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Reflexos da Lei nº 14.133/21 nas contratações realizadas pelas empresas públicas e sociedades de economia mista brasileiras

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Agenda 08/01/2024 às 14:20

O estudo discute a aplicação da Lei 14.133/2021 nas contratações de empresas estatais e a necessidade de adequação à hermenêutica jurídica.

Resumo: Trata-se do estudo das repercussões da Lei 14.133/2021 nas contratações realizadas pelas empresas estatais, haja vista que, mesmo com legislação específica, as empresas públicas e sociedades de economia mista utilizam-se de dispositivos constantes na Lei nº. 8.666/93 que se encontram revogados, pendentes de revogação, ou contemplados de maneira diversa na Lei nº. 14.133/2021. Fora realizada pesquisa na Constituição Federal de 1988, no Estatuto Jurídico das Empresas Estatais e estudo comparativo entre as Leis de Licitação e Contratos Administrativos, atualmente, coexistentes no ordenamento jurídico pátrio, perpassando por questões de hermenêutica jurídica disciplinadas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Os resultados encontrados indicam que as contratações realizadas pelas empresas estatais, desde o surgimento da Lei nº. 13.303/16, estão em crescente evolução e observam as peculiaridades destes entes da administração indireta, todavia, em aspectos pontuais, se reportam às normas gerais de licitações e contratos e, para tanto, com a novidade legislativa, carecem de adequações que se compatibilizem com a hermenêutica.

Palavras-chave: Repercussões. Lei. Geral. Licitação. Estatais.


1. INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos, a atuação das empresas estatais vem em constante ascendência no sistema jurídico-administrativo. Desde o seu surgimento com formalidade legislativa no Decreto- lei nº. 200, de 25 de fevereiro de 1967, passando pela previsão no art. 173 §1º da Constituição Federal de 1988 ao surgimento da Lei nº. 13.303/16.

Conquanto se reconheça a importância do estatuto jurídico das empresas públicas, das sociedades de economia mista e das subsidiárias como lei específica regulamentadora das contratações efetivadas pelas empresas estatais, é consabido que; seja por autorização legislativa, por entendimento doutrinário ou jurisprudencial; são aplicados dispositivos da Lei nº. 8.666/93 que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública.

O administrativista Justen Filho, em obra intitulada A contratação sem licitação nas empresas privadas. Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016 (2016: 288), admite a possibilidade excepcional e em situações específicas, nas hipóteses de identidade de pressupostos, de finalidade e de conteúdo das situações disciplinadas, a aplicação da Lei nº. 8.666/93 para suprir omissão.

De igual sorte, em decisão exarada no acórdão do Plenário do Tribunal de Contas da União nº. 739/2020, de relatoria do Ministro Benjamin Zymler, estabelece-se:

10.41. Nada mais razoável do que complementar as lacunas de um estatuto com as disposições de outro, mais geral, que trata do mesmo assunto, desde que compatíveis. À luz desse critério, é perfeitamente possível que se considere extensível ao regime da Lei 13.303 a restrição da Lei 8.666 à exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de tempo ou de época ou ainda em locais específicos como requisito de qualificação técnica.

10.42. Além disso, tal restrição não passa de detalhamento da aplicação dos citados princípios da competitividade e da isonomia. É claro, pois, considerando-se a sujeição dos dois estatutos referidos a esses princípios, que esse comando da Lei 8.666, cuja pertinência é facilmente perceptível, complementa de forma compatível os requisitos de habilitação técnica da Lei 13.303.

Em atenção ao princípio da especialidade e das orientações de hermenêutica jurídica que resguardam o sentido da norma, a posição que aparenta mais coerência consiste na ideia segundo a qual a Lei nº. 8.666/93 deve ser aplicada às contratações oriundas das empresas estatais, unicamente, nas hipóteses e nas condições previstas na Lei nº. 13.303/16.

