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Crimes hediondos, regime prisional e questões de direito intertemporal

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Agenda 12/04/2007 às 00:00

É constitucional o estabelecimento de regras diferenciadas no tocante ao tempo de cumprimento de pena para a progressão de regime nos crimes hediondos e figuras equiparadas em relação aos demais delitos, o que não ofende o princípio da individualização da pena.

Sumário:1. Delimitação e subsídios para a discussão; 2. Aplicação das novas regras de progressão de regime aos crimes praticados antes da vigência da Lei nº 11.464/07. 2.1 A questão do crime de tortura (Lei nº 9.455/97); 3. Conclusões; 4. Referências.


1. DELIMITAÇÃO E SUBSÍDIOS PARA A DISCUSSÃO

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No final do mês de março deste ano de 2007, a Lei nº 11.464/07 deu nova redação ao art. 2º da Lei nº 8.072/90, para, dentre outras coisas, permitir a progressão de regime nos crimes hediondos e figuras equiparadas (tortura, tráfico de drogas e terrorismo).

A alteração legislativa teve por finalidade prestigiar a recente mudança na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a qual, desde 1990, vinha asseverando a constitucionalidade do regime integralmente fechado estabelecido pelo então art. 2º, § 1º, da Lei de Crimes Hediondos. Mas, a partir do julgamento ocorrido em 23 de fevereiro de 2006, afetado ao Plenário, do Habeas Corpus nº 82.959, Relator Ministro Marco Aurélio, o conspícuo sodalício decidiu rever seu posicionamento tradicional, que já resistia há várias composições, ao longo desses 16 anos. Esta posição sobreviveu, inclusive, à tentativa de parte da Doutrina de ver derrogada a proibição de progressão em face do art. 1º, § 7º, da Lei nº 9.455/97 (Lei de Tortura), o que foi igualmente rechaçado pela Suprema Corte, em respeito ao princípio da especialidade [01]. Desde o julgamento em questão, o Supremo passou a entender que a proibição de progressão de regime violaria o princípio da individualização da pena, em que pese o art. 5º, LXVI, da Constituição Federal estabelecer que cabe à Lei infraconstitucional regular esta individualização [02]. Esta a ementa do julgamento paradigmático da Corte:

DECISÃO: O TRIBUNAL, POR MAIORIA, DEFERIU O PEDIDO DE HABEAS CORPUS E DECLAROU, "INCIDENTER TANTUM", A INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 2º DA LEI Nº 8.072, DE 25 DE JULHO DE 1990, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR, VENCIDOS OS SENHORES MINISTROS CARLOS VELLOSO, JOAQUIM BARBOSA, ELLEN GRACIE, CELSO DE MELLO E PRESIDENTE (MINISTRO NELSON JOBIM). O TRIBUNAL, POR VOTAÇÃO UNÂNIME, EXPLICITOU QUE A DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DO PRECEITO LEGAL EM QUESTÃO NÃO GERARÁ CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICAS COM RELAÇÃO ÀS PENAS JÁ EXTINTAS NESTA DATA, POIS ESTA DECISÃO PLENÁRIA ENVOLVE, UNICAMENTE, O AFASTAMENTO DO ÓBICE REPRESENTADO PELA NORMA ORA DECLARADA INCONSTITUCIONAL, SEM PREJUÍZO DA APRECIAÇÃO, CASO A CASO, PELO MAGISTRADO COMPETENTE, DOS DEMAIS REQUISITOS PERTINENTES AO RECONHECIMENTO DA POSSIBILIDADE DE PROGRESSÃO. VOTOU O PRESIDENTE. PLENÁRIO, 23.02.2006 [03].

Como se vê, o placar da votação foi de 6 x 5 (seis votos contra cinco). Além do Relator, Ministro Marco Aurélio, que sempre sustentou este posicionamento, sendo voto vencido desde 1990, votaram pela inconstitucionalidade da norma os Ministros Carlos Britto, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Sepúlveda Pertence e Eros Grau.

