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Crimes hediondos:

Lei nº 11.464/2007 e fatos pretéritos

Agenda 03/04/2007 às 00:00

A diferença entre os crimes comuns e os considerados hediondos ou a eles equiparados nunca pôde ser medianamente demonstrada na direção de se dizer porque aquele ou outro delito assim é considerado e um terceiro não. Se na concepção não existe uma irmandade, no tratamento penal e da execução penal a distinção é notória.

A noviça Lei 11.464, de 28 de março de 2007, com publicação em edição extra do Diário Oficial da União em 29/03/2007, que entrou em vigor na mesma data de sua publicação conforme dicção do seu art. 2º, instituiu por intermédio de uma modificação redacional no art. 2º da Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos) um novo sistema de execução penal para condenados por tais delitos. Essa alteração contou com a completa mudança na redação do § 2º do art. 2º, deslocando-se os primitivos §§ 2º e 3º (dever da sentença condenatória fundamentar o direito de recorrer em liberdade e prorrogação da prisão temporária) para serem considerados respectivamente como §§ 3º e 4º.

Não se pode olvidar que a originária restrição à liberdade provisória contida no inciso II do art. 2º da Lei 8.072/90 também deixou de existir, pois o dispositivo agora exclusivamente fala sobre a insuscetibilidade da fiança. Foi seguida, assim, densa orientação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a liberdade provisória não pode ser de antemão defesa pelo legislador, melhor se acomodando na aferição casuística, por envolver em contrapartida a incidência de prisão cautelar – a qual, por seu formato, só pode ser adequadamente aplicada se presentes os requisitos próprios e necessários para o acautelamento. A possibilidade da concessão da liberdade provisória para os crimes hediondos e equiparados terá efetivamente uma grande repercussão quanto aos crimes de tráfico de drogas, pois tal dispositivo colide frontalmente com o art. 44 da Lei 11.343/2006, que veda a liberdade provisória para os crimes previstos em seu art. 33. Seguindo uma interpretação sistemática e teleológica, considerando ainda a derivação constitucional do tema (art. 5º, XLIII, da Constituição Federal), é irresistível o apontamento de uma conclusão de que mesmo para o crime de tráfico de drogas, doravante, em tese é admissível a liberdade provisória, devendo cada caso concreto ser avaliado e dirimido segundo seus característicos, contemplando-se, outrossim, o disposto no art. 312, CPP.

Voltando ao ponto central do tema, a partir da decisão do ‘Caso Oséas’ pelo Excelso STF, restou insustentável a constitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, que permitia que a pena por crime hediondo fosse integralmente cumprida em regime fechado. A partir da linha interpretativa do Supremo, seguiu-se uma avalanche de decisões, colaborando para uma necessária e urgente administração linear do sistema penitenciário, porquanto a insegurança jurídica e diversidade de tratamento para presos em situações idênticas é motivo de instabilidade no cárcere.

Assimilando esse novo direcionamento, a redação dada pela Lei 11.464/2007 ao § 1º do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos diz expressamente que a pena por crime ali tratado será cumprida "inicialmente" em regime fechado. Buscando manter a dicotomia com os crimes comuns, a execução penal foi exasperada, com a perspectiva da progressão de regimes, conforme regra universal em nosso direito. Criou-se o estágio peremptório de cumprimento da pena, para então se falar em progressão de regime. Assim, se o reeducando for primário, o canal da progressão é aberto após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena e, se for reincidente, depois de 3/5 (três quintos). Nota-se que o primeiro requisito para a progressão do regime nos crimes hediondos não envolve o critério subjetivo, pois partiu-se da idéia de um período de tempo mínimo para consolidação da função recuperadora da pena ou mesmo contenção do comportamento do sentenciado, para depois disso se cogitar da incidência do avanço. Com isso, decorrida a faixa temporal de 2/5 ou 3/5, dependendo da situação do apenado, abre-se a porta para que, cumprindo mais 1/6 da pena e preenchidos os demais requisitos do art. 112 da Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal), funcione o sistema progressivo: do fechado para o semi-aberto e deste para o regime aberto, sucessivamente. Logicamente, os aspectos subjetivos e ligados ao mérito do condenado devem ser aferidos durante toda a jornada de cumprimento da pena, mesmo que anterior ao interregno de 1/6, adentrando na primeira faixa.

O estágio peremptório para o condenado primário foi concebido em 1/2 da pena resultante da condenação, enquanto que, para o reincidente, a fração estipulada foi de 2/3. Sem o alcance desses percursos temporais para o condenado por crime hediondo, restará inviável a obtenção da progressão de regime. Suponhamos que A seja condenado a 5 anos por um crime hediondo, iniciando assim a marcha da execução penal no regime fechado. Cumprido o período inicial de 2/5, posto que primário, ou seja, depois de 2 anos, passar-se-á à contagem de mais 1/6 da pena – sobre o remanescente de 3 anos (art. 112, LEP), isto é, 6 meses. Atingindo o estágio peremptório e atendidos os demais pressupostos, progredirá A para o regime semi-aberto após o cumprimento de metade da pena. Fosse ele reincidente, depois de cumprir 3/5, o que equivale a 3 anos, estaria apto a experimentar mais 1/6 no cumprimento a fim de alcançar o benefício, fração incidente sobre o remanescente de 2 anos, o que significa dizer mais 4 meses; sendo assim deverá cumprir 3 anos e 4 meses para estar apto à progressão, o que enseja 2/3 da pena como estágio peremptório.

