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Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira

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Agenda 11/10/2022 às 13:55

5 Do Emprego das Forças Armadas na Defesa Nacional e na Garantia da Lei e da Ordem

Com efeito, e após intensos debates, dispõe o art. 142 da Carta vigente que as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A Constituinte também determinou que as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas fossem estabelecidas através de Lei complementar (BRASIL, 1988, art. 142).

As Forças Armadas, desde a Constituição de 1891, sempre foram empregadas na garantia da lei e da ordem (GLO), missão que se manteve, como vimos, na Carta atual. A despeito dessa tradição, por conta do comando inserto no art. 142, § 1º, da Lei Maior, foi preciso, para se evitar que antigos episódios se repetissem, que o papel das Forças Armadas, particularmente quanto à garantia da lei e da ordem, estivesse devidamente delineado e em perfeita consonância com os contornos próprios de um Estado Democrático de Direito, inviabilizando, portanto, qualquer possibilidade de ação ex officio.

Assim, objetivando balizar de vez o emprego das Forças Armadas em missões dessa natureza, a regulamentação do art. 142, § 1º, da Constituição de 1988 deu-se através da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, nos termos da qual o Ministro da Defesa exerce a direção superior das Forças Armadas, competindo-lhe, além das demais competências previstas em lei, formular a política e as diretrizes referentes aos produtos de defesa empregados nas atividades operacionais, inclusive armamentos, munições, meios de transporte e de comunicações, fardamentos e materiais de uso individual e coletivo (art. 11-A), sendo assessorado pelo Conselho Militar de Defesa, órgão permanente de assessoramento, pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e pelos demais órgãos, conforme definido em lei (art. 9º).

Ademais, o art. 15 da citada Lei Complementar assevera que o emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro da Defesa a ativação de órgãos operacionais. Da mesma forma, o parágrafo 1o do mesmo art. 15 confere ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. Ademais, nos termos art. 15, § 2º, a atuação das instituições militares na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, depois de esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

Ao tratar do tema garantia da lei e da ordem, a Estratégia Nacional de Defesa, aprovada pelo Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008), estabelece como importante providência compatibilizar a legislação e adestrar meios específicos das Forças Armadas para o emprego episódico dessas missões, tudo em sintonia com os exatos termos da Constituição Federal. Isso evidencia que a atuação das Forças Armadas, no plano atual, encontra-se constitucional e legalmente delineada.

Consoante dispõe o Livro Branco de Defesa Nacional (BRASIL, 2012a), a expressão defesa nacional pode ser caracterizada como o conjunto de medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas.

Por sua vez, conforme previstos na Política Nacional de Defesa, aprovada pelo Decreto nº 5.484, de 30 de junho de 2006 (BRASIL, 2006), os objetivos nacionais de defesa são: garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial; defender os interesses nacionais e as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior; contribuir para a preservação da coesão e da unidade nacionais; contribuir para a estabilidade regional; contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais; intensificar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais; manter Forças Armadas modernas, integradas, adestradas e balanceadas, e com crescente profissionalização, operando de formas conjunta e adequadamente desdobradas no território nacional; conscientizar a sociedade brasileira da importância dos assuntos de defesa do País; desenvolver a indústria nacional de defesa, orientada para a obtenção da autonomia em tecnologias indispensáveis; estruturar as Forças Armadas em torno de capacidades, dotando-as de pessoal e material compatíveis com os planejamentos estratégicos e operacionais; e desenvolver o potencial de logística de defesa e de mobilização nacional.

Nota-se que a atuação das Forças Armadas, consoante o arcabouço normativo citado (Constituição Federal, Lei Complementar nº 97/99, Estratégia Nacional de Defesa, Livro Branco de Defesa Nacional, Política Nacional de Defesa) encontra-se muito bem definida, o que não ocorria em tempos passados, quadro que permitiu uma verdadeira guinada na concepção estratégia das instituições marciais.

Tendo em vista a importância dos quais se revestem, os três últimos documentos norteadores da atuação das Forças Armadas foram lembrados, inclusive, pelo General Enzo Martins Peri, por ocasião de seu discurso de despedida do Comando Exército Brasileiro, em 5 de fevereiro de 2015, ora sintetizado:

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Alinhados com a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa criamos uma nova Concepção Estratégica para o Exército. Avançamos na direção de uma nova Doutrina de emprego da Força, assentada em interoperabilidade, interagência e preparação por capacidades. Passamos a atuar no espaço cibernético. Buscamos novas formas de racionalização e valorização dos nossos Recursos Humanos. Enfim, escalamos novo patamar na busca de novas estruturas, novos materiais, nova doutrina e novas competências. Demos passos largos e seguros para que a Força Terrestre ingressasse na Era do Conhecimento - condição imposta pela crescente estatura do Brasil no cenário internacional. (BRASIL, 2015)

A propósito, cumpre destacar que o Comandante Enzo, em nenhuma linha sequer de seu discurso, teceu qualquer comentário de natureza política, o que apenas reforça o nosso entendimento de que as Forças Armadas, definitivamente, conhecem o importante lugar que ocupam no quadro institucional brasileiro.

