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O Direito, os juízes e os antigos processos bíblicos

Agenda 20/05/2007 às 00:00

O direito e os juízes bíblicos

Direito é o objeto próprio da justiça, que obriga a dar a cada um o que lhe é devido, ou seja, aquilo a que ele tem direito. Já dizia Ulpiano (150 a 228):

Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi (Digesto - Digesta, liv. I. tít. 1, p. 10).

Assim, justiça é a vontade firme e constante de respeitar todos os direitos e de cumprir todos os deveres ou, no dizer de Tomás de Aquino, habitus secumdum quem aliquis [...] ius suum unicuique tribuit (S.th. II-II 58, 1).

Não existe um único termo hebraico para expressar essa nossa idéia de justiça; o seu significado está contido nos conceitos de juízo e retidão.

O significado básico do vocábulo talvez apareça melhor quando é aplicado a pesos e medidas (Dt 25, 15; Lv 19, 36; Jó 31, 6; Ez 45, 10); um peso "justo" é aquele que o é quando se supõe que seja. Um caminho certo leva a uma direção correta (Sl 23, 3); sacrifícios corretos são aqueles que são oferecidos de acordo com as prescrições cultuais (Dt 33, 19; Sl 4, 6; 51, 21). O rebento justo que Iahweh suscita para Davi é provavelmente um rebento legítimo (Jr 23, 5).

A Constituição Federal (arts. 92. a 95) traz as normas referentes aos órgãos do Poder Judiciário e os princípios para o ingresso e promoção na carreira da magistratura.


Como eram feitos os juízes de antigamente?

O livro dos juízes (Jz) cobre o período da história israelita que vai do estabelecimento de Israel em Canaã até o surgimento da monarquia.

Sua história é narrada na parte central (2, 6-16,31). Existem os juízes "maiores" – Otoniel, Aod, Barac (e Débora), Gedeão, Jefté e Sansão –, cujos atos são contados de um modo mais ou menos pormenorizado, e seis juízes "menores" – Samgar (3, 31), Tola e Jair (10, 1-5), Abesã, Elon e Abdon (12, 8-15) –, que são recordados apenas brevemente.

No livro (Jz), os israelitas aparecem como uma simples reunião de tribos, vivendo em aldeias, sem unidade política e praticando uma agricultura sedentária. Não demonstram qualquer sinal de unidade além do constituído por um sentido tribal e pelo culto a Iahweh.

O livro (Jz) mostra dois temas: o das histórias separadas e o da redação que está no Deuteronômio.

O tema das histórias separadas é a libertação, por parte de Iahweh, através de um "juiz". A sua função não é tanto a de determinar a justiça segundo a lei, mas sim a de restaurar a justiça; assim, o seu papel é o de difundir o direito da parte ofendida e vingá-lo.

Ele é concebido como um líder carismático. O seu carisma está explícito em 6, 34, 11, 29, 14, 6-19 e 15, 14. É o espírito de Iahweh, concebido como espírito sobrenatural, que leva a fazer ou dizer coisas que estão além da capacidade humana comum.

Nas histórias de Gedeão (6, 11-23) e de Sansão (13, 2-23), tal assunto foi ressaltado como o relato de uma vocação.

O termo "juiz" é usado no sentido de governante ou chefe. É usado nesse sentido a propósito de Moab em Am 2,3 e reaparece nos títulos atribuídos aos governantes de Cartago, colônia fenícia. Os juízes menores eram provavelmente simples chefes de tribos, aos quais o compilador deu depois o título de "juiz".

O critério usado no Deuteronômio organiza as histórias em um ciclo de pecado, castigo, arrependimento e libertação.

As invasões estrangeiras são enviadas por Iahweh como castigo para o pecado, particularmente por causa de cultos aos deuses cananeus; quando os israelitas se arrependem de seus erros, o libertador põe um fim à punição. Esse tema aparece na introdução (2, 6-3, 6) e nas fórmulas do Deuteronômio que enquadram as histórias (3, 7s. 11s; 4, 1; 6,1; 10, 6-16; 13, 1).

Essas modificações nas histórias antigas expressam a profunda convicção israelita de que o mal é sempre seguido de outro mal, ao passo que quem faz o bem recebe o bem.

