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Sentença na ação civil pública no caso do acidente radioativo com césio 137 em Goiânia

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Agenda 01/05/2000 às 00:00

Em 1987, um acidente radioativo com césio 137 contaminou várias pessoas em Goiânia, causando mortes e doenças. 12 anos depois, o Ministério Público Federal e Estadual ajuizaram ação civil pública, pedindo a reparação de danos ambientais e a responsabilização de diversos réus, incluindo a União, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e o Estado de Goiás. Na sentença, proferida no ano 2000, juiz federal Juliano Taveira Bernardes, da 8ª Vara da Seção Judiciária do Estado de Goiás, destacou a importância da atuação do Estado na prevenção de desastres ambientais. Um dos principais pontos inovadores foi a aplicação da responsabilidade objetiva por danos ambientais, sem a necessidade de comprovação de culpa. A decisão ressaltou ainda que a omissão da CNEN e do Estado de Goiás em fiscalizar adequadamente a utilização e o descarte de substâncias radioativas contribuiu diretamente para a ocorrência do acidente. A condenação dos réus ao pagamento de indenizações significativas e a imposição de obrigações de fazer, como a garantia de atendimento médico às vítimas e o monitoramento contínuo da saúde da população afetada, marcaram um passo significativo na luta pela proteção do meio ambiente e pela defesa dos direitos das vítimas de desastres ambientais.

SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE GOIÁS

8ª VARA

PROCESSO Nº 95.8505-4

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Autor : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Réus: UNIÃO FEDERAL, CNEN - COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR, ESTADO DE GOIÁS, IPASGO - INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL DO ESTADO DE GOIÁS, CARLOS DE FIGUEIREDO BEZERRIL, CRISEIDE CASTRO DOURADO, ORLANDO ALVES TEIXEIRA, FLAMARION BARBOSA GOULART e AMAURILLO MONTEIRO DE OLIVEIRA.


SENTENÇA

I - RELATÓRIO

Trata-se de ação civil pública proposta em 27/09/95 pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF), em litisconsórcio ativo facultativo com o MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL (MPE), com base em inquérito civil público instaurado em razão do acidente radiológico com a bomba de Césio 137, ocorrido nesta Capital, no mês de setembro de 1987.

Pela petição de fls. 02/29, após defenderem a viabilidade da formação de litisconsórcio ativo entre o MPF e o MPE, bem como a legitimidade do Ministério Público para propositura de ação civil pública que vise à reparação de danos causados ao meio ambiente, os Autores narraram, resumidamente, os seguintes fatos.

Em 1972, o INSTITUTO GOIANO DE RADIOTERAPIA - IGR, então com sede na Avenida Paranaíba, nº 1.587, Setor Central, nesta Capital, devidamente autorizado pela COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR, ESTADO DE GOIÁS - CNEN, adquiriu em São Paulo-SP uma bomba de Césio 137, de fabricação italiana, a fim de utilizá-la na prestação de serviços radiológicos. O terreno em que funcionava o IGR era pertencente à Santa Casa de Misericórdia, que o vendeu ao INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL DO ESTADO DE GOIÁS - IPASGO. Então, pressionado a deixar o aludido local, o IGR transferiu sua sede a outro endereço, terminando por abandonar no antigo prédio a já obsoleta bomba de Césio 137, sem ao menos comunicar o fato à CNEN ou à Secretaria Estadual de Saúde. Em 04/05/87, iniciou-se a demolição da construção, a mando do ex-sócio do IGR, AMAURILLO MONTEIRO DE OLIVEIRA, culminando com a destruição quase total do prédio original, que o deixou sem telhado, portas ou janelas, a despeito da existência no local, sem quaisquer avisos ou advertências, da mencionada bomba de Césio 137. No dia 13/09/87, dois catadores de papel adentraram os escombros e levaram consigo, entre outros objetos, a bomba abandonada. Seqüencialmente, o objeto radioativo foi partido em duas peças, uma maior, pesando 300 quilos, e outra de 120 quilogramas. A peça menor foi transportada até a casa de ROBERTO SANTOS ALVES, onde foi violada à base de marretadas, até atingir-se a janela de irídio, dentro da qual estava armazenada a substância radioativa. No dia 14/09/87, outras duas pessoas foram até os escombros da antiga sede do IGR e de lá levaram a peça maior, posteriormente vendida ao "ferro velho" de propriedade de DEVAIR ALVES FERREIRA, que a depositou na sala de sua residência.

Em seguida, noticia detalhadamente a exordial os capítulos do famoso acidente radioativo, agravado pela curiosidade e fascínio despertados pela coloração reluzente da fonte de Césio 137. Conta também as providências tomadas pelas autoridades locais e federais, o atendimento das vítimas contaminadas, assim como o falecimento de quatro delas. Narra a inicial, ainda, a remoção de 14 toneladas de detritos contaminados à cidade de Abadia de Goiás-GO, onde foi erguido um depósito provisório para o material radioativo, em local situado a menos de 20 km do centro de Goiânia-GO.

