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Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira

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Agenda 11/10/2022 às 13:55

A última constituinte pretendeu sepultar de vez a experiência militar enquanto fator de equilíbrio político.

RESUMO: O artigo pretende, em linhas gerais, analisar o desenvolvimento do status institucional das Forças Armadas no decorrer da história constitucional brasileira, de modo a verificar se o antigo manejo das instituições militares como instrumento de estabilização política ocorria ou não em consonância com as premissas fixadas pelas Constituições anteriores. Tendo em vista a atual subordinação das Forças Armadas aos Poderes Constitucionais, o texto objetiva, ainda, a partir de uma exegese intrínseca às respectivas realidades históricas, verificar se tal emprego era conveniente para o homem político, inclusive para os políticos militares, trazendo à tona, por oportuno, diversos debates travados a respeito do tema durante a realização da Assembleia Nacional Constituinte. Por fim, analisar-se-á como se dá, no âmbito da defesa nacional e da garantia da lei e da ordem, o emprego das Forças Armadas, bem como sua ampla subordinação aos Poderes Constitucionais.

Palavras-chave: Forças Armadas. Missão constitucional. Estabilidade institucional.


1 Introdução

O artigo objetiva, de um modo geral, analisar como se operou a evolução do status das Forças Armadas ao longo da história constitucional brasileira, de modo a verificar se o pretérito emprego das instituições militares enquanto instrumento de estabilização política ocorria ao arrepio das Constituições anteriores, bem como averiguar se, a partir de uma interpretação consentânea com as respectivas realidades históricas, tal emprego era convenientemente interessante para o homem político, inclusive para os políticos militares, situação absolutamente incogitável na quadra atual, tendo em vista a ampla subordinação das Forças Armadas aos Poderes Constitucionais, conforme assevera, inclusive, a pesquisadora Maria Celina DAraujo, segundo a qual os comandantes militares de hoje não se apresentam mais como atores políticos, mudança extremamente positiva e que indica o fortalecimento da democracia no Brasil (DARAUJO, 2009), constatação que por si só justifica o presente estudo. Para tanto, recorreu-se à pesquisa bibliográfica e documental, em que se buscou, por meio de textos historiográficos, jornalísticos e jurídicos, compor um quadro político-jurídico-militar das Forças Armadas na história do Brasil.

Em seguida, ainda dentro de um contexto constitucional, analisaremos os debates travados na Assembleia Nacional Constituinte sobre a missão constitucional das Forças Armadas na Constituição de 1988, bem como a razão que motivou a construção dada ao texto atual (BRASIL, 1988, art. 142).

Outrossim, discorreremos a respeito de como se dá o emprego das Forças Armadas na defesa nacional e na garantia da lei e da ordem, conforme dispõe o art. 142 da Carta vigente, o qual preconiza que a Marinha, o Exército e a Aeronáutica são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Por fim, avaliaremos se é mesmo possível afirmar, diante desse quadro normativo, que as Forças Armadas efetivamente se subordinam aos Poderes Constitucionais.

Tal estudo, empreendido por meio de pesquisa bibliográfica e documental, permitiu a visualização de um mosaico em que as Forças Armadas protagonizaram ações e intervenções políticas que, mesmo impensadas na conjuntura de hoje, encontravam, ocasião, amparo em textos legais.


2 Do Manejo Pretérito das Forças Armadas Enquanto Instrumento de Estabilização Político-Institucional

De início, sem qualquer pretensão exaustiva, apenas para pontuar os principais episódios que, a nosso ver, contaram com a efetiva participação das Forças Armadas, cumpre recordar que em 1822 o Exército atuou de modo fundamental para a conquista da independência nacional. Ainda no período imperial, segundo pacífica opinião da historiografia especializada, foi peça essencial para a garantia da integridade do território brasileiro. A guisa de exemplo, a vitória na Guerra da Tríplice Aliança (ou Guerra do Paraguai, 1864-1870) contribui para que o Exército brasileiro emergisse como uma instituição dotada de força capaz de ditar os rumos políticos do país. Posteriormente, liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, possibilitou e sustentou a instauração da República, erguida, literalmente, por intermédio da espada, tanto que tal época era denominada de República das Espadas.