Com a entrada em vigor da Lei nº. 14.133/21, intitulada como Lei de Licitações e Contatos Administrativos, torna-se imperioso esclarecer alguns questionamentos quanto aos reflexos da inovação legislativa nas contratações das empresas estatais, a exemplo de: Como compatibilizar a aplicação da Lei nº. 14.133/21 e a Lei nº. 8.666/93 enquanto ambas estiverem vigentes? De que maneira serão observados os dispositivos que a Lei das estatais expressamente autoriza a aplicação da Lei nº. 8.666/93? Qual a consequência para as empresas estatais da revogação da Lei 10.520/02 pela Lei 14.133/21?

Esse trabalho visa a contribuir para o esclarecimento das questões pontuadas acerca dos reflexos da Lei nº. 14.133/21 nas contratações das empresas estatais, sob a ótica legislativa.

Entretanto, cumpre destacar que, inobstante se trate de questões pontuais de repercussão direta para as empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias, não se pretende no curso da abordagem o esgotamento do assunto, haja vista a dinamicidade existente no direito enquanto ciência social.


2. EMPRESAS ESTATAIS E COMPATIBILIDADE COM A LEI Nº. 14.133/21

2.1 Surgimento das Empresas Estatais e Regulamentação Normativa

Historicamente, o surgimento das empresas estatais no Brasil, com formalidade legislativa, tem origem no Decreto-lei nº. 200/67, compreendendo descentralização da Administração Federal, cujas espécies são: empresas públicas e sociedades de economia mista (BRAGAGNOLI, 2020: 23).

Destaca-se, na ocasião, que embora com conceitos distintos, ambas as espécies se destinavam à exploração da atividade econômica.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, art. 173 §1º, consagra-se a possibilidade de as empresas estatais realizarem a prestação de serviços públicos, ressaltando o constituinte que, caberá a lei estabelecer o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias.

Assim, nos dizeres de Barcelos e Torres (2020: 29):

As estatais são criadas por lei específica autorizadora, possuindo personalidade jurídica de direito privado e patrimônio público (empresas públicas) ou público e privado (sociedade de economia mista). Com personalidade jurídica própria, representam o fenômeno da descentralização administrativa, necessário para permitir que o modelo empresarial privado, com suas peculiaridades, seja utilizado para o melhor desempenho da respectiva finalidade, seja a prestação de serviço público ou a exploração da atividade econômica.

Entretanto, apenas em 30 de junho de 2016, impulsionados pelos escândalos nacionais de corrupção, entra em vigor a Lei nº. 13.303, dispondo sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A legislação de regência das estatais preocupa-se com a instituição de um modelo de governança destinado a resguardar a integridade da gestão, com o estabelecimento de regras de responsabilidade empresarial, bem como disciplina um novo regime jurídico de licitações e contratos.

No que atine às questões licitatórias e contratuais, a legislação específica inovou bastante contemplando modelos licitatórios mais adequados às realidades das estatais, ou seja: mais flexíveis; com maior discricionariedade no tocante aos procedimentos; horizontalizando as relações contratuais com vistas a uma maior eficiência.

No âmbito da União, a Lei 13.303/16 fora regulamentada por meio do Decreto nº. 8.945 de 27 de dezembro de 2016, que descreve no art. 2º, o conceito de empresa estatal como entidade de personalidade jurídica de direito privado, com maioria do capital votante pertencente direta ou indiretamente à União, ou seja, compreendendo na conceituação a empresa pública e a sociedade de economia mista.

No âmbito do Estado da Paraíba, em 28 de junho de 2018, fora publicado Decreto nº. 38.106, constando regras de governança para as empresas públicas e sociedades de economia mista de menor porte, nos termos dos §1º e §3º da Lei nº. 13.303/16.

Inobstante os avanços consagrados pela Lei nº. 13.303/16 nas contratações públicas dos entes da administração indireta abrangidos por esta legislação de regência, por previsão normativa expressa, as normas de direito penal, os critérios de desempate das propostas e os desdobramentos oriundos da adoção preferencial da modalidade pregão autorizam a aplicabilidade dos dispositivos da Lei nº. 8.666/93.