Prossegue a preambular dizendo que o ESTADO DE GOIÁS instituiu a FUNDAÇÃO ESTADUAL LEIDE DAS NEVES com a finalidade de amparar as vítimas do acidente. Lembra a edição de lei estadual concedendo pensão vitalícia a 118 pessoas, cujos valores tornaram-se módicos em razão da perda inflacionária.

Conclui a narração dos fatos apontando a situação miserável das vítimas, assim como a condenação penal, em 1º grau, dos proprietários do IGR (CARLOS DE FIGUEIREDO BEZERRIL, CRISEIDE CASTRO DOURADO, ORLANDO ALVES TEIXEIRA), bem como do físico responsável pelo manuseio da bomba de Césio 137, FLAMARION BARBOSA GOULART.

Dessarte, com base no art. 37, § 6º da CF/88 e art. 14, §1º, da Lei 6.938/81, a inicial pleiteia a responsabilização civil: a) da UNIÃO FEDERAL, posto que titular do monopólio da exploração dos materiais nucleares e seus derivados; b) da CNEN, cujas atribuições relativas ao poder de polícia e controle dos materiais radioativos não foram preventivamente exercidas; c) do ESTADO DE GOIÁS, a quem competia a fiscalização das unidades hospitalares; d) do IPASGO, proprietário do terreno em que se situava o antigo edifício do IGR, por não haver promovido as medidas necessárias à vigilância do local, até a remoção dos equipamentos ali abandonados; e) dos demais Réus, médicos proprietários do IGR e físico supervisor da manipulação do material relativo, pela inobservância das regras afetas à respectiva licença de utilização do aparelho radiológico.

Ao final, foram formulados os pedidos seguintes:

A inicial veio acompanhada de grande quantidade de documentos coligidos pelo Inquérito Civil Público nº 07/92, instaurado pelo Ministério Público Estadual, em parceria com o Ministério Público Federal (fl. 47. a fl. 5.615, vol. 19).

Às fls. 31/39, o Ministério Público Estadual foi excluído do feito, em decisão que acarretou a interposição do agravo certificado às fls. 5.663/5.664.

Emendada a preambular às fls. 5.619/5.621, incluiu-se no pólo passivo AMAURILLO MONTEIRO DE OLIVEIRA, responsabilizado por haver determinado a demolição do prédio, sem a cautela devida. Contra esse novo Réu, foi formulado pedido de condenação ao pagamento de indenização de R$100.000,00, sem referência ao destino da quantia.

Foram citados todos os Réus.

Contestação de AMAURILLO MONTEIRO DE OLIVEIRA às fls. 5.666/5.675, aduzindo, preliminarmente: a) a inépcia da petição inicial, diante da "incompatibilidade lógica entre a causa de pedir e o pedido" (fl. 5.667); b) sua ilegitimidade passiva, pois o MPF não teria "título em relação ao interesse que pretende seja titulado" (fl. 5.670). No mérito, afirmou: c) que não tinha o dever de vigilância, pois na época do acidente não era nem proprietário nem possuidor do imóvel em que a bomba de césio foi deixada; d) a ausência de nexo de causalidade, eis "que não exercitou nenhuma conduta capaz de provocar dano ao autor" (fl. 5.674).

CARLOS DE FIGUEIREDO BEZERRIL e CRISEIDE CASTRO DOURADO apresentaram contestação às fls. 5.678/5.682, asseverando: a) não possuírem legitimidade passiva, haja vista que a bomba de césio era da propriedade do INSTITUTO GOIANO DE RADIOTERAPIA, pessoa jurídica distinta da de seus sócios; b) que, quando ocorreu o acidente, o IGR não estava na posse do imóvel onde se localizava a cápsula de césio; c) ilegitimidade ativa do Ministério Público, tendo em vista que a inicial limitou-se a noticiar danos individuais; d) ausência de interesse de agir, porquanto as pessoas prejudicadas já foram indenizadas pelo ESTADO DE GOIÁS; e) a inaplicação da responsabilidade objetiva prevista na Lei 6.453/77, porque os eventos danosos ocorreram fora de instalações nucleares; f) que a mera falta de observância de normas regulamentares não acarreta a responsabilização civil; g) que o evento ocorreu única e exclusivamente por culpa das supostas vítimas, a partir de conduta penalmente tipificada como furto da bomba de Césio 137; h) não ter havido dano ecológico.

Contestação da UNIÃO FEDERAL juntada às fls. 5.694/5.704, pela qual alega, em síntese: a) sua ilegitimidade passiva, tendo em vista que o monopólio da exploração nuclear foi delegado a uma autarquia dotada de personalidade jurídica própria; b) a prescrição do direito de ação, nos termos do Decreto 20.910/32; c) a inexistência de danos ambientais atuais a serem indenizados; d) impropriedade da reversão da pretendida indenização ao Fundo Estadual, em razão da criação do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) pelo Decreto 1.306/94; e) que as pretendidas obrigações de fazer já estão sendo adotadas espontaneamente.

