O direito e os juízes bíblicos
Direito é o objeto próprio da justiça, que obriga a dar a cada um o que lhe é devido, ou seja, aquilo a que ele tem direito. Já dizia Ulpiano (150 a 228):
Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi (Digesto - Digesta, liv. I. tít. 1, p. 10).
Assim, justiça é a vontade firme e constante de respeitar todos os direitos e de cumprir todos os deveres ou, no dizer de Tomás de Aquino, habitus secumdum quem aliquis [...] ius suum unicuique tribuit (S.th. II-II 58, 1).
Não existe um único termo hebraico para expressar essa nossa idéia de justiça; o seu significado está contido nos conceitos de juízo e retidão.
O significado básico do vocábulo talvez apareça melhor quando é aplicado a pesos e medidas (Dt 25, 15; Lv 19, 36; Jó 31, 6; Ez 45, 10); um peso "justo" é aquele que o é quando se supõe que seja. Um caminho certo leva a uma direção correta (Sl 23, 3); sacrifícios corretos são aqueles que são oferecidos de acordo com as prescrições cultuais (Dt 33, 19; Sl 4, 6; 51, 21). O rebento justo que Iahweh suscita para Davi é provavelmente um rebento legítimo (Jr 23, 5).
A Constituição Federal (arts. 92. a 95) traz as normas referentes aos órgãos do Poder Judiciário e os princípios para o ingresso e promoção na carreira da magistratura.
Como eram feitos os juízes de antigamente?
O livro dos juízes (Jz) cobre o período da história israelita que vai do estabelecimento de Israel em Canaã até o surgimento da monarquia.
Sua história é narrada na parte central (2, 6-16,31). Existem os juízes "maiores" – Otoniel, Aod, Barac (e Débora), Gedeão, Jefté e Sansão –, cujos atos são contados de um modo mais ou menos pormenorizado, e seis juízes "menores" – Samgar (3, 31), Tola e Jair (10, 1-5), Abesã, Elon e Abdon (12, 8-15) –, que são recordados apenas brevemente.
No livro (Jz), os israelitas aparecem como uma simples reunião de tribos, vivendo em aldeias, sem unidade política e praticando uma agricultura sedentária. Não demonstram qualquer sinal de unidade além do constituído por um sentido tribal e pelo culto a Iahweh.
O livro (Jz) mostra dois temas: o das histórias separadas e o da redação que está no Deuteronômio.
O tema das histórias separadas é a libertação, por parte de Iahweh, através de um "juiz". A sua função não é tanto a de determinar a justiça segundo a lei, mas sim a de restaurar a justiça; assim, o seu papel é o de difundir o direito da parte ofendida e vingá-lo.
Ele é concebido como um líder carismático. O seu carisma está explícito em 6, 34, 11, 29, 14, 6-19 e 15, 14. É o espírito de Iahweh, concebido como espírito sobrenatural, que leva a fazer ou dizer coisas que estão além da capacidade humana comum.
Nas histórias de Gedeão (6, 11-23) e de Sansão (13, 2-23), tal assunto foi ressaltado como o relato de uma vocação.
O termo "juiz" é usado no sentido de governante ou chefe. É usado nesse sentido a propósito de Moab em Am 2,3 e reaparece nos títulos atribuídos aos governantes de Cartago, colônia fenícia. Os juízes menores eram provavelmente simples chefes de tribos, aos quais o compilador deu depois o título de "juiz".
O critério usado no Deuteronômio organiza as histórias em um ciclo de pecado, castigo, arrependimento e libertação.
As invasões estrangeiras são enviadas por Iahweh como castigo para o pecado, particularmente por causa de cultos aos deuses cananeus; quando os israelitas se arrependem de seus erros, o libertador põe um fim à punição. Esse tema aparece na introdução (2, 6-3, 6) e nas fórmulas do Deuteronômio que enquadram as histórias (3, 7s. 11s; 4, 1; 6,1; 10, 6-16; 13, 1).