Mais recentemente, através do movimento político-militar de 1964, impediu a instalação da ditadura do proletariado no Brasil, esta com indisfarçável viés marxista. Assim, antes de qualquer crítica que se queira lançar sobre a Instituição, o Exército e demais Forças exerceram e exercem papel de indiscutível relevância para a manutenção da integridade do território nacional, um dos elementos indispensáveis à própria existência do Estado.

A respeito do papel político desempenhado pelas Forças Armadas antes de 1964, Dreifuss e Dulci (2008) afirmam ter ocorrido, em primeiro lugar, uma legitimação de seu intervencionismo no sistema político. Reconhecia-se, assim, o famoso poder moderador das Forças Armadas, responsável pela restauração da ordem vigente em momentos de crise.

Lígia Osório Silva (2006), sintetizando os aspectos desse papel castrense, assevera que a participação dos militares na política brasileira remonta à proclamação da República, sendo considerada, por alguns, como uma força tutelar, um poder moderador ou, ainda, como um instrumento dos poderes constituídos.

Pérez (1980), explicando o aludido poder moderador das Forças Armadas na história dos regimes militares na América Latina, aduz que, na etapa na qual dominava a oligarquia tradicional, os governos militares atuavam para defender os interesses criados pelas classes dominantes e para impedir a ascensão das camadas populares, enquanto que o poder civil adotava um comportamento em dois níveis: o 1º, quando estava no poder político e se utilizava dos militares como fator de equilíbrio ou de arbitragem; o 2º, quando se encontrava na oposição, ocasião em que trabalhava incessantemente para que os militares derrubassem o governo constitucionalmente estabelecido e proporcionassem oportunidades para que assumisse ou recuperasse o poder político.


3 Das Missões Constitucionais das Forças Armadas nas Constituições Brasileiras

Entendemos que o antigo manejo das Forças Armadas enquanto instrumento de estabilização política pode ser explicado, entre outros argumentos, a partir de uma análise das missões conferidas às Forças Armadas pelas diversas Constituições do país, o que passamos a fazer. Para tanto, transcrevemos abaixo, de acordo com a grafia da época, os dispositivos que versam sobre a matéria:

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a) Na Constituição de 1824:

Art. 147. A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela Autoridade legitima.

Art. 148. Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente à Segurança, e defesa do Imperio. (BRASIL, 1824)

b) Na Constituição de 1891:

Art. 14. As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior.

A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais. (BRASIL, 1891)

c) Na Constituição de 1934:

Art. 162. As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, ordem e a lei. (BRASIL, 1934)

d) Na Constituição de 1937:

Art. 161. As forças armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do Presidente da República. (BRASIL, 1937)

e) Na Constituição de 1946:

Art. 177. Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. (BRASIL, 1946)

f) Na Constituição de 1967:

Art. 92. As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

§ 1º. Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem. (BRASIL, 1967)

g) Na Emenda Constitucional nº 1, de 1969:

Art. 90. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

Art. 91. As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem. (BRASIL, 1969)

h) Na Constituição de 1988:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º. Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas. (BRASIL, 1988, grifo nosso)