FLAMARION BARBOSA GOULART, à folha 5.706, limitou-se a ratificar a contestação de CRISEIDE DE CASTRO e CARLOS BEZERRIL.

De sua vez, o IPASGO - INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL DO ESTADO DE GOIÁS defendeu-se às fls. 5.709/5.713, afirmando: a) a inépcia da petição inicial, por ausência de indicação do motivo do pedido indenizatório e de sua parcela de culpa no acidente; b) que não pode ser considerado culpado pelo evento por haver apenas adquirido a área em que foi abandonada a bomba de césio; c) que o pedido de indenização foi arbitrado de forma aleatória, sem nenhum parâmetro.

A CNEN - COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR, na contestação de fls. 5.726/5.733, apontou sua ilegitimidade passiva, dizendo não ser responsável pela fiscalização do exercício de profissões, ocupações e locais que utilizem esses materiais e substâncias, eis que suas atribuições abrangem somente a fiscalização do comércio de radioisótopos artificiais e substâncias radioativas.

Contestação do ESTADO DE GOIÁS às fls. 5.738/5.762. Sustentou: a) sua ilegitimidade passiva, pois não tem "nenhuma responsabilidade no traumático acidente" (fl. 5.740), bem como por não ser detentor do monopólio constitucional da exploração dos recursos radioativos; b) a ilegitimidade ativa e a inocorrência de interesse de agir por parte do Ministério Público, diante da ausência de norma expressa de direito substantivo que autorize a utilização da ação civil pública; c) a fluência da prescrição qüinqüenária; d) a ausência de prova do dano ambiental; e) que a quantificação do pedido de indenização pecuniária não seguiu qualquer parâmetro fático ou legal; f) que continua tomando providências com vistas à preservação do equilíbrio do ecossistema; g) que as obrigações de fazer pretendidas já foram todas cumpridas espontaneamente.

ORLANDO ALVES TEIXEIRA quedou-se inerte.

Réplica do MPF às fls. 5.764/5.781.

Na fase de especificação de provas, a UNIÃO aduziu a perda do objeto da ação (fls. 5.785/5.788 e 5.811/5.815); o MPF rebateu a alegação da UNIÃO, requerendo o julgamento antecipado da lide, salientando ainda a condenação criminal dos médicos proprietários do IGR e do físico (fls. 5.803/5.806); a CNEN pediu a produção de prova testemunhal (fls. 5.817. e 5.823). Os demais Réus não se manifestaram.

Às fls. 5.827/5.836 consta decisão saneadora proferida pelo Juiz Federal Urbano Leal Berquó Neto, ilustre titular desta 8ª Vara, pela qual: 1) foram rejeitadas as preliminares de inépcia da inicial fundadas em ofensa aos arts. 282, inciso III, e 295, § único, inciso II, ambos do CPC, e na ausência da descrição da ação, do dano e do nexo causal, argüidas pelo Réu AMAURILO MONTEIRO DE OLIVEIRA; 2) foram repelidas as preliminares argüidas pelos Réus CRISEIDE DE CASTRO DOURADO, CARLOS DE FIGUEIREDO BEZERRIL e FLAMARION BARBOSA GOULART; 3) foi mantida a UNIÃO na demanda; 4) remeteu-se a discussão da tese da prescrição para o exame do mérito; 5) foram rebatidas as preliminares de inépcia da inicial, suscitadas pelo IPASGO, e de ilegitimidade passiva ad causam, levantada pela CNEN; 6) indeferiu-se a produção de prova testemunhal requerida pela CNEN, ao fundamento de que desnecessária em face da possibilidade de se provar documentalmente todos os fatos alegados. Pela mesma decisão, restaram desconsideradas, de plano, os seguintes pedidos de imposição de obrigações de fazer: a) em face da CNEN, de publicar trimestralmente relação de materiais radioativos existentes no Estado de Goiás e sua localização; e b) em relação à FEMAGO, de promover, paralelamente à CNEN, monitoramento ambiental.

Dessa decisão foram interpostos os agravos de fls. 5.840. e 5.843/5.847.

Atendendo às diligências solicitadas na decisão saneadora, a UNIÃO FEDERAL e o ESTADO DE GOIÁS colacionaram aos autos documentos comprobatórios do pagamento de pensões às vítimas (fls. 5.851/6.425 e 6.438/6.521), conforme determinado, respectivamente, pela Lei 9.425/96 e Lei estadual 10.977/89.

Às fls. 6.550/6.563, anexou a FUNDAÇÃO LEIDE DAS NEVES relatório alusivo aos serviços prestados às vítimas do acidente, além de juntar documentos relativos à doação de imóveis a algumas delas (fls. 6.554/6.563).

Às fls. 6.568/6.570, o IPASGO informa que vem prestando gratuitamente todos os atendimentos médicos necessários às vítimas.

À folha 6.587-verso, a Oficiala de Justiça Rosa Nina Mathias de Azevedo certificou que o Governo de Goiás extinguiu a FUNDAÇÃO LEIDE DAS NEVES.