Nessa toada, afirma Niebuhr e Niebuhr (2018: 42):

Excepcionalmente, a legislação tradicional somente deve ser aplicada nas hipóteses e nas condições expressamente prescritas na própria Lei nº. 13.303/16. Explicando melhor, a Lei nº. 13.303/16 prescreve, em algumas passagens, de forma específica e para casos e situações específicas, a aplicação de dispositivos ou passagens da legislação tradicional.

Veja-se, por exemplo, que o terceiro critério para desempate de propostas, de acordo com o art. 55 da Lei nº. 13.303/16, é o estabelecido no art. 3º da Lei nº. 8.248/91 e no §2º do art. 3º da Lei nº. 8.666/93. Ou seja, de modo restrito a essa situação específica, a Lei nº. 13.303/16 remete ao dispositivo da Lei nº. 8.666/93. Não quer dizer, evidentemente, que outros dispositivos da Lei nº. 8.666/93, não mencionados de forma expressa pela Lei nº. 13.303/16, também se apliquem para as estatais. Não há uma aplicação geral da Lei nº. 8.666/93 e demais leis que regem a estatal, ainda que de forma subsidiária.

Nesse quadro, merecem ser destacados três dispositivos da Lei nº. 13.303/16, que assumem relevância.

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O primeiro é o §1º do art. 28 da lei nº. 13.303/16, cujo teor prescreve às estatais a aplicação dos arts. 41 a 49 da Lei Complementar nº. 123/06, conhecida como Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte. Logo, os benefícios lá concedidos em favor das microempresas e empresas de pequeno porte devem ser cumpridos pelas estatais - o que será, nesse estudo, oportunamente, objeto de comentários mais detalhados.

O segundo dispositivo, com repercussão bem mais alastrada, é o inc IV do art. 32 da Lei nº. 13.303/16, que, sem maiores explicações e sem qualquer sentido, prescreve que a modalidade pregão, regida pela Lei nº. 10.520/02, deve ser utilizada, de forma preferencial, pelas estatais, quando pretenderem contratar bens e serviços comuns o que também será, neste estudo, oportunamente, objeto de comentários mais detalhados.

O terceiro dispositivo é o art. 41 da Lei nº. 13.303/16, que demanda a aplicação em relação às estatais dos crimes tipificados na Lei nº. 8.666/93 relacionados às licitações e contratos.

Demais disso, nas hipóteses de omissão legal, parte da doutrina e alguns precedentes oriundos das Cortes de Contas do País sustentam a aplicabilidade da Lei nº. 8.666/93 às contratações embasadas na Lei nº. 13.303/16, motivo pelo qual a matéria desfrutará de maior detalhamento ao longo do presente trabalho.

2.2 Lei nº. 14.133/21- Crimes em Licitação e Contratos Administrativos

A Lei nº. 14.133 que entrou em vigor no ordenamento jurídico pátrio em 1º de abril de 2021, Lei de Licitações e Contratos Administrativos, estabelece no art.º 1º, §1º a inaplicabilidade dos seus dispositivos às empresas públicas e às sociedades de economia mista, ressalvado o disposto no art. 178.

Notadamente com relação ao art. 178 do diploma legal em referência, observa-se que os crimes de licitação passaram a integrar o Título XI, Capítulo II-B do Código Penal Brasileiro, revogando, por conseguinte, os crimes de licitação tipificados na Seção III, art. 89 ao art.99 da Lei nº. 8.666/93.

Com efeito, em estudo comparado da Lei nº. 8.666/93 com a Lei nº. 14.133/2021, identifica-se na novidade legislativa menção expressa ao tipo penal objetivo e ainda, na maioria dos crimes tipificados pela nova legislação, um agravamento no regime de cumprimento de pena.

Neste último aspecto, vale ressaltar que o Código Penal, no tocante ao regime de cumprimento de pena, estabelece no art. 33 que a pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto, enquanto a de detenção será procedida em regime semiaberto ou aberto, salvo necessidade de transferência para o regime fechado.