Tal modo de proceder certamente faz parte da ordem do dia do atual Comandante do Exército, General Villas Bôas, o qual, quando ainda ocupava o Comando Militar do Amazonas, ao conferenciar na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal, na série de audiências públicas realizadas para debater os Rumos da Política Externa 2011-2012, cujo 3º Ciclo tratou da questão inerente à Defesa Nacional, afirmou que apesar de a questão fronteiriça ser uma das preocupações do governo [...] poderemos caminhar numa direção bastante complexa [...], se não anteciparmos uma série de providências em algumas áreas da nossa fronteira, tendo registrado, inclusive, que o Brasil, em vias de se tornar a quinta economia do mundo, é um ator global que tenta desenvolver capacidades em todos os campos de projeção de poder, mas ainda possui metade do seu território não ocupado e não integrado à dinâmica do desenvolvimento nacional. (BRASIL, 2012b, p. 123)

Diante desse amplo mapa normativo, pode-se afirmar que, nos termos do art. 142, caput, da Constituição em vigor, as Forças Armadas cumprem um duplo papel. No plano principal, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais. Secundariamente, por iniciativa de qualquer dos poderes constituídos, garantem a lei e a ordem, o que somente acontecerá subsidiariamente, ou seja, quando verificada a impossibilidade de os órgãos de segurança pública (BRASIL, 1988, art. 144) fornecerem uma resposta à demanda constatada, nos termos do art. 15, § 2º, da Lei Complementar nº 97/99 (BRASIL, 1999). Por conseguinte, o emprego das Forças Armadas em missões de GLO deve ser entendido como algo excepcional, passível de acontecer somente em situações que efetivamente fogem à ação dos órgãos de segurança pública, pela razão simples de que tal atuação, nos termos da lei de regência, deve ser subsidiária. Nesse sentido, afirma José Afonso da Silva:

Só subsidiária e eventualmente lhes incumbe a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a polícia federal e as polícias civil e militar dos Estados e do Distrito Federal. Sua interferência na defesa da lei e da ordem dependem, além do mais, de convocação dos legítimos representantes de qualquer dos poderes federais: Presidente da Mesa do Congresso Nacional, Presidente da República ou Presidente do Supremo Tribunal Federal. Ministro não é poder constitucional. Juiz de Direito não é poder constitucional. Juiz Federal não é poder constitucional. Deputado não é poder constitucional. Senador não é poder constitucional. São simples membros dos poderes e não os representam. (SILVA, 2005, p. 772)

Assim, considerando a missão (excepcional e sempre subsidiária) conferida pelo art. 142, § 1º, da Constituição às Forças Armadas, bem como a disciplina assentada na Lei Complementar nº 97/99, o Poder Executivo editou o Decreto nº 3.897, de 24 de agosto de 2001, através do qual foram fixadas as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, matéria de competência exclusiva do Presidente da República (art. 2º), sendo que tal decisão presidencial poderá ocorrer por sua própria iniciativa, ou dos outros poderes constitucionais, representados pelos Presidentes do STF, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados (BRASIL, 1988, art. 2º, § 1º).

Em necessária adição, prescreve o art. 3º do mencionado decreto que, no caso de atuação das Forças Armadas em missões dessa natureza, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso dedicados (BRASIL, 1988, art. 144), lhes incumbirá, sempre que se faça indispensável, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência (constitucional e legal) das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.

Em perfeito arremate, o parágrafo único do art. 3º do Decreto nº 3.897/01 preceitua que consideram-se esgotados os meios previstos no art. 144 da Constituição, inclusive no que concerne às Polícias Militares, quando, em determinado momento, indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional. Reforçando ainda mais a ideia de subsidiariedade inerente ao tema, dispõe o art. 5º do citado decreto que o emprego das Forças Armadas na GLO deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível.

Cite-se, como exemplo da atuação das Forças Armadas em cumprimento de missão de GLO, o seu contemporâneo emprego no Complexo da Maré, localizado no Rio de Janeiro, um conjunto de 15 comunidades onde residem cerca de 130 mil pessoas, o que se dá com amparo no art. 142, § 1º, da Constituição Federal, na Lei Complementar nº 97/99, no Decreto nº 3.897/01, bem como na Diretriz Ministerial nº 9, assinada pelo Ministro da Defesa, que autoriza as Forças Armadas a realizarem patrulhamento, abordagens, revistas e prisões em flagrante.