Fls. 6.595/6.647: fichas de atendimento médico das vítimas.

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Manifestação final do MPF, requerendo o julgamento antecipado da lide (fls. 6.572/6.580).

É o necessário relatório.


II - FUNDAMENTAÇÃO

A despeito do ingresso de novos documentos aos autos por parte de alguns dos Réus, afigura-se-me desnecessária nova abertura de vista, seja porque sobre as novas peças já se manifestou a parte contrária (MPF), conforme reza o dispositivo do art. 398. do CPC, seja diante de sua irrelevância em face dos integrantes do pólo passivo.

A) Preliminarmente

As preliminares suscitadas pelos Réus, atinentes à inépcia da inicial e à ilegitimidade passiva, já foram rebatidas na decisão saneadora de fls. 5.827/5.836, o que dispensaria, nos termos do art. 471. do CPC, nova apreciação judicial.

Contudo, algumas questões de ordem pública merecem ser reagitadas (art. 267, §3º, do CPC).

A.1) Dos pedidos de indenização em dinheiro

Consoante lê-se às fls. 26/27, a exordial veicula pedidos de condenação ao pagamento de quantia certa a serem revertidos ao Fundo Estadual do Meio Ambiente.

Acontece que, nos termos do art. 13. da Lei 7.437/85, regulamentado pelo Decreto 1.306/94, a correta interpretação do pedido faz com que o destino das quantias provenientes da eventual condenação seja o FUNDO DE DEFESA DE DIREITOS DIFUSOS, ainda que não haja pedido expresso nesse sentido, como aconteceu com o Réu AMAURILLO MONTEIRO DE OLIVEIRA.

Ressalto que a correção dessa deficiência da inicial resume-se a aspectos meramente acidentais do pedido (fundo ao qual serão revertidos os valores). Desse modo, em caso de procedência do pleito, a sentença não poderá ser taxada de extra petita, pois a violação ao art. 460. do CPC pressupõe alteração do pedido em face de sua original natureza (mantida condenatória), quantidade (também inalterada) ou objeto (que remanesce como de entrega de quantia certa).

Ao lado dessas alegações, defendeu o pólo passivo que os valores pleiteados não seguiram qualquer critério de apuração.

De fato, não se preocupou o MPF em mensurar individualmente ou dividir quantitativamente os valores a serem revertidos ao Fundo aludido.

Não obstante, em se tratando de ação de indenização por ato ilícito, é atenuada a aplicação do par. único do art. 459. do CPC, pois "o valor estipulado na inicial, como estimativa da indenização pleiteada, necessariamente, não constitui certeza do ´quantum´ a ressarcir, vez que a obrigação do réu, causador do dano, é de valor abstrato, que depende, quase sempre, de estimativas e de arbitramento judicial." (STJ, 3ª Turma, REsp 136.588/RJ, Rel. Min. WALDEMAR ZVEITER, DJU de 01/06/98., p. 85).

Daí porque a pretendida irregularidade poderia ser afastada em liqüidação de sentença por arbitramento (art. 1.553. do CC e art. 606. do CPC).

Pois bem. Ocorre que as quantias despendidas no combate aos efeitos da radiação são notória (art. 334, I, do CPC) e infinitamente superiores à soma das verbas pretendidas na presente ação, o que dispensa a eleição de critério exato. Para ilustrar, somente após 1991, para a construção do depósito definitivo, foram alocados recursos da ordem de 12,5 milhões de reais (fls. 5.811/5.815).

Ao lado disso, a imputação da responsabilidade aos figurantes do pólo passivo deu-se na forma solidária (CC, art. 1.518), em que cada um deles poderia ser acionado pela integralidade do valor do dano (art. 904. do CC).

Dessarte, dessume-se que a pretensa falta de critérios na formulação do pedido ressarcitório veio em benefício dos Réus, o que torna a alegação infrutífera por falta de prejudicialidade (art. 250, par. único, do CPC).

A.2) Dos pedidos de cominação de obrigação de fazer

Dessume-se da inicial uma extensa lista de pedidos de cominação de obrigação de fazer. Parte deles mereceu as seguintes considerações feitas pelo eminente Juiz Federal Urbano Leal Berquó Neto, ao enfocar a contestação da UNIÃO FEDERAL, quando da decisão saneadora:

"Ao compulsar a vestibular, no pedido, além das indenizações destinadas a um do fundo para a reconstituição do ambiente lesado, há obrigação de fazer.