Com a vigência imediata da lei em questão, surge a necessidade de destacar a sua estirpe de direito material penal e de execução penal, afastando-se qualquer insinuação de que tenha eminentemente um caráter processual, aplicando-se a partir de sua vigência, em 29/03/2007, não só aos casos sucedidos a partir daí, mas às execuções que estejam em desenvolvimento e aquelas que vierem a se desenvolver, por crimes praticados antes da aludida modificação. A aplicação instantânea da lei segundo o seu texto não está a impedir que o princípio da irretroatividade e retroatividade benigna, previstos no art. 5º, XXXVI e XL, CF e art. 2º, parágrafo único, CP, sejam obedecidos.

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Há dois reflexos advindos da lei que implicam inversamente em benefício e prejuízo àqueles que cometeram crimes antes da sua vigência, estejam ou não em execução de pena, julgados ou ainda aguardando a definição dos respectivos casos. A aplicação do art. 2º, § 1º, da Lei 8.0782/90 é extensiva a todos, de modo que indubitavelmente todos os condenados por crimes hediondos passam a cumprir a pena inicialmente em regime fechado, norma de caráter benéfico, que retroage para abrigar a todo um grupo que extraia de sua aplicação a aludida vantagem. O Prof. Damásio E. de Jesus anota que, em relação à execução penal, o princípio da retroatividade benigna tem inteira aplicação, referindo-se inclusive a precedente da Suprema Corte: "Execução penal. A ela é aplicável o princípio da retroatividade benéfica (TACrimSP, ACrim 389.403, JTACrimSP, 82:403; AE 547.931, Julgados, 99:8), uma vez que é regulada por lei penal. (STF, HC 68.416, 2ª Turma, DJU, 30 OUT, 1992, P. 19515; RTJ, 142:564)", in Código Penal Anotado, Saraiva, 12ª edição, p. 11.

Contudo, a criação do estágio peremptório como requisito mínimo para a progressão nos crimes hediondos é condição que resulta desfavorável para todos aqueles que estão no sistema penal ou nele ingressarão por fatos cometidos antes da vigência da lei. Com isso, para esse grupo, aplica-se o princípio da irretroatividade da lei penal, concentrando-se na aplicação da premissa tempus regit actum a solução para integração da lei, já que neste aspecto encerra autêntica severidade em comparativo com a conjuntura anterior. Quanto a esses, bastará o cumprimento de 1/6 da pena e ficará atendido o requisito temporal.

Ocorreu com a Lei 11.464/2007 situação parecida à da Lei 9.714/98, que trouxe nova disciplina à substituição das penas privativas da liberdade por restritivas de direito, alterando os arts. 43 e seguintes do CP. Possibilitou-se a substituição, desde que a pena aplicada não fosse superior a 4 anos, vedada se o delito fosse cometido com violência ou grave ameaça à pessoa – art. 44, I, CP. Assim, para os fatos cometidos mesmo com grave ameaça ou violência à pessoa com pena não superior a esse patamar, deveria ser permitida a substituição, por força da retroatividade benigna, retirando o produto benéfico da lei, isto é, a possibilidade de substituição exclusivamente pelo quantitativo da pena aflitiva, antes 2 anos e a partir de então 4 anos, deixando o ponto mais severo da lei, para quem tivesse cometido o crime naquelas condições (violência ou grave ameaça à pessoa), para aplicação aos casos verificados a contar da vigência.

Esse entendimento veio perfilado pelo ilustre Des. Alexandre Victor de Carvalho no julgamento da Apelação Criminal n. 293.288-7, pela 2ª Câmara Criminal do TJMG, em 16/05/2000 in www.tjmg.gov.br/jurisprudencia. Na ocasião, Sua Excelência, como relator, ao deliberar seu voto que restou vencido, evocava lições de Frederico Marques segundo as quais "dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível, se lhe está afeto escolher o "todo" para que o réu tenha tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que lhe obste selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógico formal", in Tratado de Direito Penal, vol. 1, p. 210. Para autenticar a exatidão do acerto daquela abordagem, mencionaram-se as notas do escólio de Cezar Roberto Bitencourt, in Lições de Direito Penal, 3ª edição, Livraria do Advogado Editora, p. 45 e Basileu Garcia, in Instituições de Direito Penal, 6ª edição, Vol. 1, p. 160, e ainda o precedente do STF no julgamento do HC n. 69033-5, Rel. Min Marco Aurélio, in DJU 13/03/1992, p. 2.925.

Com essa nova realidade trazida pela Lei 11.464/2007, não se pode permitir uma interpretação distanciada da base constitucional, no sentido de que as regras maléficas alcancem indistintamente aqueles que assim não deveriam ser tratados ou considerados e que a regra benéfica só possa ser adotada se trouxer o guizo da severidade. Para os crimes hediondos verificados antes da vigência da lei nova, o regime deve ser o inicialmente fechado, possibilitando a progressão pelo advento de 1/6 e demais requisitos previstos na LEP, enquanto que a exigência do estágio peremptório (metade da pena para os primários e dois terços para os reincidentes) só será tolerável se o fato criminoso tiver ocorrido a partir da entrada em vigor do novo texto legal. Com isso, evita-se o desacerto das interpretações que conspiram contra as garantias individuais, conforme já advertia Alexandre Victor de Carvalho no sobredito voto: "O Poder Judiciário não pode fechar os olhos para as garantias previstas na Constituição Federal, principalmente quando se referem a fundamentos da Ciência Penal".

Sobre o autor
Amaury Silva

juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Teófilo Otoni (MG), juiz eleitoral da 270ª Zona Eleitoral de Teófilo Otoni (MG), professor de Teoria Geral do Direito Penal da UNIPAC, especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Amaury. Crimes hediondos:: Lei nº 11.464/2007 e fatos pretéritos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1371, 3 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9687. Acesso em: 5 nov. 2024.

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