Depreende-se da análise da Lei nº. 14.133/21 que, dos onze delitos previstos nessa normativa, dez deles também estavam contemplados na Lei 8.666/93 com certas particularidades. Contudo, a exceção do crime de Violação de sigilo em licitação que permaneceu, de igual forma, com a pena de detenção, os demais crimes foram punidos com reclusão, demonstrando maior rigor no que diz respeito ao regime de cumprimento de pena.

Registre-se, por oportuno, que malgrado o regime de cumprimento de pena do art. 337-I assemelhe-se a dicção estabelecida no art. 93 da Lei nº. 8.666/93, então revogado, a pena máxima foi acrescida de um ano.

Também cumpre salientar, dentre as inovações trazidas à baila pela Lei nº. 14.133/21, a inclusão do crime previsto no art. 337-O, tipificado como Omissão grave de dado ou de informação por projetista. O tipo legal consiste em omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustação ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou procedimento de manifestação de interesse. A pena fixada é de reclusão de 6 meses a 3 anos e multa, podendo ser aplicada em dobro na hipótese de ter a finalidade de obtenção de benefício direto ou indireto, próprio ou de outrem.

Nesse aspecto, é relevante pontuar que o diálogo competitivo é uma modalidade de licitação prevista de maneira inovadora pela Lei nº. 14.133/21, art. 6º, inciso XLII, para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados, mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos.

Por sua vez, o procedimento de manifestação de interesse- PMI também é previsto no art. 31, §4º da Lei nº. 13.303/16 para o recebimento de propostas e projetos de empreendimentos, com vistas a atender necessidades previamente identificadas, cabendo ao regulamento a definição de suas regras específicas.

No entender de Bragagnoli (2019:193):

O PMI é, portanto, um instituto com vistas a plena execução da função social da estatal, pois destina-se a captar conhecimento desenvolvido pela iniciativa privada, a partir de diálogo com o mercado, oportunizando que as empresas apresentem previamente soluções viáveis para fins de realização de licitação futura.

Dentre as consequências da revogação da Seção III da Lei nº. 8.666/93 pela Lei nº. 14.133/21, registra-se a impossibilidade de punir o particular pelo crime de Contratação direta ilegal, anteriormente admissível quando da redação do art. 89 da Lei 8.666/93. De acordo com a nova redação, apenas o agente público pode ser enquadrado como sujeito ativo do crime.

De igual sorte, torna-se recomendável atentar, em se tratando de matéria referente aos crimes, para a impossibilidade de celebrar acordo de não persecução penal nos delitos cuja pena mínima fora elevada para 4 anos, haja vista a previsão contida no art. 28- A do Código de Processo Penal vigente.

Por outro lado, quanto aos efeitos dessa inovação legislativa em matéria de crimes em licitações e contratos administrativos para as empresas estatais, verifica-se, com base no art. 41 da Lei nº. 13.303/16, autorização expressa para aplicar às contratações realizadas pelas empresas estatais, as normas de direito penal insculpidas no art. 89 ao art. 99 da Lei nº. 8.666/93.

Logo, com a revogação expressa da Seção III da Lei nº. 8.666/93, entende-se, perfeitamente admissível a aplicação do Título XI da parte especial do Código Penal, Capítulo II- B, que dispõe acerca dos crimes de licitações e contratos administrativos.

2.3 Inovação legislativa e a questão da lei nº. 10.520/02

Entre as novidades previstas na Lei nº. 14.133/21 de repercussão direta nas contratações celebradas pelas empresas estatais, destaca-se a revogação da Lei nº. 10.520/02.

De acordo com o legislador de 2021, após decorridos dois anos da publicação oficial da Lei nº. 14.133, revoga-se a Lei nº. 10.520/02 que institui, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns, e dá outras providências.

A lei nº. 13.303/16, por sua vez, estabelece no art.32, inciso IV que nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas diretrizes, dentre as quais, encontra-se a adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº. 10.520, de 17 de julho de 2002, para aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.