6 Da Ampla Subordinação Atual das Forças Armadas aos Poderes Constitucionais, em Especial ao Poder Judiciário

Pontuamos, antes, quão regrada é atuação das Forças Armadas em missões de garantia da lei e da ordem. Incogitável, portanto, que o emprego militar ocorra ao alvedrio de algum Comandante de Força. Isso decorre da ampla subordinação (constitucional e legal) das Forças Armadas aos poderes constitucionais, e não aos integrantes dos mesmos, inexistindo, portanto, o vácuo jurídico de outrora, de modo que hoje é quase impossível imaginar os militares ostentando o poder político de ocasiões passadas, lacuna que, de certa forma, permitia as diversas intervenções experimentadas em momentos de crise, quando os castrenses, literalmente, tomavam (ex officio) as rédeas da situação, muitas das vezes, importante registrar, estimulados por lideranças civis de então, para as quais a atuação marcial era por demais conveniente, seja para a manutenção do poder (pelo governo), seja para a sua destituição (pelos opositores).

É também a opinião de Maria Celina D'Araujo (2009), para quem a antiga experiência brasileira de envolver as Forças Armadas na política e no combate político estigmatizou profundamente as instituições militares, cicatriz institucional que, diga-se de passagem, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) fez questão de aprofundar, nomeadamente ao recomendar, no seu relatório final o seguinte:

O conteúdo curricular dos cursos ministrados nas academias militares e de polícia deve ser alterado, considerando parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Educação (MEC), a fim de enfatizar o necessário respeito dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública aos princípios e preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos. Tal recomendação é necessária para que, nos processos de formação e capacitação dos respectivos efetivos, haja o pleno alinhamento das Forças Armadas e das polícias ao Estado democrático de direito, com a supressão das referências à doutrina de segurança nacional. (BRASIL, 2014)

Definitivamente, a CNV desconhece o amplo mapa normativo (constitucional e infraconstitucional) acima elencado, derivado, na essência, de decisão soberana emanada da Assembleia Nacional Constituinte, a qual, como visto, deliberou e inseriu, no art. 142, caput, da Carta de 1998, uma expressão (por iniciativa de qualquer destes) que tornou as Forças Armadas absolutamente subordinadas aos poderes constitucionais, inviabilizando práticas interventivas de outrora, quando, não raro, os governos civis eram o primeiro a incentivar a insubordinação e a quebra da hierarquia e da disciplina, valores tão caros para os militares. Nesse sentido, discorrendo sobre o comportamento (antecedente à eclosão do movimento político-militar de 1964) adotado por Jango, Fernando Henrique Cardoso, em entrevista ao site UOL Notícias, em 30 de março de 2014, anotou:

A situação era de impossibilidade de alguma solução. Jango fez um erro enorme que foi permitir a quebra de hierarquia de militar. Quebrou a hierarquia, como é que se faz? Quem é que segura a tropa? Ele quebrou [a hierarquia] no tribunal dos sargentos (revolta dos sargentos em Brasília, em 1963), que ele foi lá e fez discurso aos sargentos. Os generais, os coronéis, os oficiais ficaram com medo. Jango foi ficando num beco sem saída. (CARDOSO, 2014)

O desfecho daquele ano de 1964, quando as Forças Armadas instauram o Regime Militar, todos nós o sabemos e está devidamente registrado na história. No entanto, é possível dizer que, com o advento da Constituição de 1988, as Forças Armadas deixaram de intervir na vida constitucional e se restringiram ao seu papel clássico, próprio de um Estado Democrático de Direito, como, aliás, foi o desejo de Castello Branco ao instituir os fundamentos ideológicos do movimento político-militar de 1964, segundo, inclusive, reconhece o insuspeito jornalista A. C. Scartezini (2015):

Ao assumir o poder, o Marechal Castelo Branco providenciou uma reforma nas Forças Armadas que criou a chamada expulsória: a partir dos 70 anos, os militares passam à reserva automaticamente.

Além da idade, duas providências abreviaram a carreira de generais: nenhum oficial podia ser general por mais de 12 anos; e cada um dos três graus do generalato devia renovar anualmente um quarto de seu quadro. [...]. Os coronéis deviam permanecer na patente por pelo menos sete anos, mas não mais do que nove.

A ideia era castrar o amadurecimento de lideranças internas entre militares [...]. (SCARTEZINI, 2015)

Assim, não há como negar a evolução institucional vivenciada pelas Forças Armadas de hoje, cuja subordinação constitucional aos poderes constituídos não permite mais o seu emprego como mecanismo de solução política.