Apesar de, desde o ano em que entrou em vigor a Lei de Crimes Hediondos, até 23 de fevereiro de 2006, nunca se ter levantado esta tese relativamente ao tema em exame, bastou o Supremo Tribunal Federal mudar seu posicionamento quanto a progressão de regime para que o próprio Tribunal, liderado pelo Ministro Gilmar Mendes, com eco em parte da Doutrina, liderada por Luiz Flávio Gomes [04], começasse a sustentar que decisões como esta, tomadas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em que se discutam Lei em tese, produzem eficácia vinculante e efeito erga omnes, independentemente de serem oriundas do controle difuso ou concentrado de constitucionalidade. Esta tese não encontra nenhum respaldo na Constituição Federal, cujo art. 102, § 2º, somente estabelece tais efeitos em se tratando de controle concentrado de constitucionalidade (nas ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade) [05]. Durante 16 (dezesseis) longos anos, o Supremo Tribunal Federal validou a vedação à progressão de regime nos crimes hediondos, entendendo ser perfeitamente constitucional, sem que essas mesmas vozes invocassem a tese da suposta eficácia vinculante deste tipo de decisão. Ora, também até então não se estava a discutir Lei em tese? Pouco importa se, antes, a conclusão do Supremo era desfavorável ao réu e, agora, passou a ser favorável. Esta discussão – eficácia vinculante e efeitos erga omnes das decisões do plenário do Supremo Tribunal Federal em que se discutam Leis em tese – é uma discussão do Direito Constitucional, não do Direito Penal ou do Direito Processual Penal! Soa oportunismo levantar-se esta bandeira, com o estardalhaço que se tem levantado, somente agora, com a virada de posição da Suprema Corte.

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Luiz Flávio Gomes chega a, no artigo antes mencionado [06], no afã de defender seu posicionamento contra legem, referir-se à "intérpretes e juízes adeptos do Estado constitucional e humanitário de Direito", como sendo supostos "constitucionalistas" e, neste passo, adotarem a corrente da inconstitucionalidade da vedação à progressão de regime e da eficácia erga omnes da decisão do Supremo, em oposição aos supostos "legalistas", que, em sua visão, seriam os intérpretes e juízes que adotariam "a interpretação seca da lei". Cuida-se de pretensa divisão dos operadores do Direito em "constitucionalistas" e "legalistas", divisão esta que não espelha a realidade, já que, em sã consciência, nenhum, rigorosamente nenhum operador do Direito, nos dias atuais, sustenta a "interpretação seca da lei" em desprezo à Constituição. O que acontece é que, felizmente, para o bem, inclusive, do "Estado constitucional e humanitário de Direito", existem intérpretes e juízes – a maioria, por sinal! – que, ao contrário dos outros, os supostos "constitucionalistas", não possuem o dom de, lendo a Constituição, enxergar nela coisas que gostariam que ali estivessem, mas que, por opção soberana do Poder Constituinte, definitivamente não estão. Exemplo disto é a cogitada eficácia erga omnes de decisão tomada em controle difuso de constitucionalidade.

Felizmente (para o bem do Estado constitucional, democrático e humanitário de Direito, repita-se), existem intérpretes e operadores do Direito que não têm a soberba de quererem criar a sua própria Constituição mas, ao revés, têm a hombridade de se curvarem ao texto constitucional, ainda que, eventualmente, com ele não concordem, respeitando as Leis produzidas pelo Poder legitimado, que até podem não estar em sintonia com a sua ideologia, mas encontram guarida na interpretação isenta da Constituição.

Ora, é trivial que as decisões do Supremo Tribunal Federal tomadas em controle difuso de constitucionalidade não possuem eficácia vinculante e nem efeitos erga omnes, a não ser que seja adotada a providência do art. 52, X, da Constituição Federal [07], o que não foi feito em relação ao tema em debate. Ou que seja aquela decisão encampada por súmula vinculante, em conformidade com o disposto na Lei nº 11.417/06, que regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45 [08]. Cabe aqui uma pergunta: para que serviria a súmula vinculante se qualquer decisão tomada pelo Plenário do Supremo em controle difuso de constitucionalidade produzisse efeitos erga omnes?

Tal tese, além de não ter respaldo constitucional – seus defensores, aliás, não se dignam, em nenhum momento, a apontar onde está o dispositivo legal ou constitucional que respalda expressamente esta afirmação, limitando-se a invocarem, levianamente, princípios constitucionais – ainda reduz à inutilidade o recém criado instituto da súmula vinculante. Em suma: para que uma decisão do Supremo Tribunal Federal produza eficácia vinculante e efeito erga omnes não basta que o próprio Tribunal, por seus Ministros, ou mesmo parte da Doutrina, assim desejem; é preciso que a Constituição o tenha desejado. O Supremo Tribunal Federal é intérprete da Constituição; e não a própria Constituição. Seus Ministros são a voz da Constituição; não o próprio Constituinte. O Supremo Tribunal Federal, definitivamente, não está acima da Constituição. Será preciso uma nova Revolução Francesa para que se compreenda isto?!