Em relação a essas obrigações, adiante mencionadas, nota-se que já foram ou estão, as de caráter permanente, sendo cumpridas desde a época da malsinada ocorrência, conforme fazem prova, além da documentação juntada com a inicial, a petição e dos documentos juntados pela União (fls. 5.785/5.801) e pela CNEN (fls. 5.811/5.815), nos seguintes moldes:

a) quanto a condenação concorrente da União, CNEN e Estado de Goiás a:

a.1- garantir o atendimento médico-hospitalar, técnico-científico, odontológico e psicológico às vítimas diretas e indiretas, reconhecidamente atingidas, até a 3ª geração;

O atendimento vem sendo prestado pela União através da CNEN, e pelo Estado de Goiás, através da Fundação Leide das Neves (fls. 5.798, I). Essa afirmação é corroborada pelos inúmeros documentos da Funleide que comprovam estar, as vítimas, recebendo toda assistência médica, odontológica, hospitalar etc. (Volumes 15 a 19).

a.2- recadastramento das vítimas para fins de tratamento e pensão vitalícia;

Foram efetuados, ainda, um recadastramento em 1988 e outro, posteriormente, em meados de 1996/97 (fls. 5.798, II).

Cumprida, portanto, tal obrigação.

a.3- viabilizar o transporte das vítimas do grupo I para a realização dos exames necessários;

Desde o início foi providenciado o transporte das vítimas (fls. 5.798, III), inclusive via aérea, quando necessário, o que é corroborado pela análise da documentação presente nos volumes 15 a 19, que tratam da Funleide.

a.4- elaborar programa especial para as crianças contaminadas:

A assistência especial às crianças já vem sendo prestadas, tendo como responsável pelo atendimento pediátrico um médico com mestrado em Hiroshima além das crianças terem acompanhamento documentado desde a época fetal (fls. 5.798, IV).

a.5- promover o acompanhamento da população de Abadia de Goiás, vizinha do depósito provisório de rejeitos radioativos (hoje depósito definitivo), bem como prestar eventual atendimento médico em caso de contaminação;

Conforme as informações prestadas às fls. 5.811/5.815, a CNEN vem "mantendo um quadro de 20 (vinte) servidores públicos diretamente envolvidos no Apoio Logístico e na Segurança Radiológica das áreas da cidade de Goiânia, devolvidas à comunidade em total condições de habitabilidade, e da área do Depósito de Rejeitos em Abadia de Goiás".

Mantém, também, um "Laboratório de Monitoração Ambiental que acompanha, em conjunto com outros Institutos da CNEN, na região sudeste, as análises de amostras ambientais, tanto da cidade de Goiânia, quanto do depósito de Rejeitos em Abadia."

A CNEN firmou o Convênio 010, em 23.08.91, com o Governo do Estado de Goiás, "que repassa recursos federais para todas as atividades relativas a solução para os rejeitos gerados no ocidente" tendo como exemplo as ações elencadas nas fls. 5.811/5.814.

Ao final, demonstra que forma gastos pela União, através da CNEN, aproximadamente, 8,5 milhões de reais, sendo que o gasto efetuado pelo Estado de Goiás aproxima-se de 4.0 milhões de reais.

Além disso, o prazo previsto para o acompanhamento da CNEN é de 50 anos.

a.6- publicar trimestralmente, no D.O.U. e no D.O. de Goiás a relação completa dos materiais radioativos existentes no Estado de Goiás e sua localização;

Providência inviável. A uma, porque os assuntos nucleares, radioativos etc, dizem respeito a segurança nacional e, por isso, devem ser preservados de publicidade. A duas, porque tal publicidade poderá ocasionar efeito inverso ao pretendido, como, por exemplo, tentativas de furto ou roubo de equipamentos, atentados etc.

a.7 - criação de banco de dados de morbimortalidade populacional por Câncer, a partir da data do acidente (13.09.87);

Tal banco de dados já existe em conjunto com a Associação de Combate ao Câncer/Hospital Araújo Jorge (fls. 5.798, VI).

a.8- efetivar, em caráter permanente, sistema de notificação e monitoramento epidemiológico sobre Câncer, da população de Goiânia;

Esses serviços já são realizados pela Secretaria de Saúde do Estado de Goiás (fls. 5.799, VII).

b) quanto à CNEN, isoladamente:

b.1- manter, em caráter definitivo, nesta Capital, um Centro de Atendimento para as vítimas, com assistência permanente de físicos e médicos especializados;

Esse centro de assistência, com médicos especializados já existe na Fundação Leide das Neves, que tem suporte técnico e auxílio, sempre que necessário, dos profissionais da CNEN, como acima demonstrado.

Daí, a criação de outro seria, como é, despicienda.

b.2- promover, periodicamente, o monitoramento ambiental da Goiânia, principalmente da área mais próxima ao local do acidente, encaminhando relatórios à Secretaria de Estado da Saúde do Estado de Goiás e aos Ministérios Públicos Federal e Estadual.

A CNEN já tem um estabelecimento próprio, vizinho a área do depósito definitivo dos rejeitos do acidente radioativo no Município de Abadia de Goiás e que já monitora constantemente as áreas atingidas (e ainda o fará por quase 40 anos) (fls. 5.800).

Quanto à cidade de Goiânia, inúmeros relatórios constantes do bojo dos presentes autos e amplamente noticiados pela mídia demonstraram que o nível de radiação pro Césio-137 está absolutamente dentro dos limites aceitáveis, não oferencendo qualquer risco à saúde.

