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Maus-tratos a crianças e adolescentes (art. 13 do ECA):

comunicação ao juiz da infância e sindicância nos hospitais

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Agenda 16/04/2007 às 00:00

COMO SE DÁ A ATUAÇÃO DO JUIZ

A jurisdição menorista é por demais peculiar. Temos defendido em outros trabalhos já mencionados não só que a inércia em tal magistratura é exceção, como ainda que nela existe poder de polícia de natureza especial. Dessa constatação resulta evidenciado a existência de poder normativo subsidiário. Este pode se exercitar sob a forma da expedição de alvarás ou portarias normativas.

Em nosso Estado, com o surgimento da Resolução 30/06 do Conselho da Magistratura, o Tribunal de Justiça superou a, até então, predominante visão do rol do Art. 149 do ECA como cláusula taxativa e restrita. Por uma série de razões – desde necessária atualização hermenêutica até análise lógica e finalística –, com o rito adequado, o Juiz pode extrapolar aquele elenco, tido por exemplificativo.

Vale registrar que, ao contrário do que alguns podem pretender, a nova disposição é avançada e progressista. Tanto assim que ao encerrar o seu voto, acolhido por unanimidade, a Relatora do processo 2006.011.00491, Desembargadora LETÍCIA SARDAS assim consignou:

"(...) voto no sentido da aprovação da MINUTA DE RESOLUÇÃO ofertada por este pequeno grupo de magistrados, que, à frente de seu tempo, com certeza têm a consciência de que são os responsáveis pelo mundo em que vivemos".

Portanto, Juízes "à frente de seu tempo", exercendo indispensável ativismo, contam, hoje com instrumento de ação de índole administrativo-jurisdicional, além das ferramentas meramente administrativas (como fiscalizações, sindicâncias e expedição de ofícios) ou exclusivamente jurisdicionais.

Logo, a fiscalização, sindicância ou coleta de informações em um hospital poderá surgir de uma decisão nos autos de um processo, de uma portaria, ou, pura e simplesmente da ação regular administrativa do Juízo. Estão obrigados a atender tais ordens os seus destinatários, sob as penas da lei.

Em caso de decisão judicial descumprida, sujeita-se o infrator às penas por crime de desobediência, podendo ainda ser enquadrado no Art. 236 do ECA que comina detenção de 06 meses a 02 anos a quem impeça ou embarace a ação de autoridade judiciária, Conselheiro Tutelar ou representante do Ministério Público no exercício das defesas prescritas na proteção integral. Se o caso é de descumprimento de ordem administrativa, sujeita-se o infrator às sanções do Art. 249.

Pode parecer mais duvidosa a possibilidade de aplicação de sanções quando da ação do Comissário, desprovida da formalidade de apresentação de oficio assinado pelo Juiz ou portaria normativa por ele expedida. Entendemos que não procede a dúvida. O Art. 151 do ECA estabelece como obrigações da equipe inter-profissional (onde entendemos, se insere a atuação do Comissário de Justiça), dentre tantas, desenvolver trabalhos de "prevenção e outros, tudo sob imediata subordinação à autoridade judiciária". ‘Trabalhos de prevenção e outros’ não são uma espécie determinada, clausulada e de discriminação rígida. Dependem de hermenêutica e discricionariedade ampla frente ao fato concreto. A urgência é que determinará a minúcia da ação. Como não convém que tal poder interpretativo seja amplamente concedido, ele é prerrogativa do Magistrado, a quem tais ações devem estar subordinadas.

Da mesma forma se deve interpretar o Art. 370 da Consolidação Normativa da Corregedoria Geral da Justiça. Ali se diz que o Comissário de Justiça da Infância e da Juventude exerce funções de "fiscalização, garantia e proteção dos direitos" menoris. O Art. 371 busca explicitar como concretamente se dá tal exercício. Para isso estipula rol de deveres que, obviamente, não exaure o universo de tarefas do Comissário, até porque vários dos itens são bastante genéricos. De todo modo, as expressões "inspecionar", "fiscalizar", "desenvolver trabalhos de cunho preventivo", "cumprir ordem ou diligência", "relatar ocorrência de ameaça ou violação de direitos", abundantes no referido artigo, apontam claramente para a natureza do papel que se espera exerça o Comissário. Mas, o dicionário ensina que ‘comissário’ é o que ‘exerce comissão’, ou seja cumpre encargo que lhe foi atribuído por outrem. Por isso o segredo está na construção "hierarquicamente subordinado ao Juiz", que introduz o Art. 370. Logo, o Comissário é um agente do Juiz da Infância e da Juventude que cumpre tarefas protetivas e preventivas, cuja natureza é exemplificada no Art. 371 do Código de Normas, conforme lhe for determinado pelo Magistrado.