A crença no líder carismático como garantia suficiente da segurança de Israel, em virtude das promessas de Iahweh, sem dúvida fazia parte da fé daqueles israelitas para os quais a realeza humana não podia deixar de ser uma violação à realeza de Iahweh.

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O livro (Jz) ensinava aos israelitas que a opressão é castigo da impiedade e que a vítima é conseqüência do retorno a Deus. O Eclesiástico louva os juízes por sua fidelidade (Eclo 46, 11-12) e a carta aos hebreus apresenta seus êxitos como a recompensa de sua fé; eles fazem parte daquela "nuvem de testemunhas" que encoraja o cristão a rejeitar o pecado e a suportar com valentia a provação a que é submetido (Hb 11, 32-34; 12, 1).

Juízo é o foro ou tribunal em que se julgam e sentenciam pleitos, litígios e demandas e em que se administra justiça. Jurisdição é juris dictio, "dizer o direito", a função ou atividade desenvolvida pelos juízes de direito, investidos pelo Estado no poder de julgar.


Foi sempre assim com os antigos juízes?

O hebraico não possui uma palavra única para expressar o nosso conceito de justiça. O que isso representa para nós está compreendido nas idéias de "juízo" e "retidão".

Juízo, mishpat, é o que é pronunciado por um juiz, shofet. O juízo não consiste somente na declaração por parte do juiz. Quem tem um mishpat, uma causa ou petição (Jó 13, 18) apresenta-o ao juiz. Quem tem um mishpat é çadiq, reto. Mas a pessoa não é plenamente reta – nem o mishpat é realizado – enquanto não ocorre a declaração do juiz: o mishpat deve portanto ser reconhecido.

Mas o mishpat também pode ser roubado ou "simulado", e o juiz pode privar alguém do seu mishpat; mas se o faz, ele falta à sua missão essencial, a de conceder o mishpat.

O nosso termo mais próximo a mishpat é a "justiça", concebida em concreto, não em abstrato. Assim, mishpat é também um direito, uma reivindicação jurídica (Jr 32, 8) anterior ao "juízo" e que é plenamente estabelecida por ele.

O juiz é assim um defensor do direito, um vingador. Como declaração judiciária, o mishpat estabelece um precedente, aproximando-se do significado de "lei". Em um sentido mais fraco, significa "procedimento": o mishpat de um deus (2Rs 17, 26s) é o justo modo de adorá-lo no culto ritual.

O mishpat do rei (1Sm 8, 9-11) a que acena Samuel é o direito do rei, a exigência do rei ou simplesmente o modo de agir do rei. O juízo aponta em duas direções: a libertação do justo, isto é, daquele que recebe o seu mishpat, e o castigo do culpado (1Rs 8, 32). Assim, o termo também é usado com o significado de punição, mas esse uso é menos freqüente.

O juízo era exercido pelo rei (1Sm 8, 5; 2Sm 8, 5; 2Sm 8, 15): o rei representava a corte suprema, mas em teoria ouvia a causa de quem quer que lhe dirigisse sua petição (2Sm 12, 1-6; 14, 4-11; 1Rs 3, 9.16-28; 2Rs 8, 3). Absalão justifica a sua revolta afirmando que Davi não cumpria mais a sua função de juiz do povo (2Sm 15, 4).

Uma das salas públicas de Salomão era o "pórtico do julgamento" (1Rs 7, 7), onde, ao que parece, o rei ouvia os pleitos. A justiça era uma das atribuições do rei ideal (Is 9, 6; Sl 72, 1-2). Antes da instalação da monarquia, a justiça era exercida por juízes cuja instituição era atribuída a Moisés (Ex 18, 13-26).

Concretamente, esses juízes eram em geral os anciãos do clã, da tribo ou da cidade. Em termos de funções distintas, os juízes são mencionados em Dt 16, 18-20; nas cidades e nas aldeias, os funcionários reais também exerciam indubitavelmente as funções judiciárias.