Essa diretriz prevista na Lei das Estatais, há muito já fora debatida na doutrina, principalmente, em razão da Lei nº. 13.303/16 não contemplar em seu bojo modalidades licitatórias, descrevendo no art. 51 procedimento próprio, bastante assemelhado ao pregão.

Partindo dessa premissa, a revogação da Lei nº. 10.520/02, nos moldes delineados pela Lei nº. 14.133/21, reativa a discussão na doutrina quanto à necessidade de aplicação do art. 32, inciso IV da Lei das Estatais que estabelece a diretriz de adoção preferencial da modalidade pregão, transferindo ao aplicador do direito uma atividade interpretativa mais apurada.

De acordo com Niebuhr e Niebuhr (2018:100):

Sem embargo e sem justificativa aparente, o inc. IV do art. 32 da Lei nº. 13.303/16 prescreve, como diretriz, a adoção preferencial da modalidade denominada pregão, instituída pela Lei nº. 10.520, 17 de julho de 2002, para aquisição de bens e serviços comuns [...] . Fez -se uma grande confusão, visivelmente desnecessária.

Em síntese: de uma maneira geral, a Lei nº. 13.303/16 não trata de modalidades de licitação, de modos diferentes para realizar licitação. Ela prescreve um procedimento para licitação, no seu art. 51, que segue a linha procedimental da modalidade pregão, com avanços, porém ela não denomina esse procedimento de pregão nem remete à Lei nº. 10.520/02. Ao lado dessa regra geral, a Lei nº. 13.303/16, no inc. IV do seu art. 32, prescreve que o pregão deve ser adotado preferencialmente para aquisição de bens e serviços comuns.

A previsão de adoção preferencial da modalidade pregão para bens e serviços comuns é desnecessária, porque o procedimento previsto na Lei nº. 13.303/16 é praticamente o procedimento da modalidade pregão. Não se ganha nada, não há qualquer utilidade em permitir e dar preferência à adoção da modalidade pregão e pôr de lado o procedimento de licitação da Lei nº. 13.303/16.

Afora desnecessária, a previsão do inc. IV do art. 32 da Lei nº. 13.303/16, no sentido de adotar, preferencialmente, a modalidade pregão para bens e serviços comuns, gera várias confusões. A confusão inicia com a prescrição do emprego da Lei nº. 10.520/02. Sucede que, assim, os agentes das estatais terão que conviver com dois diplomas legais, a Lei nº. 13.303/16 e a Lei nº. 10.520/02. O melhor é que aplicassem, em licitações e contratos, apenas a Lei nº. 13.303/16. Contudo, não se trata apenas de inconveniência. É que há inúmeras contradições entre a Lei nº. 13.303/16 e a Lei nº. 10.520/02. Então, em termos práticos, adotando a modalidade pregão e havendo contradição entre a Lei nº. 13.303/16 e a Lei nº. 10.520/02, qual deve prevalecer? [...]

Propõe-se, tentando sistematizar tais questões, o seguinte critério, para as situações em que a estatal utilizar a modalidade pregão: tudo que for pertinente à fase interna da licitação, que corresponde aos preparativos do edital, inclusive em relação às suas exigências, e tudo que for pertinente à fase posterior à licitação, da homologação da licitação ao contrato, deve ser regido pela Lei nº. 13.303/16. O que for pertinente à fase externa da licitação, mais propriamente da abertura da sessão pública à sua homologação, deve ser disciplinado pela Lei nº. 10.520/02. Noutros termos, a etapa interna da licitação e todas as exigências do edital, todo o recheio de conteúdo do edital, seguem a Lei nº. 13.303/16. O procedimento da etapa externa, da abertura da sessão pública até seu encerramento e homologação da licitação, segue a Lei nº. 10.520/02.

Em face dessas situações, o regulamento de licitações e contratos das estatais, previsto no art. 40 da Lei nº. 13.303/16, pode dispor sobre o assunto e indicar os seus critérios a respeito das situações em que se deve aplicar as regras da Lei nº. 13.303/16 ou as da Lei nº. 10.520/02. [...]