Portanto, o Comissário atua como a longa manus do Magistrado. Até prova em contrário, o faz sempre sob sua ordem direta. Desde que identifique sua condição profissional e a natureza do seu mandato – conforme lhe determina o inciso I do Art. 371 do Código de Normas -, não pode ser cerceado em sua atuação. Certo é que para determinadas ações (apreensões, arrombamentos, etc.) poderá lhe ser necessária a ordem específica e formal. Salvo melhor juízo, esta descabe, no entanto, nas suas funções de rotina, como fiscalizações e sindicâncias, posto que inerentes ao exercício do cargo.

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Por isso é que entendemos que o cerceamento à ação do Comissário e a recusa de prestar informações é cerceamento indevido e ilegal ao próprio Juiz. Punível, portanto à luz do Art. 236 do ECA.

Neste particular, entretanto, nada obsta que, se entender necessário, o Juiz edite provimento específico, atribuindo determinada tarefa a determinado Comissário. Neste caso, além de suas credenciais regulares, apresentaria o Comissário portaria com a designação para, por exemplo exercer ’fiscalizações, sindicâncias, e coleta de informações’ junto as entidades que fossem especificadas no provimento.


UMA PALAVRA SOBRE O ART. 13 E O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Em geral a interpretação mais corriqueira para a expressão ‘maus-tratos’ busca referir o resultado de opressão ou agressão física, ou seja, postura comissiva. Entretanto, não se admite mais concepção tão estreita. O desenvolvimento das ciências da mente e do comportamento fizeram ver a gravidade de maus-tratos também no campo das omissões. Não é só um ‘fazer’ que agride. Um deixar de agir também pode ser maléfico. A falta de carinho, abraço e atenção podem ferir a alma. A vitima muitas vezes não chega a um pronto-socorro, mas carregará seqüelas por toda a existência.

Por isso é que surgiram especificações no campo dos maus-tratos. Categorias como assédio sexual, assédio moral e bullying, surgiram para melhor descrever ações ou omissões nem sempre físicas, mas sempre causadoras de danos psicológicos e morais.

Sem pretender aprofundar o assunto, fazemos sua menção, entretanto, para alertar para o fato de que um ferimento menor, mas que à primeira vista não mereceria maiores cuidados, na mirada mais atenta pode revelar descaso, desleixo ou abandono, maus-tratos, portanto.

Sendo assim vale a pena referir a ligação teleológica entre os artigos 13 e 70 do ECA. Aquele fala em necessidade da comunicação não só dos maus-tratos confirmados, mas também daqueles em que ainda haja tão somente ‘suspeita’. Há coerência com a instituição do princípio da precaução conforme estabelecido no Art. 70, que fala não só em ‘prevenir’, mas como prevenir a mera ‘ameaça’.

Logo, os comunicantes aos quais endereçados os artigos 13 e 245 devem atentar para os objetivos do Legislador.


CONCLUSÃO

COMO AFIRMAMOS NO INÍCIO, INDEPENDENTE DA EDIÇÃO DE PORTARIA, MESMO SE PRESENTE O CONSELHO TUTELAR NA COMARCA, NÃO SE ADMITE SEJA O JUIZ DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE AFASTADO DA APURAÇÃO DE DENÚNCIAS OU INDÍCIOS DE MAUS-TRATOS A CRIANÇAS OU ADOLESCENTES. O PROBLEMA É GRAVE DEMAIS PARA COMPORTAR FORMALISMOS OU SILÊNCIOS. O JUIZ É AUTORIDADE. Embora não seja a única, é um evidente esteio central na construção promovida pelo ECA. Tanto assim que sua atuação, independente da jurisdição, configura exercício de poder de polícia; determina poder normativo subsidiário; traduz-se em instância de transição, complementar e supletiva. Ademais, é preposto do Estado para aplicação da justiça, e desta, como órgão, não se pode afastar qualquer ameaça ou lesão de direitos quanto mais se envolvidos direitos menoris.