A reforma judiciária atribuída a Josafá em 2Cr 19, 4-11 foi realizada com a instituição de juízes nomeados pelo rei. Até certo ponto, os sacerdotes também exerciam funções judiciárias, mas é difícil determinar com exatidão o seu poder. Eles certamente detinham o poder judiciário em causas relativas à lei do culto, mas não é impossível que, no antigo Israel, a justiça tenha sido exercida junto aos santuários (1Sm 7, 16; 8, 2).

O caráter religioso da lei israelita deve ter dado aos sacerdotes um poder maior do que imaginamos e também maior do que o poder que detinham em outros povos do antigo Oriente Médio; o poder dos sacerdotes deve ter diminuído com a monarquia, quando todas as instituições israelitas foram um tanto secularizadas.


O direito e os antigos processos bíblicos

Vários processos judiciários podem ser vistos no Antigo Testamento: a aquisição do campo de Hebron por parte de Abraão (Gn 23); a transferência dos direitos do levirato a Booz (Rt 4); o juízo pronunciado por Davi sobre o caso simulado apresentado por Natã (2Sm 12, 1-6) e também sobre o caso simulado da mulher de Técua (2Sm 14, 4-11); o julgamento pronunciado por Salomão no caso das duas mulheres (1Rs 3, 16-27); o processo de Nabot (1Rs 21, 13-14). O processo descrito de modo mais detalhado é o que se conclui com a absolvição de Jeremias (Jr 26, 7-19).

Segundo a lei do Deuteronômio, são exigidos e suficientes duas ou três testemunhas (Dt 17, 6; 19, 5); o falso testemunho é punido severamente (Dt 19, 18-19), infligindo-se à testemunha falsa o castigo previsto para o crime falsamente denunciado. Os juízes também podem testemunhar. Embora o caso de Técua demonstre a existência de um direito de recurso da decisão, na maior parte dos casos a sentença era cumprida imediatamente.

Não se têm provas da existência de advogados: acusado e acusador deviam apresentar suas próprias razões. O processo geralmente era realizado nas portas da cidade: os juízes ficavam sentados, os litigantes ficavam de pé.

A Palestina do Novo Testamento era administrada segundo as leis romanas; entretanto, a administração romana geralmente deixava em vigor a lei local na medida do possível.

Pouco sabemos sobre a administração local da lei na Palestina. A função do juiz era exercida por anciãos locais e por oficiais romanos. A corte suprema do judaísmo e da Judéia era o Sinédrio. Entretanto, a sentença de morte só podia ser pronunciada pelo governador ou legado romano. Esse foi um elemento determinante no processo de Jesus diante do Sinédrio.

Além do processo de Jesus, o Novo Testamento só descreve as audiências de Pedro e João (At 4-21; 5, 26-40) e de Estevão diante do Sinédrio (At 7, 12-56). Evidentemente, o último desses processos ocorreu em uma época em que as autoridades romanas não faziam questão de seu monopólio sobre o direito de condenação à morte.

Paulo e Silas foram condenados sumariamente sob a acusação de incitarem uma revolta em Filipos (At 16, 20-22). Esse tratamento sumário não podia ser aplicado a um cidadão romano, que tinha direito a um processo; assim, quando Paulo menciona sua cidadania romana, os magistrados ficam alarmados (At 16, 36-39).

Galião recusou-se a aceitar uma acusação contra Paulo em Corinto (At 18, 12-17). Paulo recorreu novamente à sua cidadania romana em Jerusalém para fugir a uma flagelação sumária (At 22, 24-29).

Assim, subtraiu-se à justiça do Sinédrio, e sua causa foi levada ao governador da Síria (At 23, 26-30). Os judeus encarregaram um advogado de realizar a sua defesa, mas a de Paulo foi feita por ele mesmo (At 24, 1-22).

Quando a causa foi novamente levada perante Festo, Paulo concluiu o procedimento recorrendo a César, recurso que estava em seu direito como cidadão romano (At 25, 1-12).

Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. O Direito, os juízes e os antigos processos bíblicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1418, 20 mai. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9905. Acesso em: 25 nov. 2024.

Mais informações

Texto baseado em coletânea de artigos publicados no Jornal da Cidade, de Caxias (MA), entre 19/11 e 03/12/2006.

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