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Direito, Soberania e Efetividade Jurídica

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Agenda 02/01/2023 às 23:09

Notas Complementares

1. Efetividade Jurídica

Cumpre refletir a respeito da situação clássica de um garoto, que na inerente fragilidade física de seus 10 anos de idade, após comprar (com seu dinheiro) um sorvete sendo, portanto, titular do direito de propriedade e de posse sobre o mesmo , é violentamente abordado por um adolescente de 16 anos (necessariamente provido de maior robustez atlética) que, através do simples uso da ameaça ou da própria força, exige-lhe que entregue o sorvete, tomando-o, por fim, independentemente da insistente alegação (por parte daquele primeiro menor), de que o mesmo é titular de indiscutível direito sobre o objeto jurídico, de cuja posse, aliás, deixou de ser detentor.

Nessa situação, o Direito revela-se, de forma insofismável, como uma simplória realidade ficcional (desprovido de qualquer efetividade), posto que, não obstante a sua inerente previsão de sanção para a exata hipótese narrada, a mesma, por si só, não possui as condicionantes operativas que a tornam efetiva, dotando, em último grau, o Direito de necessária concretude.

Todavia, o resultado final do caso descrito pode ser completamente diferente, na hipótese de o garoto de 10 anos possuir um irmão de 22 anos que, chamado em seu socorro no exato momento da abordagem ameaçadora do adolescente de 16 anos, comparece imediatamente para fazer valer o direito titularizado por aquele, e de cuja simples alegação de existência não foi suficiente para inibir a ação antijurídica do agente.

Ainda assim, é importante consignar que, de forma diversa da relação direta entre o garoto de 10 anos e o adolescente de 16 anos, em que necessariamente este é maior e mais forte que aquele (em decorrência das faixas etárias consideradas) , o irmão de 22 anos não será obrigatoriamente capaz de impor o direito ao adolescente de 16 anos, considerando que, na situação real, ainda que em caráter excepcional, o rapaz de 22 anos intelectualizado e avesso a atividades físicas pode, eventualmente, não ser páreo para um adolescente de 16 anos que seja praticante de fisiculturismo e iniciado em técnicas de lutas marciais.

Neste caso particular, não obstante a presença de um presumível elemento de concreção, mais uma vez o Direito continuará em seu âmbito ficcional, deixando de se projetar, no mundo real, de forma efetiva. No exemplo ilustrativo, que nada mais é do que uma parábola (ou uma analogia metafórica), cumpre assinalar que o irmão mais velho representa, sobretudo (ainda que não exclusivamente), o Estado, como instrumento por excelência de efetivação jurídica, sendo certo, neste prisma analítico, que a simples presença do Estado, por outro lado, não é por si só suficiente para prover a necessária concretude ao Direito, sendo indispensável a existência do Estado forte, ou seja, o Estado dotado de recursos (poder real) e de disposição política para fazer valê-los, através, sobretudo, do poder inerente ao seu terceiro elemento de caracterização, ou seja, a soberania.

2. Estado Forte

Estado Forte, por definição, como veremos mais detalhadamente, em capítulo próprio, é, em última análise, o Estado que edita e faz valer o direito positivo, assegurando não somente a plena realização prática de sua normatização, como bem assim a universalidade de suas decisões.

O conceito técnico de Estado Forte, portanto, não guarda qualquer relação com a concepção estrutural de Estado Autoritário ou Totalitário, como igualmente não traduz qualquer necessária simetria com a noção básica de Estado Democrático, sendo certo que o autoritarismo, o totalitarismo e mesmo a democracia, - na qualidade de regimes políticos -, são apenas formas diferentes de exteriorização do poder estatal, inerentes ao Estado Forte.

Não é por outra razão que é sempre lícito concluir inexistir verdadeira democracia, - ou seja, democracia material (dotada de conteúdo substancial) -, em Estados Fracos (ou seja, naqueles desprovidos de capacidade de realizar, em termos práticos e efetivos, o direito democrático legislado), caracterizando o que convencionalmente designamos por democracia formal (ou aparente).

3. Soberania como Instrumento de Efetividade do Direito

Através de uma autêntica espiral de derivação, revela-se a soberania (na específica qualidade de elemento de maior gradação para o objetivo finalístico de caracterização do Estado) como instrumento da viabilização última da projeção do poder político e, em consequência, da própria efetividade do Direito, transformando-o em uma realidade perceptível, capaz de prover, em sua plenitude (e em última instância), a sua função precípua de ordenação político-jurídica.

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4. Soberania e seu Aspecto Binário

Deve ser observado que, pelo menos inicialmente, a maioria dos estudiosos do tema não conseguiam perceber o inconteste aspecto binário da caracterização conceitual da soberania, optando, por efeito, por traduzi-la ora por seu aspecto substantivo (acepção de poder efetivo), ora por seu aspecto adjetivo (como qualidade inerente (e essencial) do poder estatal). RANELLETTI parece ter sido, neste particular, o primeiro autor a arranhar a concepção contemporânea de soberania, permitindo a dupla tradução do vocábulo como poder (elemento essencial de caracterização do Estado) e como qualidade inerente ao Estado (embora, em termos mais corretos, a soberania deva ser percebida, em seu aspecto adjetivo, como qualidade do próprio poder e não do Estado, posto que todo Estado é, em tese, soberano).