Essas modificações nas histórias antigas expressam a profunda convicção israelita de que o mal é sempre seguido de outro mal, ao passo que quem faz o bem recebe o bem.
A crença no líder carismático como garantia suficiente da segurança de Israel, em virtude das promessas de Iahweh, sem dúvida fazia parte da fé daqueles israelitas para os quais a realeza humana não podia deixar de ser uma violação à realeza de Iahweh.
O livro (Jz) ensinava aos israelitas que a opressão é castigo da impiedade e que a vítima é conseqüência do retorno a Deus. O Eclesiástico louva os juízes por sua fidelidade (Eclo 46, 11-12) e a carta aos hebreus apresenta seus êxitos como a recompensa de sua fé; eles fazem parte daquela "nuvem de testemunhas" que encoraja o cristão a rejeitar o pecado e a suportar com valentia a provação a que é submetido (Hb 11, 32-34; 12, 1).
Juízo é o foro ou tribunal em que se julgam e sentenciam pleitos, litígios e demandas e em que se administra justiça. Jurisdição é juris dictio, "dizer o direito", a função ou atividade desenvolvida pelos juízes de direito, investidos pelo Estado no poder de julgar.
Foi sempre assim com os antigos juízes?
O hebraico não possui uma palavra única para expressar o nosso conceito de justiça. O que isso representa para nós está compreendido nas idéias de "juízo" e "retidão".
Juízo, mishpat, é o que é pronunciado por um juiz, shofet. O juízo não consiste somente na declaração por parte do juiz. Quem tem um mishpat, uma causa ou petição (Jó 13, 18) apresenta-o ao juiz. Quem tem um mishpat é çadiq, reto. Mas a pessoa não é plenamente reta – nem o mishpat é realizado – enquanto não ocorre a declaração do juiz: o mishpat deve portanto ser reconhecido.
Mas o mishpat também pode ser roubado ou "simulado", e o juiz pode privar alguém do seu mishpat; mas se o faz, ele falta à sua missão essencial, a de conceder o mishpat.
O nosso termo mais próximo a mishpat é a "justiça", concebida em concreto, não em abstrato. Assim, mishpat é também um direito, uma reivindicação jurídica (Jr 32, 8) anterior ao "juízo" e que é plenamente estabelecida por ele.
O juiz é assim um defensor do direito, um vingador. Como declaração judiciária, o mishpat estabelece um precedente, aproximando-se do significado de "lei". Em um sentido mais fraco, significa "procedimento": o mishpat de um deus (2Rs 17, 26s) é o justo modo de adorá-lo no culto ritual.
O mishpat do rei (1Sm 8, 9-11) a que acena Samuel é o direito do rei, a exigência do rei ou simplesmente o modo de agir do rei. O juízo aponta em duas direções: a libertação do justo, isto é, daquele que recebe o seu mishpat, e o castigo do culpado (1Rs 8, 32). Assim, o termo também é usado com o significado de punição, mas esse uso é menos freqüente.
O juízo era exercido pelo rei (1Sm 8, 5; 2Sm 8, 5; 2Sm 8, 15): o rei representava a corte suprema, mas em teoria ouvia a causa de quem quer que lhe dirigisse sua petição (2Sm 12, 1-6; 14, 4-11; 1Rs 3, 9.16-28; 2Rs 8, 3). Absalão justifica a sua revolta afirmando que Davi não cumpria mais a sua função de juiz do povo (2Sm 15, 4).
Uma das salas públicas de Salomão era o "pórtico do julgamento" (1Rs 7, 7), onde, ao que parece, o rei ouvia os pleitos. A justiça era uma das atribuições do rei ideal (Is 9, 6; Sl 72, 1-2). Antes da instalação da monarquia, a justiça era exercida por juízes cuja instituição era atribuída a Moisés (Ex 18, 13-26).
Concretamente, esses juízes eram em geral os anciãos do clã, da tribo ou da cidade. Em termos de funções distintas, os juízes são mencionados em Dt 16, 18-20; nas cidades e nas aldeias, os funcionários reais também exerciam indubitavelmente as funções judiciárias.