Neste contexto de desencontros e perplexidades veio a Lei em exame – a Lei nº 11.464/07. Precipitado, o Legislador, antes mesmo de esperar para saber o que pensa a atual composição do Supremo Tribunal Federal [09], contrariando a vontade popular e num momento de explosão de criminalidade, resolveu desistir do regime integralmente fechado e criar, na Lei, a possibilidade de progressão de regime nos crimes hediondos e figuras equiparadas, prevendo, somente, um tempo de cumprimento de pena maior para a progressão, no caso em questão.

Tem que ser respeitada a vontade do Legislador, já que, por óbvio, a instituição legislativa da possibilidade de progressão de regime não tem nenhum vício de constitucionalidade, além de atender melhor, reconhece-se, o princípio da individualização da pena [10].

Tentando pacificar a discussão e seguir a orientação que passava a ser majoritária na Corte Constitucional, sem perder o norte da necessidade de uma punição mais severa para os crimes hediondos e figuras equiparadas [11], o que implicaria num tempo maior de encarceramento em relação aos demais, o Legislador estabeleceu que a progressão nos crimes hediondos e figuras equiparadas virá cumpridos 2/5 (dois quintos) da pena, ao invés dos 1/6 (um sexto), previstos como regra no art. 112 da Lei de Execução Penal, ou 3/5 (três quintos) se o condenado for reincidente [12].

Quanto a aplicação das novas regras para frente inexistirá qualquer discussão, pois mesmo para aqueles que lutaram até o fim pela derrubada do regime integralmente fechado da versão inicial da Lei de Crimes Hediondos, pelo menos até o presente momento, não se conhece quem defenda que o legislador não poderia estabelecer prazos diferenciados para a progressão de regime, levando em conta o tratamento constitucional mais severo dos crimes hediondos e suas figuras equiparadas, sem que, com isto, ofendesse ao princípio da individualização da pena.

No entanto, quanto a aplicação retroativa do novo prazo diferenciado para a progressão nasce uma nova polêmica, que promete agitar Doutrina e Jurisprudência, polêmica esta que remete ao cerne da discussão até aqui delimitada – a constitucionalidade da vedação à progressão de regime que outrora vigia e os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal no leading case mencionado.

Sem mais delongas, passa-se ao exame da questão no tópico seguinte.


2. APLICAÇÃO DAS NOVAS REGRAS DE PROGRESSÃO DE REGIME AOS CRIMES PRATICADOS ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI nº 11.464/07

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É mister que se defina, a esta altura, se o novo prazo para o cálculo da progressão de regime – 2/5 de pena cumprida, como regra, ou 3/5, se o condenado for reincidente – tem aplicação retroativa, para os crimes ocorridos antes de 29 de março de 2007, ou se só terá aplicação para os crimes ocorridos a partir desta data, ficando os anteriores regidos pela regra geral de progressão de regime estabelecida no art. 112 da Lei de Execuções Penais (cumpridos 1/6 da pena). Não é demais lembrar que a definição deste marco temporal se dá pela teoria da atividade, levando-se em conta o momento da ação, ainda que o resultado venha a se produzir posteriormente, a teor do que dispõe o art. 4º do Código Penal [13].

A resposta a esta indagação se obtém a partir do posicionamento a que anteriormente o observador se filiasse quanto à constitucionalidade da vedação à progressão de regime nos crimes hediondos e figuras equiparadas.

Para aqueles que entendiam que era inconstitucional vedar a progressão de regime em casos tais, só restava resolver a questão afastando a norma impeditiva e, até 29 de março de 2007, calcular a progressão a partir do cumprimento de 1/6 da pena, que era a única regra até então a disciplinar este cálculo (art. 112 da Lei de Execuções Penais). Neste passo, as novas regras quanto ao tempo de cumprimento de pena para progressão constituem-se em novatio legis in pejus, sendo vedada, por óbvio, sua aplicação aos fatos anteriores, na forma do art. 5º, XL, da Constituição Federal [14].