Afinal, como bem advertiu o Ministro Celso de Mello, quando de sua posse na Presidência do STF, em 22 de maio de 1997 (BRASIL, 1997), as crises políticas devem ser solucionadas dentro do quadro normativo delineado pelo ordenamento constitucional, com os instrumentos jurídicos nele previstos e com fundamento exclusivo no predomínio da Constituição e das leis, o que confere ao Judiciário como um todo, e em particular ao STF enquanto guardião do Texto Magno, um relevante papel, assim desenhado por Celso de Mello, Relator do Mandado de Segurança nº 26.603/DF, Tribunal Pleno, julgamento em 4 de outubro de 2007:

O exercício da jurisdição constitucional, que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição, põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo Tribunal Federal, pois, no processo de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder. (BRASIL, 2007)

Na mesma linha de dicção, Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à Revista Esquerda 21, edição de janeiro de 1996, nº 1 (CARDOSO, 1996), assentou que as Forças Armadas já possuem uma noção a respeito de qual é o papel delas num Estado democrático. O mesmo ex-Presidente, em artigo ("Chegou a hora") publicado no jornal Estadão, em 1º de fevereiro de 2015, ao analisar a atual crise (moral, política, econômica, energética, etc.) vivida pelo país, assentou que:

Tudo isso é preocupante, mas não é o que mais me preocupa. Temo, especialmente, duas coisas: o havermos perdido o rumo da História e o fato de a liderança nacional não perceber que a crise que se avizinha não é corriqueira a desconfiança não é só da economia, é do sistema político como um todo. [...].

Nada se consertará sem uma profunda revisão do sistema político e mais especificamente do sistema partidário e eleitoral. Com uma base fragmentada e alimentando os que o sustentam com partes do Orçamento, o governo atual não tem condições para liderar tal mudança. E ninguém em sã consciência acredita no sistema prevalecente. Daí minha insistência: ou há uma regeneração por dentro, governo e partidos reagem e alteram o que se sabe que deve ser alterado nas leis eleitorais e partidárias, ou a mudança virá "de fora". No passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se vêem sinais.

Resta, portanto, a Justiça. Que ela leve adiante a purga; que não se ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, aos delegados ou à mídia. Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas, desde que efetivamente culpados. Que o STF não deslustre sua tradição recente. E, principalmente, que os políticos, dos governistas aos oposicionistas, não lavem as mãos. Não deixemos a Justiça só. Somos todos responsáveis perante o Brasil, ainda que desigualmente. Que cada setor político cumpra a sua parte e, em conjunto, mudemos as regras do jogo partidário eleitoral. Sob pena de sermos engolfados por uma crise que se mostrará maior do que nós. (CARDOSO, 2015, grifo nosso)

Vê-se, portanto, que FHC reconhece que a atual conjuntura, diversamente do que ocorria no passado, impede que os militares resolvam adotar alguma solução golpista para os graves problemas que atingem o país, justamente por estarem absolutamente compromissados com os alicerces de um Estado Democrático de Direito.

Questionada quanto à distinção entre os comandantes militares da época do Regime Militar e os atuais, Maria Celina DAraujo situou a seguinte distinção:

O que observamos entre os comandantes militares atuais é uma diferença abissal. Hoje os comandantes militares têm uma ideia de profissionalismo muito mais forte, eles não têm um projeto político, são servidores do Estado e obedecem ao governo democrático de direito e à Constituição. Não se apresentam mais como atores políticos, que podem ter um projeto próprio ou falar em nome de um setor. É uma mudança muito grande e positiva que indica o fortalecimento da democracia no Brasil. As democracias têm como característica a subordinação dos militares ao poder civil e democrático. Isso dá mais segurança ao regime democrático. (DARAUJO, 2009)

Por terem essa visão democrática quanto à função que lhes reservou o Documento Fundamental do Estado, certamente as Forças Armadas sequer deram ouvidos, e muito menos se deixaram contaminar ideologicamente, pelas recentes manifestações (muitas das quais veiculadas pela mídia) contra o resultado das eleições presidenciais de 2014, ocasião em que grupos (antidemocráticos) de manifestantes chegaram a pedir a intervenção da Caserna em relação à reeleição da Presidenta Dilma Rousseff.

Ao contrário, tendo em vista o princípio da subordinação, as Forças Armadas de hoje demonstram rejeitar qualquer proposta autoritária, seja de esquerda ou de direita, estando perfeitamente conscientes do papel institucional que lhes foi reservado no contexto do Estado Democrático de Direito, bem como de sua absoluta subordinação aos poderes constitucionais.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7041, 11 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99189. Acesso em: 22 dez. 2024.

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