Além disso, fica ressalvada, a qualquer das entidades comprovadamente interessadas, inclusive o próprio Ministério Público Federal, a possibilidade de solicitar, a qualquer tempo, que a CNEN faça uma averiguação desses níveis de radioatividade." (Fls. 5.830/5.833).

Porém, na parte dispositiva da decisão saneadora, foram expressamente repelidos somente os seguintes pedidos de imposição de obrigações de fazer: a) em face da CNEN, de publicar trimestralmente relação de materiais radioativos existentes no Estado de Goiás e sua localização; e b) em relação à FEMAGO, de promover, paralelamente à CNEN, monitoramento ambiental (fls. 5.835/5.836).

Dessarte, por entender não operada a preclusão pro iudicato em relação aos pedidos que não foram alvo de afastamento expresso (cf., analogicamente, o art. 469, I, do CPC), é possível agora reanalisar a perda de objeto de alguns deles.

Nesse prumo, aproveitando a numeração e a fundamentação expostas na decisão saneadora acima transcrita, estou em que, além dos expressamente excluídos, restaram prejudicados somente os pedidos a.2 (recadastramento das vítimas para fins de tratamento e pensão vitalícia); a.4 (elaborar programa especial para as crianças contaminadas); a.7 (criação de banco de dados de morbimortalidade populacional por Câncer, a partir da data do acidente); e b.2 (promover, periodicamente, o monitoramento ambiental da Goiânia, principalmente da área mais próxima ao local do acidente, encaminhando relatórios à Secretaria de Estado da Saúde do Estado de Goiás e aos Ministérios Públicos Federal e Estadual).

A prejudicialidade desse último pedido justifica-se porque já verificada a normalidade dos níveis de radiação em Goiânia, enquanto a medição da área próxima ao depósito, por parte da CNEN, é imperativo contido no Convênio nº 10, de 23/08/91, firmado com o Estado de Goiás, que prevê a consecução da tarefa pelos próximos 50 anos (cf. ofício de fls. 5.811/5.815).

O restante das cominações pleiteadas envolvem obrigações de fazer de trato sucessivo, motivo pelo qual passíveis de interrupção no futuro. Assim, abstratamente, não podem ser desconsideradas pela sentença.

Exemplo disso é pedido de realização de monitoramento epidemiológico permanente da população de Goiânia, atualmente efetivado pela Secretaria de Saúde do Estado de Goiás, conforme noticiado à folha 5.799, item VII. No caso de interrupção desse monitoramento por parte do Estado de Goiás, conforme pleiteado, a CNEN poderá ser condenada a efetivá-lo individualmente

De outra banda, vejo que mesmo alguns pedidos sujeitos a condição, como pedido de condenação à prestação de eventual atendimento médico da população de Abadia de Goiás, em caso de contaminação, podem ser conhecidos, nos termos da regra prevista no art. 460, par. único, do CPC.

Foi formulado, também, pedido contra a CNEN tendente à manutenção, em caráter definitivo, nesta Capital, de um centro de atendimento para as vítimas do Césio 137, com a assistência permanente de físicos e médicos especializados. Essa assistência vinha sendo prestada pela recentemente extinta FUNLEIDE, mediante a cobertura de benefícios do IPASGO (cf. fl. 5.798, item I). Nada indica que o serviço será interrompido por parte do IPASGO e do Estado de Goiás, sucessor da FUNLEIDE, mas ainda assim existiria interesse processual na fixação desta obrigação na sentença final, se procedente a pretensão.

Examinados, então, os pedidos remanescentes, vejo que pelo que devem ser mantidos. De fato, guardam eles inegável pertinência e proporcionalidade em relação à função de reparação, preservação e prevenção do meio ambiente, bem assim da saúde das vítimas envolvidas, conforme vocacionada a ação civil pública (art. 1º, I, da Lei 7.347/85),

A.2.1) Dos pedidos de transferência de imóveis adquiridos pelo Estado de Goiás a algumas das vítimas e de pagamento de pensões vitalícias e m valores jamais inferiores ao salário mínimo vigente:
ILEGITIMIDADE ATIVA DO MPF

Sem embargo, entre os pedidos formulados na preambular está o de cominação da obrigação de transferência dos imóveis constantes da Lei estadual 11.375, de 26/12/90 (cópia à folha 5.793), às seguintes vítimas: IVO ALVES FERREIRA, ODESSON ALVES FERREIRA, EUNICE ALVES DOS SANTOS e GERALDO GUILHERME DA SILVA. Aqui, ressalto que a instrução processual revelou que somente pende de outorga e registro a escritura de doação de imóvel em favor de EUNICE ALVES DOS SANTOS (cf. ofício de fls. 6.550/3 e certidões de fls. 6.654/63).

Ao lado desse, foi também formulado pedido de condenação do ESTADO DE GOIÁS ao pagamento, em valores nunca inferiores a um salário mínimo, das pensões vitalícias instituídas em favor das vítimas do Césio 137 pela Lei estadual 10.977, de 03/10/89. 1

Dessarte, vejo que referidas solicitações encampam interesses de nítida índole individual disponível, ainda que homogênea.