Sintetizando, a Constituição de 1824 dizia que a Força Militar era essencialmente obediente. A Carta de 1891, por sua vez, previa que as Forças de Terra e Mar eram incumbidas da defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior, sendo obrigadas a sustentar as instituições constitucionais. Nos termos da Constituição de 1934, eram destinadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei. A Carta de Vargas, de 1937, impunha às Forças Armadas uma fiel obediência à autoridade do Presidente da República, fundamentais que eram para alicerçar aquele regime ditatorial. Segundo a Lei Magna de 1946, eram dedicadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. A Constituição de 1967 e a EC nº 1, de 1969, estabeleciam que as Forças Armadas eram destinadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. Por fim, na Carta de 1988, as Instituições Militares passam a ser responsáveis pela defesa da Pátria, pela garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Ainda em relação à Constituição de 1988, prevê o art. 84, XIII, que compete privativamente ao Presidente da República exercer o comando supremo das Forças Armadas. Com efeito, nos termos do citado art. 142, caput, as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais; e, por iniciativa de qualquer destes, à garantia da lei e da ordem.

Conforme explica Ferreira Filho (2008, p. 239), as duas primeiras destinações mencionadas no aludido dispositivo em vigor (defesa da Pátria; garantia dos poderes constitucionais) retratam o papel elementar das Forças Armadas, sendo relativas à própria ideia de soberania do Estado brasileiro. A última, por sua vez, traduz hipótese em que as Forças Armadas poderão ser empregadas na garantia da lei e da ordem, por solicitação de qualquer um dos poderes constitucionais, pleito que, registre-se, será submetido à decisão do Presidente da República. No último caso, tal emprego somente poderá ocorrer quando constatado o exaurimento dos órgãos destinados à preservação da segurança pública, conforme previsão contida no art. 144 da Constituição Federal.

Interessante destacar que, desde a primeira Constituição republicana, há expressa referência às Forças Armadas enquanto instrumento de: a) sustentação das instituições constitucionais, conforme preceituava o art. 14 da Constituição Federal de 1891 (BRASIL, 1891a), b) garantia dos poderes constitucionais, consoante previam o art. 162 da Constituição Federal de 1934 (BRASIL, 1934) e o art. 177 da Constituição Federal de 1946 (BRASIL, 1946), c) garantia dos poderes constituídos, nos termos do art. 92, § 1º, da Constituição Federal de 1967 (BRASIL, 1967) e art. 91 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969 (BRASIL, 1969), d) garantia dos poderes constitucionais, na forma do vigente art. 142, caput, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).

Segundo Faoro (1984), o estabelecimento, na Constituição de 1891, de um acentuado papel das Forças Armadas (defesa das instituições constitucionais) teria trazido importantes consequências políticas para o Estado brasileiro, citando o autor, como exemplo, o denominado Golpe de 3 de novembro de 1891, quando Deodoro dissolveu o congresso nacional, conforme previsto no Decreto nº 641, de 3 de novembro de 1891 (BRASIL, 1891b).


4 Do Debate na Assembleia Nacional Constituinte sobre a Missão Constitucional das Forças Armadas na Constituição de 1988

A leitura dos dispositivos constitucionais de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, todos acima transcritos, permite concluir que a redação prevista no art. 142, caput, da atual Carta Magna, notadamente a expressão por iniciativa de qualquer destes, não era encontrada nas demais Constituições, o que certamente não ocorreu por acaso. A nosso ver, a razão ponderável para a construção dada ao texto atual (BRASIL, 1988, art. 142) foi justamente evitar o manejo, antes frequente, das Forças Armadas como instrumento de estabilização política, como tantas vezes ocorreu durante o século passado.

Cumpre, então, entender como a mencionada expressão em questão restou introduzida no Texto Magno de 1988. Para tanto, socorremo-nos de recortes jornalísticos publicados por ocasião dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, na qual intensos debates foram travados acerca da missão das Forças Armadas no novo cenário que se desenhava, conforme registrou o jornal O Globo, na matéria Forças armadas debatem seu papel na constituição, p. 3, edição de 14 de janeiro de 1986:

O papel constitucional das Forças Armadas será o principal tema da reunião entre os três Ministros Militares e os Chefes do Serviço Nacional de Informações, Estado-Maior das Forças Armadas e do Gabinete Militar da Presidência da República. A reunião será hoje no Quartel General do Exército e terá início às 10h30m. (O GLOBO, 1986).

