumprimento de parte mínima - o que equivale, no direito brasileiro, 'ao adimplemento chamado de insatisfatório: discrepância qualitativa e irrelevante na conduta do obrigado' [...]".
Portanto, as condições impostas para os negócios jurídicos processuais penais devem ser inspiradas pelo bom senso jurídico quando do exame de eventual revogação por descumprimento, mesmo que parcial, de qualquer delas.
Derradeiramente, conclui-se que o acordo de não persecução penal precisa ser lido e interpretado à luz da razoabilidade e proporcionalidade. De efeito, se o imputado adimpliu quase que todas as condições impostas, há indícios veementes de ressocialização, daí por que o ajuste atingiu sua finalidade, o que oportuniza a declaração de cumprimento do pacto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, 13 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 18 fev. 2022.
BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial da União, 27 de setembro de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 18 fev. 2022.
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