Sucede que o preferencial abre margem para análise de conveniência e de oportunidade. E, sob essa premissa, se os agentes das estatais não considerarem vantajoso o emprego da modalidade pregão, é a eles permitido adotar o procedimento da Lei nº. 13.303/16. Essa decisão, que afasta a modalidade pregão, todavia, precisa ser motivada. Mais uma vez, neste ponto, o regulamento pode contribuir, indicando que tipo de justificativa pode ser admitida para a não adoção da modalidade pregão para a contratação pelas estatais de bens e serviços comuns.

Indubitavelmente, o auxílio da hermenêutica jurídica apresenta-se de fundamental importância para se construir o alcance dessa diretriz prevista no art. 32, inciso IV da Lei 13.303/16, utilizando-se, para tanto, dos modelos de interpretação disponíveis por esta parte da ciência jurídica.

Dentre os métodos interpretativos disponibilizados pela hermenêutica na análise do tema em questão, o confronto entre a interpretação literal e a interpretação sistemática permite alcançar um entendimento a respeito do sentido da norma licitatória em evidência.

Com base na interpretação literal avalia-se a conexão das palavras nas sentenças, ou seja, a ordem das palavras e a maneira como elas estão integradas são relevantes para obtenção do sentido escorreito da norma.

Nesse aspecto, o intérprete estará estrito ao estudo isolado do dispositivo, não se preocupando com os aspectos do todo normativo. (BARCELOS, 2020:258)

Por sua vez, na interpretação sistemática, prima-se por considerar a interpretação do conceito jurídico como parte do sistema normativo mais complexo que o envolve, admitindo até mesmo a utilização do direito comparado. Considera-se que o ordenamento jurídico é um todo hermenêutico, ou seja, a ordem jurídica deve ser considerada como um sistema fundado na hierarquia das normas.

Nessa dialética, dispõem Barcelos e Torres (2020: 261):

Como acima descrito, podem ser identificadas duas correntes interpretativas, apresentadas como instrumento para identificação do conteúdo da norma aprovada pelo legislador.

Pela primeira corrente interpretativa, baseada no elemento literal, defende-se a aplicação da modalidade pregão e o regime jurídico da Lei nº. 10.520/02, pelas estatais, quando forem licitados bens e serviços comuns, com afastamento do regime da Lei nº. 13.303/2016. Discordamos desta opção interpretativa, por diversos fundamentos, entre eles, pelas implicações por ela causadas, prejudiciais à utilização de inovações relevantes ao procedimento licitatório da Lei das Estatais.

Seria correto afirmar que o dispositivo estudado impõe a aplicação da Lei nº. 10.520/02 (pregão) para a licitação de bens e serviços comuns? Uma melhor interpretação leva a crer que não, tendo em vista o reconhecimento de que tal opção interpretativa roubaria à lei das Estatais parte do teor de suas conquistas, prejudicando a adoção de algumas de suas principais inovações.

Em sentido oposto, há uma segunda corrente interpretativa, baseada nos elementos lógico-sistemáticos. Esta, em nossa opinião, percebe a diretriz indicada pela Lei 9de adoção da modalidade pregão) como uma instrução para que o aplicador da norma, diante do modelo procedimental flexível adotado pela nova Lei das estatais, observe roteiro assemelhado ao prescrito para a modalidade pregão.

Entendemos que esta segunda interpretação, baseada nos elementos lógico-sistemáticos, resguarda a consistência das regras da Lei nº. 13.303/16, permitindo que o procedimento licitatório, embora modulado de forma assemelhada ao prescrito pela modalidade pregão, possa adotar importantes ferramentas previstas na Lei nº. 13.303/16.

Demonstrada a polêmica doutrinária em torno da aplicabilidade da modalidade pregão pelas empresas estatais mesmo em face do art. 32, inciso IV da Lei nº. 13.303/16, impõe-se analisar o conteúdo discriminado pelo art. 193, inciso II da Lei nº. 14.133/21 que, de maneira contundente, após decorridos dois anos da publicação desta Lei, revoga a Lei nº. 10.520/02 e, suas consequências.