O mesmo tema também foi alvo de assunto publicado no Jornal do Brasil, p. 5, em 29 de agosto de 1987, de autoria do jornalista Ricardo Noblat:

O general Leônidas conheceu um artigo, mas o que saiu impresso no substitutivo foi outro. Os ministros militares queriam - e continuarão querendo - que o artigo reservado ao emprego das Forças Armadas fizesse expressa menção à função delas de garantirem, também, a lei e a ordem, como está dito, por exemplo, na Constituição atual. A referência à manutenção da lei e da ordem desapareceu no substitutivo de Cabral. Poderá retornar depois que o substitutivo for examinado na Comissão de Sistematização. (NOBLAT, 1987)

A questão relativa à definição da função constitucional das Forças Armadas era mesmo tormentosa e, a toda evidência, envolvia os diversos partidos políticos existentes à época, fato constatado através da leitura do denominado Jornal da Constituinte (BRASIL, 1987b), órgão de divulgação das atividades da Assembleia Nacional Constituinte, cujo texto permite visualizar as várias vertentes existentes à época sobre a função constitucional das Forças Armadas, a saber: a) para o PMDB, preservar e defender a soberania nacional, bem como, dentro das fronteiras, ter uma ação na manutenção da ordem pública, sem, contudo, interferir nas instituições civis; b) o PFL, por sua vez, entendia desnecessário promover, quanto ao tema em discussão, qualquer alteração, cabendo às Forças Armadas não apenas assegurar a soberania nacional, garantindo as fronteiras e o País de ameaças de inimigos externos, mas também tem função das mais relevantes na manutenção da ordem interna e garantia das constituições legalmente constituídas, sob o comando do Presidente da República; c) o PDS afirmava que as Forças Armadas deveriam cuidar, sobretudo, do problema relacionado com o perigo de intervenção externa, não sendo descartada, no entanto, a possibilidade de participação das Forças Armadas no plano interno, com a atuação restringida pela autoridade do presidente da República; d) o PDT, atento à problemática do desvirtuamento do emprego das Forças Armadas, achava interessante impedir as seguidas intervenções das Forças Armadas na vida nacional, não lhes competindo, portanto, manter a atitude de tutela da vida política do País; e) para o PTB, o papel das Forças Armadas deveria se restringir à fiscalização das fronteiras nacionais, sendo que, internamente, o poder militar deveria ter atuação na sociedade apenas quando solicitado pelo Presidente da República; f) o PCB concebia as Forças Armadas como instituições garantidoras das fronteiras brasileiras contra agressões externas e participantes, quando solicitadas pela mais alta autoridade civil do País; g) quanto ao PT, o novo Texto Constitucional não deveria permitir, a nível interno, a intervenção das Forças Armadas na vida política do País, restringindo-se sua atuação à garantia da soberania em casos de agressão externa; h) o PDC defendia que a Constituição deveria manter as missões tradicionais das Forças Armadas na defesa contra agressões externas, bem com ter responsabilidade na manutenção da segurança interna; i) segundo o PC do B, as Forças Armadas deveriam resguardar o País de agressões externas, sem, contudo, se imiscuírem nos problemas internos do Brasil, bem como nos movimentos populares; j) o PMB era contrário a qualquer modificação nas atribuições constitucionais das Forças Armadas, sendo que, para o então Senador Antônio Farias, líder do partido, o cerne da questão não estava na legislação em vigor, mas sim nos eventuais desvios no entendimento desse papel das Forças Armadas, verificados em diversas oportunidades; l) já o PSB preconizava um o papel limitado à defesa do País de ameaças estrangeiras. Interessante destacar, ainda, que o Senador Jamil Haddad, então líder do PSB, ao afirmar que as Forças Armadas, a nível interno, não deveriam mais ter uma atuação tutelar sobre a sociedade, reconheceu que a implantação dessa nova concepção encontraria um obstáculo, o cidadão brasileiro, o qual, segundo o referido Senador, teria se acostumado a ver as Forças Armadas como elemento de intervenção no tecido social. (BRASIL, 1987b, p. 12-13)