A reforma judiciária atribuída a Josafá em 2Cr 19, 4-11 foi realizada com a instituição de juízes nomeados pelo rei. Até certo ponto, os sacerdotes também exerciam funções judiciárias, mas é difícil determinar com exatidão o seu poder. Eles certamente detinham o poder judiciário em causas relativas à lei do culto, mas não é impossível que, no antigo Israel, a justiça tenha sido exercida junto aos santuários (1Sm 7, 16; 8, 2).
O caráter religioso da lei israelita deve ter dado aos sacerdotes um poder maior do que imaginamos e também maior do que o poder que detinham em outros povos do antigo Oriente Médio; o poder dos sacerdotes deve ter diminuído com a monarquia, quando todas as instituições israelitas foram um tanto secularizadas.
O direito e os antigos processos bíblicos
Vários processos judiciários podem ser vistos no Antigo Testamento: a aquisição do campo de Hebron por parte de Abraão (Gn 23); a transferência dos direitos do levirato a Booz (Rt 4); o juízo pronunciado por Davi sobre o caso simulado apresentado por Natã (2Sm 12, 1-6) e também sobre o caso simulado da mulher de Técua (2Sm 14, 4-11); o julgamento pronunciado por Salomão no caso das duas mulheres (1Rs 3, 16-27); o processo de Nabot (1Rs 21, 13-14). O processo descrito de modo mais detalhado é o que se conclui com a absolvição de Jeremias (Jr 26, 7-19).
Segundo a lei do Deuteronômio, são exigidos e suficientes duas ou três testemunhas (Dt 17, 6; 19, 5); o falso testemunho é punido severamente (Dt 19, 18-19), infligindo-se à testemunha falsa o castigo previsto para o crime falsamente denunciado. Os juízes também podem testemunhar. Embora o caso de Técua demonstre a existência de um direito de recurso da decisão, na maior parte dos casos a sentença era cumprida imediatamente.
Não se têm provas da existência de advogados: acusado e acusador deviam apresentar suas próprias razões. O processo geralmente era realizado nas portas da cidade: os juízes ficavam sentados, os litigantes ficavam de pé.
A Palestina do Novo Testamento era administrada segundo as leis romanas; entretanto, a administração romana geralmente deixava em vigor a lei local na medida do possível.
Pouco sabemos sobre a administração local da lei na Palestina. A função do juiz era exercida por anciãos locais e por oficiais romanos. A corte suprema do judaísmo e da Judéia era o Sinédrio. Entretanto, a sentença de morte só podia ser pronunciada pelo governador ou legado romano. Esse foi um elemento determinante no processo de Jesus diante do Sinédrio.
Além do processo de Jesus, o Novo Testamento só descreve as audiências de Pedro e João (At 4-21; 5, 26-40) e de Estevão diante do Sinédrio (At 7, 12-56). Evidentemente, o último desses processos ocorreu em uma época em que as autoridades romanas não faziam questão de seu monopólio sobre o direito de condenação à morte.
Paulo e Silas foram condenados sumariamente sob a acusação de incitarem uma revolta em Filipos (At 16, 20-22). Esse tratamento sumário não podia ser aplicado a um cidadão romano, que tinha direito a um processo; assim, quando Paulo menciona sua cidadania romana, os magistrados ficam alarmados (At 16, 36-39).
Galião recusou-se a aceitar uma acusação contra Paulo em Corinto (At 18, 12-17). Paulo recorreu novamente à sua cidadania romana em Jerusalém para fugir a uma flagelação sumária (At 22, 24-29).
Assim, subtraiu-se à justiça do Sinédrio, e sua causa foi levada ao governador da Síria (At 23, 26-30). Os judeus encarregaram um advogado de realizar a sua defesa, mas a de Paulo foi feita por ele mesmo (At 24, 1-22).
Quando a causa foi novamente levada perante Festo, Paulo concluiu o procedimento recorrendo a César, recurso que estava em seu direito como cidadão romano (At 25, 1-12).