Já para aqueles que entendiam estar em perfeita sintonia com a Constituição a vedação à progressão de regime nos crimes hediondos e figuras equiparadas, posição que aqui se sustenta e se reitera, as novas regras constituem-se em novatio legis in mellius, eis que, num cenário de vedação à progressão de regime, passou-se a admiti-la, ainda que com um tempo maior do que aquele utilizado para o cálculo nas outras espécies de infração penal. Não há nenhum problema, portanto, em exigir, para os crimes praticados antes da mudança legislativa, o cumprimento de 2/5 ou 3/5 da pena, conforme o caso, como requisito objetivo à progressão de regime, posto que tal exigência vem a substituir um quadro em que tal progressão era completamente vedada e, sendo assim, vem para melhorar a situação do réu. O princípio da igualdade não se constitui em óbice a esta afirmação, ao passo em que os novos condenados por crimes hediondos, cometidos após 29 de março de 2007, também estarão sujeitos à progressão de regime no mesmo espaço de tempo. Desigualdade gera a corrente anterior, defendida por Luiz Flávio Gomes [15], que trata desigualmente situações idênticas – beneficiando com a progressão após 1/6 da pena os condenados por crimes hediondos e figuras equiparadas anteriores a 29 de março de 2007, e após 2/5 ou 3/5, conforme o caso, os condenados por crimes hediondos e figuras equiparadas cometidos após esta data, quando, antes, era expressamente vedado o benefício, em norma que era perfeitamente compatível com a Constituição, segundo o entendimento que se acredita ser o correto.

Lembra-se que, para corroborar a posição que aqui se sustenta, se está partindo da premissa de que a decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada no Habeas Corpus nº 82.959, produziu efeitos somente em relação ao caso examinado, não gerando eficácia vinculante e, muito menos, efeito erga omnes, consoante argumentos apresentados no tópico antecedente. A não ser que venha a Súmula Vinculante, para emprestar os efeitos desejados àquela decisão, que estava em fase de gestação no Supremo Tribunal Federal, ainda apresentando interesse jurídico remanescente, senão para casos futuros, uma vez que já resolvidos pela alteração legislativa, mas para casos pretéritos, de direito intertemporal, alvos do presente estudo. Em sendo assim, em vindo a Súmula Vinculante a respeito deste tema, ter-se-á que dar razão a Luiz Flávio Gomes [16], de modo a concluir que as novas regras de progressão só poderão ser exigidas para os crimes ocorridos após a vigência da Lei nova, ficando os crimes anteriores a isto regidos pela regra geral de progressão, cumpridos somente 1/6 da pena.

Uma terceira alternativa é oferecida, com a devida venia de forma equivocada, por Renato Marcão: entendendo ele, ao mesmo tempo, que era constitucional a vedação à progressão de regime da redação primitiva da Lei de Crimes Hediondos e que a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 82.959 produz efeitos erga omnes, independente de vir ou não a Súmula Vinculante, propõe que a aplicação retroativa se dê com limites – somente para os crimes ocorridos antes de 23 de fevereiro de 2006, data do julgamento do referido Habeas Corpus. Para os crimes ocorridos entre 23 de fevereiro de 2006 e 28 de março de 2007, sustenta que não caberia aplicar retroativamente as novas regras, as quais só voltariam a reger os crimes praticados a partir de 29 de março de 2007, data da vigência da nova Lei, ficando aquele período intermediário governado pelas regras de progressão da Lei de Execução Penal (1/6 da pena cumprida) [17]. Propõe Renato Marcão um incompreensível hiato na regência dos fatos criminosos pelas novas regras de progressão, as quais não se aplicariam num determinado período, como se as regras que então se aplicariam naquele demarcado período não tivessem que retroagir, para aproveitar também o período anterior, em obediência ao art. 2º, parágrafo único, do Código Penal [18], e também ao art. 5º, XL, da Constituição Federal, em interpretação a contrario sensu [19]. Ora, pouco importa se o autor partilhava do entendimento da constitucionalidade da vedação à progressão de regime nos crimes hediondos e figuras equiparadas. Uma vez reconhecendo eficácia vinculante e efeitos erga omnes à decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 82.959, a conseqüência disto é o afastamento imediato da norma que vedava a progressão de regime, com o resgate também imediato do instituto da progressão, na sua única disciplina até então existente (1/6 de pena cumprida), o que, por se tratar de norma mais benéfica, é imperioso que retroaja, produzindo efeitos também sobre o período no qual, antes, o Supremo validava a vedação à progressão. Do contrário, restariam letras mortas os dispositivos do Código Penal e da Constituição Federal antes mencionados (arts. 2º, parágrafo único, e 5º, XL, respectivamente). Nem se diga que o Supremo Tribunal Federal explicitou, no julgamento do Habeas Corpus, que "a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão" [20], como se extrai da ementa do julgamento, ao passo em que a atribuição de efeitos ex nunc à decisão em comento se deu na perspectiva de eventuais questionamentos de ordem patrimonial, não alcançando a possibilidade de aproveitamento daquela decisão no tocante às progressões ainda possíveis de serem operadas, na esteira do voto do Ministro Gilmar Mendes, onde se colhe a ressalva de que "esse efeito ex nunc deve ser entendido como aplicável às condenações que envolvam situações ainda suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão" [21].

