Quando pensamos em família, logo nos vem a ideia o grupo de pessoas vinculadas por parentesco biológico, civil ou socioafetivo. Consultando o dicionário, percebemos que são diversos os significados atribuíveis à palavra família, mas todos com um ponto de convergência, que seria a coletividade de pessoas:
1. Conjunto de todos os parentes de uma pessoa, e, principalmente, dos que moram com ela. 2. Conjunto formado pelos pais e pelos filhos. 3. Conjunto formado por duas pessoas ligadas pelo casamento e pelos seus eventuais descendentes. 4. Conjunto de pessoas que têm um ancestral comum. 5. Conjunto de pessoas que vivem na mesma casa (PRIBERAM, 2022).
Além do significado linguístico, a premissa de que família é coletiva também se encontra em sua origem etimológica, que vem do latim famulus, que quer dizer escravo doméstico, ou seja, aquele que serve à morada do seu senhor (AZEREDO, 2020).
O mesmo ocorre quanto ao seu conceito legal, que se encontra na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), que entende por unidade doméstica, ou seja, local onde a família vive como espaço de convívio permanente de pessoas (art. 5º, I), no plural; encontra-se, também, naquela Lei a definição de âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (art. 5º, II). Este dispositivo dispõe que famílias podem ser formada por sujeitos com vínculos de natureza diversa, mas em todos os casos se exige coletividade.
Em suma, não é por mero acaso que família nos remete à ideia de dois ou mais sujeitos.
Ocorre que assim como as demais instituições sociais, as famílias também evoluíram, em especial, no que se refere à disciplina jurídica.
Outrora, entendia-se como entidade familiar aquelas, apenas, decorrentes do vínculo sanguíneo ou cujo núcleo central era o matrimônio; somente estas eram juridicamente protegidas. Mas este cenário vem mudando, sobretudo em razão da entrada em vigor da Constituição de 1988, que elege, dentre seus princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana, firmando a premissa de que a principal preocupação do Estado é a pessoa e a realização de sua personalidade; noutras palavras, o direito serve o homem e não o homem serve o direito (NERY JÚNIOR; NERY, 2009).
Trata-se de importante mudança de paradigma no que se refere à temática ora abordada, pois antes se protegiam as famílias com fim nelas mesmas, ou seja, por serem relevantes instituições sociais (TARTUCE, 2019), que mereciam especial proteção. Atualmente, o cuidado jurídico com elas se dá em razão daqueles que as formam, que por serem dotados de dignidade recebem proteção constitucional (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).
Concluindo, na nova ordem constitucional a família tem caráter instrumental, sendo não fim, mas meio para que seus membros alcancem sua plenitude. Deste modo, pouco importa seus aspectos estruturais e organizacionais. Tanto é que em nosso ordenamento há a previsão de alguns modelos de família[1]. Todavia, a doutrina entende que se trata de rol exemplificativo, ou seja, que não se esgota (BARROS, 2010).
Se família é instituição por meio da qual seus membros atingem sua plenitude, surge o debate acerca daqueles que, por vontade própria ou circunstâncias alheias, optam por viver só. Partindo da lógica acima, de que família é instrumento da realização humana, sendo irrelevante seu modelo, reconheceu-se, como entidade juridicamente protegida, a chamada família celibatária, ou família single, que seria aquela formada por um sujeito apenas.
Conforme dito a pouco, é difícil vislumbrar uma pessoa sozinha como família, até porque a construção social, histórica, linguística, e até mesmo legal, do que vem a ser ela nos remete à ideia de coletividade. Porém, o direito tem como primeira preocupação a pessoa humana, não devendo aqueles fatores se sobreporem à sua dignidade. Seguindo esta lógica, Tartuce (2019) sustenta que o reconhecimento da família celibatária é uma concretização do princípio dignidade da pessoa humana.
Verifica-se hipótese de família celibatária na jurisprudência do STJ, pois nos termos da sua Súmula 364 (2012): O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas. Neste enunciado se reconheceu que o imóvel da pessoa que vive só não pode ser penhorado; trata-se de verdadeiro reconhecimento da família celibatária, tendo em vista que o diploma que cuida da impenhorabilidade acima referida, Lei 8009/1990 (BRASIL) prevê, em seu artigo 1º, que é bem de família, portanto impenhorável, aquele onde reside a entidade familiar.
Enfim, famílias podem ter os mais diversos arranjos e modelos, pouco importando sua composição. Trata-se de instrumento para a realização da dignidade dos seus membros (ou membro). Atingindo este fim, é família, mesmo que formada por uma só pessoa.
REFERÊNCIA
AZEREDO, Christiane Torres de. O conceito de família: origem e evolução. Portal do IBDFAM: artigos, Belo Horizonte, 14 dez. 2020. Disponível em: https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/1610/o+conceito+de+fam%C3%ADlia:+origem+e+evolu%C3%A7%C3%A3o.Acesso#:~:text=61)%2C%20a%20origem%20etimol%C3%B3gica%20da,filhos%2C%20servos%20livres%20e%20escravos. Acesso em: 8 jul. 2022.
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: princípios e operacionais. Disponível em: http://www.srbarros.com.br/pt/direitos-humanos-da-familia--principiais-e-operacionais.cont. Acesso em 8. jul. 2022.
BRASIL. Lei Maria da Penha (2006). Método: São Paulo, 2020.
BRASIL. Lei n. 8009 (1990). Método: São Paulo, 2020.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Direito das Famílias. São Paulo: Saraiva, 2011.
NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
PRIBERAM, 2022 (dicionário). Disponível em: https://dicionario.priberam.org/Fam%C3%ADlia. Acesso em 8 jul. de 2022.
STJ, 2012. Súmula 364. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2012_32_capSumula364.pdf. Acesso em: 8 jul. 2022.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, volume único. 9. ed. São Paulo: Método, 2019.