PORTANTO, DATA VENIA, SOB QUALQUER ÓTICA, NOS PARECE INACEITÁVEL QUE EXISTA QUALQUER DÚVIDA SOBRE A POSSIBILIDADE DE DIRIGIR-SE O COMISSÁRIO DE JUSTIÇA A UM ESTABELECIMENTO DE SAÚDE E ALI FISCALIZAR, SINDICAR OU OBTER INFORMAÇÕES. A leitura sistêmica do ordenamento assim o autoriza, independente de qualquer outra formalidade. Esta, entretanto, pode ser estabelecida (como a portaria específica antes mencionada) como forma de facilitar a compreensão dos destinatários da diligência. Achamos cabível a analogia com fiscais de outras autoridades (vigilância sanitária, trabalho, posturas, etc.). A estes, devidamente identificados, não se recusa acesso ou informação. Por que seria aceitável a recusa àquele que fiscaliza em prol dos interesses da proteção integral à infância e à adolescência?

TAMBÉM NÃO HÁ RAZÃO PARA QUE, INSTADO PELO JUÍZO (ATÉ MESMO POR MERO OFÍCIO), SE RECUSE O HOSPITAL À COMUNICAÇÃO DO ART. 13 DO ECA. O artigo é claro. A comunicação – prioritária – ao Conselho Tutelar, não exclui "outras providências legais", que podem ser arbitradas pelo próprio hospital, conforme a gravidade e urgência do caso, ou determinadas pelo Juízo, pelo meio que lhe convier. Se ocorreu cancelamento circunstancial de portaria sobre o tema, basta reeditá-la ou, mesmo, salvo melhor juízo, repetir a mesma determinação, por via de ofício firmado pelo Magistrado. Aqui se soma a compreensão analógica do Art. 160 do ECA (possibilidade de requisição de documento a qualquer repartição ou órgão público).

Lembremos, novamente, que o tema – maus tratos a crianças e adolescentes – não admite tergiversações.


Notas

01 Em "VIOLÊNCIA DE PAIS CONTRA FILHOS: a tragédia revisitada", Cortez Editora, 4ª edição, pp 46/48.

02 Obra citada, pp 250

03 Assim tem feito, por exemplo, no arrazoado de diversas decisões a Juíza Inês Joaquina Sant’Ana Santos Coutinho, da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca de Teresópolis.

04 Editora Saraiva, 2004 pp 15

05 Obra citada, pp 285

06 Ensaio que integra a obra "Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos" – Lúmen Júris Editora, 2006, pp 441/442.

07 Obra citada, pp 444

08 Obra citada, pp 443

09 Obra citada, pp 166 – onde menciona audiências e advertências conduzidas por escreventes, quando atos jurisdicionais são função especifica do magistrado.

10 "O EDIFÍCIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL PRECISA DE PORTARIA – Sobre a edição de portarias normativas pelo Juiz da Infância e da Juventude", 2006, dat.

11 Em "Agentes de Proteção da Infância e Juventude: necessidade de sua coexistência com o Conselho Tutelar" – nota nº 10 – disponível no endereço http:/ /www. mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id.204htm

12 Constante do Curso de Direito da Criança e do Adolescente, pp. 532

13 Para maiores detalhes ver FICAI – um instrumento de rede de atenção pela inclusão escolar, ensaio da Promotora de Justiça SIMONE MARIANA DA ROCHA, às fls. 495/505 da obra Pela Justiça na educação (FUNDESCOLA/MEC - Brasília, 2000)

Sobre o autor
Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso. Maus-tratos a crianças e adolescentes (art. 13 do ECA):: comunicação ao juiz da infância e sindicância nos hospitais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1384, 16 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9745. Acesso em: 27 dez. 2024.

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