Ressalte-se que, quanto ao assunto em tela, o Projeto de Constituição não trazia a redação que, ao final, acabou por vingar. O seu art. 247, por exemplo, não contemplava a expressão (por iniciativa de qualquer destes) hoje encontrada no art. 142, caput, da Carta de 1988. Vejamos a redação originalmente prevista no Projeto:

Art. 246. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República.

Parágrafo único. Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

Art. 247. As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.

Parágrafo único. Cabe ao Presidente da República a direção da política de guerra e a escolha dos Comandantes-Chefes. (BRASIL, 1987a)

No entanto, o Substitutivo às emendas de Plenário, aprovado pela Comissão de Sistematização, passou a mencionar algo bem parecido com a aludida frase:

Art. 160. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de um destes, da lei e da ordem.

§ 1º. Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas. (BRASIL, 1987c, grifo nosso)

Nota-se que a redação prevista no art. 160, caput, do Substitutivo em muito se assemelha à que finalmente restou aprovada em 1988.

Newton Rodrigues, em artigo publicado na Folha de São Paulo, em 2 de setembro de 1987, sob o título As Forças Armadas e sua função institucional, corrobora a opinião de que o Judiciário de então, apesar de formalmente independente, ainda não havia alcançado o status institucional atual, tanto que, ao comentar a o debate travado acerca da controvertida expressão (por iniciativa de qualquer destes), demonstrou, por via oblíqua, o papel que as Forças Armadas exerciam naquela ocasião:

O artigo do substitutivo Bernardo Cabral, que tanta celeuma causa é suscetível de melhor redação. Mas está sendo atacado no que tem de melhor, no seu conteúdo fundamental e imprescindível, consistente em negar aos militares a atribuição incontrolável de intérprete da lei (função do Judiciário) e em sujeitar sua atuação coercitiva ao pedido dos poderes constitucionais. (RODRIGUES, 1987)

Após intensas disputas na Constituinte, a expressão por iniciativa de qualquer destes, ora prevista no art. 142, caput, da Constituição de 1988, foi finalmente aprovada, conforme relata a matéria publicada em 13 de abril de 1988, na Folha de São Paulo, de autoria de Dalton Moreira:

Apenas os partidos de esquerda foram contra a aprovação do artigo que regulamenta o papel constitucional das Forças Armadas. Por 326 a 102 votos e cinco abstenções, o plenário do Congresso constituinte manteve ontem o texto da Comissão de Sistematização (idêntico ao do Centrão) que permite aos militares defender o território nacional, garantir os poderes constitucionais e, por iniciativa de um destes (referência aos três Poderes), a lei e a ordem. [...].

Se manteve a tutela militar porque a extensão da expressão da lei e da ordem é muito abrangente. Pode ser tanto uma intervenção numa greve quanto um golpe militar", disse o deputado José Genoíno (PT-SP), autor da tentativa de restringir os poderes das Forças Armadas. Sua emenda, que reproduzia integralmente o texto da ex-comissão de Estudos Constitucionais presidida pelo hoje senador Afonso Arinos (PFL-RJ), limitava a ação dos militares à defesa "da ordem constitucional. (MOREIRA, 1988, p. 6)

Diante do quadro constitucional desenhado a partir da Constituição de 1988, entendemos como pertinente a introdução da referida expressão, de modo a não deixar qualquer margem de dúvida quanto ao papel das Forças Armadas no que se refere à garantia da lei e da ordem, atuação absolutamente atrelada à iniciativa dos poderes constituídos, conforme trataremos em seguida.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7041, 11 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99189. Acesso em: 22 dez. 2024.

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