Contudo, nos termos dos artigos 127 e 129, IX, da CF/88, e, mais exatamente, do art. 6º, XVI, g, da Lei Complementar 75/93, a legitimidade do MPF à promoção de ações em defesa do meio ambiente está limitada, em matéria de interesses individuais, àqueles de conotação indisponível.

Releva aqui dizer não ser caso de ação civil ex delicto, excepcional hipótese de inconstitucionalidade progressiva em que se entende ainda constitucional a norma do art. 68. do CPP, enquanto não instituídos os órgãos de defensoria pública, mesmo em face dos arts. 127, 129, XI e 134 da CF/88 (STF: RE 135.328/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJU de 01/08/94, RE 147.776/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU de 19/06/98, p. 136; STJ, REsp 66.982/SP, Rel. Min. SÁLVIO FIGUEIREDO, DJU de 24/03/97, p. 9.022).

Com efeito, a ação civil pública ambiental não está vocacionada à defesa de interesses individuais disponíveis, por mais comovente possa ser a situação dos eventuais beneficiários com a substituição processual.

De conseguinte, em relação aos pedidos epigrafados, reconheço a ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal.

A.3) Da legitimidade passiva da CNEN e da ilegitimidade passiva da União Federal

De início, é necessário identificar sob quais fundamentos atribui o MPF a responsabilidade civil pelo acidente à UNIÃO e à CNEN. Assim, compulsando a preambular, infere-se que as causas de pedir da ação sustentam, respectivamente, a legitimidade passiva da UNIÃO, em razão do monopólio que exerce sobre as atividades nucleares, bem como da CNEN, tendo em mente o poder de polícia do controle dos materiais radioativos.

Nessa perspectiva, passo a analisar a questão da pertinência passiva.

Com efeito, nos termos da Lei 4.118/62, foi instituído o monopólio da União Federal sobre o comércio dos radioisótopos artificiais, entre os quais insere-se a substância contida na bomba de Césio 137, assim como criada a COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR - CNEN.

De sua vez, o Decreto-Lei 1.982/82 deixou claro que as atividades alusivas ao monopólio instituído pela Lei 4.118/62 foram repassadas, com exclusividade , à CNEN e à NUCLEBRÁS, ressalvado o que prescreve artigo 10 da Lei nº 6.189/74 (autorização para construção de usinas termonucleares, da competência da ELETROBRÁS), ficando a cargo da União, tão-somente, o desenvolvimento de pesquisas no campo da energia nuclear (art. 2º):

"Art. 1º O exercício das atividades nucleares incluídas no monopólio instituído pelo artigo 1º da Lei nº 4.118, de 27 de agosto de 1962, é exclusivo da Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN e da Empresas Nucleares Brasileiras S.A. - NUCLEBRÁS ou suas subsidiárias, ressalvado o que prescreve artigo 10 da Lei nº 6.189, de 16 de dezembro de 1974.

Art. 2º O desenvolvimento de pesquisas no campo da energia nuclear fica sob o controle exclusivo da União." (Grifei)

Aqui, ao contrário da tese exposta na exordial (fl. 17), não se pode olvidar que essa nova disposição, conferindo exclusividade ao desempenho do monopólio aos entes descentralizados, representou a revogação da regra que até então cometia ao Departamento de Instalações e Materiais Nucleares a tarefa do controle das atividades relacionadas com radioisótopos.

Entrementes, na época do acidente, as atribuições da COMISSÃO NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR - CNEN vinham expostas na Lei 6.189/74, arts. 1º, 2º e 7º, redação anterior à Lei 7.781/89:

"Art. 1º A União exercerá o monopólio de que trata o artigo 1º, da Lei nº 4.118, de 27 de agosto de 1962:

I - Por meio da Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN, como órgão superior de orientação, planejamento, supervisão, fiscalização e de pesquisa científica.

II - Por meio da Empresas Nucleares Brasileiras Sociedade Anônima - NUCLEBRÁS e de suas subsidiárias, como órgãos de execução.

Art. 2º Compete à CNEN:

I - Assessorar o Ministério das Minas e Energia:

a) no estudo das medidas necessárias à formulação, pelo Presidente da República, da Política Nacional de Energia Nuclear;

b) no planejamento da execução da Política Nacional de Energia Nuclear.

II - Promover e incentivar:

a) a utilização da energia nuclear para fins pacíficos nos diversos setores do desenvolvimento nacional;

b) a formação de cientistas, técnicos e especialistas nos setores relativos à energia nuclear.

III - Expedir normas, licenças e autorizações relativas a:

a) instalações nucleares;

b) posse, uso, armazenamento e transporte de material nuclear;

c) comercialização de material nuclear, minérios nucleares e concentrados que contenham elementos nucleares.