Conquanto parte dos administrativistas defendam a impropriedade do legislador ao estabelecer o conteúdo normativo do art. 32, inciso IV da Lei nº. 13.303/16, não se pode desconsiderar o fato de que a adoção preferencial pela modalidade pregão está expressamente contemplada em lei específica de direito administrativo.

A Constituição Federal de 1988 prevê no art. 5º, inciso II o princípio da legalidade estabelecendo que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.

De acordo com a doutrina tradicional, no âmbito administrativo, esse princípio estabelece para o administrador uma dupla subordinação, de maneira que ele só pode agir nos moldes e nos limites estabelecidos pela legislação.

Nos dizeres de Neto e Torres (2017: 60):

Tal subordinação pode ser identificada por duas vertentes: o da vinculação negativa (negative bindung), segundo a qual a legalidade representaria uma limitação para atuação do administrador, e o da vinculação positiva (positive bindung), segundo o qual a atuação dos agentes públicos depende de autorização legal.

O constituinte de 1988 também consagra no art. 37, caput, dentre os princípios a serem observados pela Administração Pública direta e indireta, o princípio da legalidade.

Dessa maneira, infere-se que a revogação da Lei nº. 10.520/02 pelo art. 193 da Lei nº. 14.133/21 necessita ser compatibilizada no ordenamento jurídico, haja vista que além de se tratar de previsão em lei específica, o princípio da legalidade deve ser observado pelo aplicador da norma.

Assim, ante a previsão contida no art. 40, inciso IV da Lei nº. 13.303/16 segundo a qual as empresas públicas e sociedades de economia mista deverão publicar e manter atualizado regulamento interno de licitações e contratos, compatível com o disposto nesta lei, especialmente quanto aos procedimentos de licitação e contratação direta, depreende-se pertinente normatizar no regulamento interno das empresas estatais o procedimento e a adoção preferencial do pregão nas contratações das empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias, em respeito ao princípio da legalidade.

Ressalte-se, por oportuno, que há tempos também se reconhece as vantagens obtidas pelas empresas estatais em optar pelo pregão, sobretudo, na forma eletrônica, contribuindo para a celeridade procedimental das contratações.

Comentários nesse sentido são trazidos por Bragagnoli (2019:265):

Sob o ponto de vista da diretriz trazida pela Lei, adoção preferencial do pregão eletrônico, Zymler et al confirma que a modalidade pregão incorporou ao ordenamento jurídico diversos institutos que foram bem-sucedidos no ambiente de contratações públicas, como a realização do certame por meio eletrônico, a apresentação de propostas por meio de lances, a inversão de fases e a fase recursal concentrada, complementando que todas essas funcionalidades foram contempladas pela Lei nº. 13.303/16, de modo que sopesam a diretriz de adoção preferencial da modalidade pregão eletrônico.

Outrossim, também cabe registar que, em 28 de outubro de 2019 entrou em vigor no ordenamento jurídico pátrio o Decreto nº. 10.024 que regulamenta a licitação na modalidade pregão, na forma eletrônica, para aquisição de bens e a contratação de serviços comuns, incluídos os serviços comuns de engenharia, dispondo ainda sobre o uso da dispensa eletrônica, no âmbito da administração pública federal.

Por força da previsão contida no art. 1º §2º do Decreto nº. 10.024/2019, as empresas estatais que almejem realizar pregão, na modalidade eletrônica, precisarão estabelecer esta previsão no regulamento interno, destacando que a aplicação será apenas no que couber.

Assim, com a redação constante no Decreto nº. 10.024/2019, é possível que grande parte das estatais que pretendam realizar pregão eletrônico já tenham consignado em seus regulamentos o uso dessa modalidade licitatória.