5. Soberania como Pressuposto Fundamental do Estado

Deve ser consignado, por oportuno, que os conceitos de coisa e pessoa são excludentes no direito. Para o mundo jurídico, coisa é tudo aquilo que não é pessoa, ao passo que pessoa é tudo aquilo que não é coisa. Como a soberania, em seu aspecto substantivo, engloba o poder de império (sobre as coisas) e o poder de dominação (sobre as pessoas), abrange, por definição conclusiva, o poder sobre todos os aspectos físicos e humanos no território pátrio.

6. Soberania como Expressão-Origem

Vale assinalar que alguns autores elencam a soberania como virtual expressão-origem, afirmando que a mesma não pode ser, neste sentido, precisamente conceituada, posto que, em sua essência, o termo soberania representa a explicação inicial de diversos outros conceitos jurídicos (e, para certos estudiosos, também políticos) que encontram, desta feita, o seu inerente fundamento, em última análise, na própria soberania.

Analogicamente, segundo esta doutrina, soberania representaria para o direito o mesmo que a expressão Deus (como entidade abstrata originária) para a vida (e a consequente explicação de sua origem, seu fundamento, seu objetivo, etc.), o que, por si só, invalidaria qualquer tentativa de maiores explicações. Ainda neste contexto, estes estudiosos chegam a comparar as diversas teorias justificativas da soberania com as várias religiões existentes no planeta.

7. Significado Político da Soberania

A maioria das Constituições limita-se a declarar que a soberania é do povo ou da Nação, ou que o poder político emana do povo e em seu nome é exercido, sem maior preocupação técnica. Digno de especial menção é o art. 1º da Constituição da Irlanda que frisa bem o significado político da soberania: La nation Irlandaise proclame par la présente Constitution son droit inalénable, imprescriptible et souverain de choisir la forme de gouvernement qui lui agréera, de determiner ses rapports avec les autres nations, de développer sa vie politique, économique et culturelle, conformément à son génie propre et à ses traditions (Trad. adotada por MIRKINE GUETZÉVITCH; Les Constitutions de lEurope Nouvelle, Paris, 1938, vol. II, p. 337).

8. Elementos Essenciais do Estado Moderno

Cumpre não olvidar que o Estado constitui-se na (clássica) soma de três elementos básicos: o povo (elemento humano), o território fixo (elemento físico ou geográfico) e a soberania (elemento abstrato), sendo certo que, de forma simples, o Estado representa a Nação dotada de uma Constituição, ou seja, de uma organização político-jurídica fundamental, em que é estabelecido o direito nacional em sua dimensão maior. Não é por outra razão que GIORIGIO DEL VECCHIO entende que, além do povo e do território, o que caracteriza o Estado é precipuamente a existência do que se convencionou chamar de vínculo jurídico.

“Quanto às notas características do Estado Moderno, que muitos autores preferem denominar elementos essenciais por serem todos indispensáveis para a existência do Estado, existe uma grande diversidade de opiniões, tanto a respeito da identificação quanto a do número.

[...]

Para DEL VECCHIO, em especial, além do povo e do territórioo que existe é o vínculo jurídico, que seria, na realidade, um sistema de vínculos, pelo qual uma multidão de pessoas encontra a própria unidade na forma do direito” (DALMO DE ABREU DALLARI; Elementos de Teoria Geral do Estado, 18a ed., São Paulo, Saraiva, 1994, ps. 60-61)

Por outro lado, o Estado também se apresenta como uma entidade com fins precisos e determinados, razão pela qual alguns autores incluem, como uma espécie de quarto elemento de caracterização do Estado, a finalidade (ALESSANDRO GROPPALLI), considerando, sobretudo, a função estatal precípua de regular globalmente, em todos os seus aspectos, a vida social da comunidade, visando à realização do bem comum (cf. GIORGIO BALLADORE PALLIERI; Diritto Costituzionale, 4a ed., Milão, Giuffrè, 1955, p. 10).

9. Direito Consensual e Obrigatório

Muito embora o Direito, forjado pela função legislativa do Estado, seja consensual, em outras palavras, resultado da vontade geral manifestada através dos representantes do povo em assembleia, ele também é obrigatório (uma vez concebido), independentemente da vontade de cada indivíduo, em face da prevalência, que passa a existir, da comunidade estatal sobre os seus componentes, individualmente considerados.

10. Estados Desprovidos de Força Coativa Real

Nos Estados desprovidos de instrumentos de força coativa real, onde inexiste a garantia derradeira da imposição do Direito estatal interno, é sempre possível (embora indesejável) que grupos de indivíduos se estabeleçam de forma marginal (e paralela ao Estado), tornando refém de sua vontade (não legítima) toda a sociedade organizada, independentemente da natural contrariedade que tal fato necessariamente possa acarretar.


Referências Bibliográficas

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 18a ed., São Paulo, Saraiva, 1994.

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ORBAN apud VIVEIROS DE CASTRO. Estudos de Direito Público. Rio de Janeiro, 1924

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ZANZUCCHI. Istituzioni di Diritto Pubblico. Milão, Ed. Giuffrè, 1948


Abstract: This article examines the law as a fictional reality devoid of any own effectiveness. The law only becomes an effective reality in the presence of concretion elements that are foreign to the legal reality. In this sense, the article reflects on the state as Key Element of concretion of the law, through the Enforcement of National Sovereignty.

Keywords: LAW. EFFECTIVENESS. LEGAL REALITY AND SOVEREIGNTY.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Direito, Soberania e Efetividade Jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7124, 2 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99752. Acesso em: 4 dez. 2024.

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