Foi publicada, em edição extraordinária do Diário Oficial, no dia 29 de março de 2007, a Lei 11.464/2007, que alterou a redação de alguns dispositivos da Lei dos Crimes Hediondos – 8.072/90, na tentativa de adaptá-los à realidade brasileira.
Tendo em vista nossa herança legislativa equivocada,(1) própria da sociedade de risco, urge sejam apresentados os primeiros argumentos dogmáticos acompanhados de suas respectivas críticas, para evitar arbitrariedades no momento de aplicação da nova redação da ainda hedionda lei e assegurar argumentos que poderão ser utilizados em busca de uma aplicação penal neo-constitucionalista.
Em poucas palavras, o legislador afirmou, expressamente, que a pena por crime hediondo será cumprida inicialmente em regime fechado. Retirou a vedação expressa à liberdade provisória e ampliou o quantum da pena (de 1/6 para 2/5 e 3/5) que deverá ser cumprido para a obtenção da progressão de regime.
Vamos aos pontos chave da lei e suas repercussões doutrinárias.
I - É por todos conhecida a decisão histórica do STF, de fevereiro de 2006, nos seguintes termos: "Conflita com a garantia da individualização da pena - art. 5.º, XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do art. 2.º, § 1.º, da Lei 8.072/90." (2)
A decisão erigiu de controle difuso de constitucionalidade, porém tomada na sede do guardião da Constituição Federal, que retirou, de pronto, a eficácia da regra penal que vedava a progressão de regime para os condenados por crime hediondo e equiparado. A norma proibitiva continuou vigente, porém ineficaz. Prova disso foram as reiteradas decisões do STF reafirmando sua posição, fazendo prevalecer a regra materialmente constitucional da individualização da pena.
Em que pese ser ponto pacífico no Supremo, alguns magistrados continuaram a indeferir a progressão de regime para os condenados por crimes hediondos afirmando que a lei continuava vigente, pois inexistente Resolução do Senado Federal, nos moldes do art. 52, X, da CF, para tornar os efeitos da decisão erga omnes.(3) Ledo engano!
Desconhecendo a melhor sistemática neo-constitucionalista, confunde-se eficácia com vigência e ignora-se a utilização dos efeitos da Lei 9.868/99 na fundamentação da decisão que declarou a inconstitucionalidade da vedação em caso concreto, mas com efeitos de controle concentrado de constitucionalidade, para assegurar a pacificação social e a segurança jurídica dos demais casos, como minuciosamente apresentado no Boletim do IBCCRIM de abril de 2006.(4)
Além dos argumentos jurídico-constitucionais apresentados, com a aprovação desta nova Lei 11.464/2007, corroborou-se o afirmado.
O Senado Federal não apenas não baixou a Resolução relativa à declaração de inconstitucionalidade do HC 82.959-SP; reconhecendo a eficácia erga omnes atribuída à decisão do STF, aprovou essas alterações diretamente na Lei dos Crimes Hediondos, respeitando os critérios de individualização da pena, ampliando a quantificação necessária para a progressão de regime de 1/6 para 2/5 (primários) e 3/5 (reincidentes).
Portanto, para aqueles que estavam aguardando a Resolução do Senado Federal sobre o tema, recebam o respeito do Senado pela individualização da pena em forma de lei, ou como uma Resolução "indireta", se forem demasiado apegados à forma.
Ora, se após a decisão do Supremo Tribunal Federal surgiu a viabilidade jurídica dos presos condenados por crimes hediondos progredirem de regime após cumprir 1/6 de sua pena, obviamente a novatio legis deve ser vislumbrada como prejudicial, podendo ser aplicada, apenas, para as prisões efetuadas após 29 de março de 2007, data da entrada em vigor da nova lei.
Mas não irá demorar para surgirem argumentos contrários à lei, à Constituição e à decisão do STF. Argumentarão os opositores do Direito Penal Constitucional que a ausência da necessária Resolução do Senado Federal e o fato da decisão do STF no HC 82.959-SP ter sido tomada em controle difuso de constitucionalidade, não retiraram a vigência da vedação à progressão de regime para crimes hediondos e, portanto, a nova lei mostra-se mais benéfica, devendo ser aplicada retroativamente para "beneficiar" os agentes ativos dessa espécie de delito.