Também é imperioso reiterar que, a revogação da Lei nº. 10.520/02 referida pelo art. 193 da Lei nº. 14.133/21 apenas será efetivada decorridos dois anos da publicação desta norma, ou seja, em 1 de abril de 2023.

Portanto, acredita-se que esse lapso temporal concedido pelo legislador de dois anos é suficiente para a adoção das providências necessárias por parte dos dirigentes e demais responsáveis pelas empresas estatais no sentido de adequarem os regulamentos internos.

2.4 Compatibilidade do art. 55, inciso III da Lei das Estatais com a Lei nº. 14.133/21

O art. 55 da Lei nº. 13.303/16 disciplina o critério de desempate nas situações de igualdade de duas propostas. Esses critérios previstos devem ser observados na ordem em que se encontram enumerados pelo legislador.

Nesse dispositivo é definido diferentes critérios sucessivos para serem aplicados na hipótese de empate das propostas, quais sejam: disputa final, em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta fechada; avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes; os critérios estabelecidos no art. 3º da Lei nº. 8.248/1991, e no §2º do art. 3º da Lei nº. 8.666/93; e sorteio.

Observa-se mais uma vez que, por opção legislativa, a Lei nº. 13.303/16 autoriza a aplicação subsidiária da Lei nº. 8.666/93 nas questões atinentes ao critério de desempate.

De acordo com a redação do art. 3º, §2º da Lei nº. 8.666/93, em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços produzidos no País; produzidos ou prestados por empresas brasileiras; produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País; produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.

Mais uma vez, com base nos argumentos já explicitados da especialidade da norma, qual seja, Lei nº. 13.303/16 e do princípio da legalidade e seus efeitos na seara administrativa, este último, com previsão constitucional no art. 5º, inciso II e art. 37, caput, afasta-se, completamente, entendimento que defenda a inaplicabilidade da Lei nº. 8.666/93 a Lei nº. 13.303/16, no que diz respeito ao critério de desempate.

Ademais, o art. 37, inciso XXI da Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre licitação, preceitua que as exceções não contempladas em legislação específica podem ser tratadas pela lei geral de licitações e contratos.

Ocorre que, com a vigência da Lei nº. 14.133/21, o art. 193 além de revogar a Lei nº. 10.520/02 anteriormente enfrentada, também revoga a Lei nº. 8.666/93, decorridos dois anos de sua publicação oficial.

Logo, retoma-se a necessidade de enfrentar as implicações da nova lei de Licitações e Contratos Administrativos nas contratações realizadas pelas empresas estatais.

Tendo em vista que a Lei nº. 8.666/93, ressalvada a Seção III atinente aos crimes e às penas, mantém-se vigente no ordenamento jurídico pátrio até dois anos da publicação oficial da Lei nº. 14.133/21, a solução que se apresenta mais adequada para as empresas estatais consiste em continuar aplicando o art. 55, inciso III da Lei nº.13.303/16, que trata das questões referentes ao critério de desempate, enquanto vigente a Lei nº. 8.666/93.

Decorrido o lapso temporal estabelecido no art. 193 da Lei nº. 14.133/21, entende-se pertinente às empresas estatais em atenção ao previsto no art. 55, inciso III, passarem a utilizar como critério de desempate o exposto no art. 60 §1º da Lei nº. 14.133/21 que, mantido o empate, assegura preferência, sucessivamente, aos bens e serviços produzidos ou prestados por: I- empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante, ou no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize; II- empresas brasileiras; III- empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País; IV- empresas que comprovem a prática de mitigação nos termos da Lei nº. 12.187/09.

Dessa maneira, na tentativa de captar o espírito dos textos legais, a compatibilização do conteúdo normativo da Lei nº. 13.303/16 e da Lei nº. 14.133/21, nos moldes pontuados, apresenta-se como alternativa recomendável.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARIBONDO, Cibele Figueiredo Moura. Reflexos da Lei nº 14.133/21 nas contratações realizadas pelas empresas públicas e sociedades de economia mista brasileiras . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7495, 8 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99122. Acesso em: 23 nov. 2024.

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