Esta terceira corrente está, pois, errada, na medida em que o reconhecimento de eficácia erga omnes à decisão do Supremo, de uma forma ou de outra [22], fará com que se apaguem por completo os efeitos do período em que a Corte validava o impedimento à progressão, tendo que retroagir a declaração posterior de inconstitucionalidade daquela norma, produzindo efeitos se ainda for possível submeter o condenado ao regime de progressão, com a única base de cálculo existente até então, que era a de 1/6 da pena cumprida [23], sendo certo que o novo patamar de 2/5 ou 3/5 só viria a se operar algum tempo depois, com o advento da Lei nº 11.464/07, que não poderia ser aplicada em nenhum período anterior por já encontrar um cenário mais favorável, sendo lex gravior em relação a este cenário.

2.1 A QUESTÃO DO CRIME DE TORTURA (LEI nº 9.455/97).

É diferente a situação do crime de tortura, que merece exame à parte.

Isto se dá pelo fato de, desde 1997, com o advento da Lei que o definiu (Lei nº 9.455/97), afastando-se da regra então vigente em relação aos crimes hediondos e demais figuras equiparadas, ter sido permitida a progressão de regime, consoante o disposto em seu art. 1º, § 7o [24], que estabelecia o regime fechado apenas para o início do cumprimento da pena.

Como, à época, não havia outros patamares específicos a governarem a progressão de regime no crime de tortura, a base de cálculo utilizada era a do art. 112 da Lei de Execuções Penais, ou seja, 1/6 da pena cumprida.

Deste modo, as novas regras – de 2/5 ou 3/5 – constituem-se em novatio legis in pejus em relação às anteriores, só podendo ser aplicadas na hipótese de crimes de tortura que venham a ser cometidos a partir da vigência a Lei nº 11.464/07 (29 de março de 2007). Neste ponto, a Lei em questão resgata a simetria recomendada no tratamento dos crimes hediondos e suas figuras equiparadas [25].

Bom que se diga que o restabelecimento da progressão de regime no crime de tortura, feito em 1997, beneficiou, por ser novatio legis in mellius, os condenados pelo crime praticado antes da adoção da referida Lei, que passaram a ter direito à progressão, cumpridos 1/6 da pena, entendimento que não experimentou qualquer tipo de controvérsia.

Esta constatação expõe o equívoco e a fragilidade daquela terceira posição defendida por Renato Marcão [26], que deveria sustentar, aqui, que a progressão de regime para crimes de tortura praticados antes de 08 de abril de 1997 (data em que entrou em vigor a Lei nº 9.455/97, permitindo a progressão) deveria ser calculada, hoje, com as novas regras de 2/5 ou 3/5, da Lei nº 11.464/07, que seriam lex mittior em relação ao cenário anterior a 08 de abril de 1997, em que era vedada tal progressão pela Lei de Crimes Hediondos, nada obstante, entre aquela data, 08 de abril de 1997, e 29 de março de 2007, data da Lei nº 11.464/07, ter sido governada a progressão de regime no crime de tortura com base no art. 112 da Lei de Execuções Penais, ou seja, no patamar de 1/6 de pena cumprida. A situação é rigorosamente a mesma da situação defendida pelo citado autor em relação à suposta eficácia erga omnes da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus nº 82.959. E a conclusão é igualmente absurda!

Sobre o autor
Marcelo Lessa Bastos

promotor de Justiça do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, doutorando pela Universidade Gama Filho, professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos (Centro Universitário Fluminense)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, Marcelo Lessa. Crimes hediondos, regime prisional e questões de direito intertemporal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1380, 12 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9734. Acesso em: 22 nov. 2024.

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