Assim, quem não tinha o direito de progredir de regime passa a tê-lo, nos moldes da nova redação do § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/90, trazida pela Lei 11.464/2007. Esse raciocínio só poderia ser considerado correto se o STF não tivesse atribuído à sua decisão eficácia erga omnes.
Entretanto, os prejudicados por essa interpretação inconstitucional da nova lei poderão socorrer-se no STF utilizando a garantia fundamental do habeas corpus para assegurarem seu direito individual previsto no inciso XL do art. 5.º da CF: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".
Ou seja, aprovou-se a lei para tentar pacificar o entendimento jurisprudencial sobre o tema, mas acabaremos na mesma situação: juízes que preferem ignorar o Direito Penal constitucional aplicando de imediato uma situação mais gravosa, inclusive de forma retroativa. Assim, nova enxurrada de habeas corpus chegará ao STF em busca da progressão com 1/6 da pena a que tinham direito antes da entrada em vigor desta lei, pedindo a revogação dos efeitos da decisão que mandar aplicá-la de forma retroativa.
Parece-nos que a única solução para pacificar a "novela" da progressão de regime na Lei 8.072/90 será o STF, após reiteradas decisões sobre a matéria de cunho constitucional, de ofício, aprovar súmula de efeito vinculante para fazer valer a amplitude dos efeitos de sua decisão originária (HC 82.959-SP) e o entendimento de suas novas decisões contra a retroatividade dessa nova lei, que nada tem de benéfica, aplicando-se, in totum, o art. 103-A da CF.
II – Em relação às novas frações (2/5 e 3/5), entendemos desproporcionais tendo em vista que 1/6 de uma pena aplicada para um crime hediondo representa, em anos e dias de prisão, uma pena proporcionalmente maior do que as aplicadas para delitos ordinários. Logo, a proporcionalidade, vetor principiológico previsto na Constituição estaria perfeitamente respeitado mantendo-se o 1/6 da pena cumprida para a progressão de regime no caso dos crimes hediondos, não havendo a necessidade de ampliar a quantidade de tempo de prisão para obtenção do benefício. Exemplificando: "A", condenado por latrocínio, recebe 24 anos de reclusão como pena individualizada. "B", condenado por roubo simples, recebe 6 anos de reclusão como pena individualizada. Para gozarem do direito de progredir de regime, "A" deverá cumprir 4 anos em regime fechado; e "B" deverá cumprir 1 ano. Com esse exemplo percebe-se, de forma cristalina, o respeito pela proporcionalidade entre o crime mais grave e o menos grave. Parece-nos que a decisão foi pura questão de política criminal, não se podendo utilizar como argumento a busca pela proporcionalidade da pena. Optou-se por deixar os responsáveis pela prática de crimes hediondos e assemelhados mais tempo afastados da sociedade. Apenas isso.
III – Quanto à possibilidade de liberdade provisória, agiu conforme o esperado o legislador, pois a cautelaridade que justifica a manutenção da custódia no decorrer da apuração criminal está relacionada com fatores exclusivamente processuais e são aplicados antes da decisão condenatória definitiva. Assim, mantém-se o regramento das prisões cautelares, respeita-se o princípio da presunção de inocência e permite-se que o magistrado faça uma análise específica e pormenorizada a respeito da possibilidade do indiciado/réu responder o processo em liberdade.
Concluindo, a luta pela constitucionalização do sistema criminal brasileiro continua. Espera-se que o STF continue desempenhando seu papel de forma correta e mantenha-se firme na defesa dos valores constitucionais e da Democracia.
Notas
(1) Hipertrofiada, assistemática, eminentemente retributiva, policialesca e inconstitucional.
(2) STF, HC 82.959-SP, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01.set.06, p. 18.
(3) "Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal."
(4) "O Supremo Tribunal Federal, num verdadeiro leading case, fez aplicação, no julgamento de um habeas corpus, do disposto no art. 27 da Lei 9.868/99, que se refere ao processo e julgamento dos casos de controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade (ADIN ou ADC)." Boletim IBCCRIM, abr. 2006.