IV - Expedir regulamentos e normas de segurança e proteção relativas:

a) ao uso de instalações e de materiais nucleares;

b) ao transporte de materiais nucleares;

c) ao manuseio de materiais nucleares;

d) ao tratamento e à eliminação de rejeitos radioativos;

e) à construção e à operação de estabelecimentos destinados a produzir materiais nucleares e a utilizar energia nuclear.

V - Opinar sobre a concessão de patentes e licenças relacionadas com a utilização da energia nuclear;

VI - Promover a organização e a instalação de laboratórios e instituições de pesquisa a ela subordinadas técnica e administrativamente, bem como cooperar com instituições existentes no País com objetivos afins;

VII - Especificar:

a) os elementos que devam ser considerados nucleares, além do urânio, tório e plutônio;

b) os elementos que devam ser considerados material fértil e material físsil especial ou de interesse para energia nuclear;

c) os minérios que devam ser considerados nucleares.

VIII - Fiscalizar:

a) o reconhecimento e o levantamento geológico relacionados com minerais nucleares;

b) a pesquisa, a lavra e a industrialização de minérios nucleares;

c) a produção e o comércio de materiais nucleares;

d) a indústria de produção de materiais e equipamentos destinados ao desenvolvimento nuclear.

IX - Pronunciar-se sobre projetos de acordos, convênios ou compromissos internacionais de qualquer espécie, relativos à energia nuclear.

...............

Art. 7º A construção e a operação de instalações nucleares ficarão sujeitas à licença, à autorização e à fiscalização da CNEN, na forma e condições estabelecidas nesta Lei e seu Regulamento.

§ 1º A licença para a construção e a autorização para a operação de instalações nucleares ficarão condicionadas a:

I - Prova de idoneidade e de capacidade técnica e financeira do responsável;

II - Preenchimento dos requisitos de segurança e proteção radiológica estabelecidos em normas baixadas pela CNEN;

III - Adaptação às novas condições supervenientes, indispensáveis à segurança da instalação e à prevenção dos riscos de acidentes decorrentes de seu funcionamento;

IV - Satisfação dos demais requisitos legais e regulamentares.

§ 2º A licença terá validade somente para a instalação, o local, a finalidade e o prazo nela indicados, podendo ser renovada.

§ 3º A CNEN poderá suspender a construção e a operação das instalações nucleares sempre que houver risco de dano nuclear." (Texto original sem grifo)

De plano, à luz do art. 1º, II, da Lei 6.189/74, fica afastado qualquer comprometimento com o infortúnio por parte da NUCLEBRÁS, eis que órgão somente de execução da política governamental do setor nuclear.

Pela exposição, portanto, não restam dúvidas de que o exercício do monopólio estatal sobre a utilização da substância radioativa confere à CNEN a responsabilidade civil, in abstracto, por danos advindos das omissões de seus agentes nesse campo de atuação.

Resta então saber se a UNIÃO, em tese, deve compartilhar a legitimidade passiva ao lado da CNEN, em razão da detenção do aludido monopólio estatal.

Antes disso, não se pode olvidar que a CNEN é autarquia federal dotada de autonomia administrativa e financeira (art. 3º da Lei 4.118/62), a quem foi conferido patrimônio próprio (art. 17. da Lei 4.118/62), além dos privilégios estatuídos no art. 30. da mesma lei.

Dessarte, percebe-se que, apesar de a titularidade do monopólio não haver sido deslocada da competência material da União Federal (cf. atual Constituição, art. 21, XXIII), seu exercício foi descentralizado às mãos da CNEN, autarquia detentora de personalidade jurídica e patrimônio próprios, a quem cabe, portanto, individualmente, suportar os eventuais efeitos da procedência do pedido.

Outrossim, não há falar-se em responsabilidade solidária da União.

De fato, a inicial imputa à União a responsabilização decorrente de sua pretensa omissão no dever de fiscalização do monopólio de que é titular.

Contudo, não há como incidir o preceito previsto no art. 1.518. do Código Civil em face da União, uma vez que a configuração do dano não decorreu de suas atividades próprias, mas daquelas tarefas fiscalizatórias que haviam sido delegadas com exclusividade à CNEN.

É bem verdade que a União poderá ser eventualmente responsabilizada sob a forma subsidiária pelas obrigações decorrentes da atuação de sua autarquia. Essa eventual hipótese, porém, não confere à União a necessária legitimidade passiva para figurar na presente relação processual.

Confira-se, nesse palmilhar, a lição de YUSSEF SAID CAHALI, transcrevendo acórdão da 8ª Câmara do TARS, de 16/09/93, publicado in Julgados 87/330:

"No caso de demanda indenizatória por ato ou omissão imputável a entidade autárquica na execução de serviços públicos que lhe foram cometidos, a ação deve ser dirigida contra a mesma, e não contra a pessoa jurídica estatal que a instituiu: Tratando-se de autarquia, com personalidade jurídica própria, patrimônio e orçamento também próprios, responde individualmente pela reparação de danos emergentes de suas atribuições. O Estado não responde, solidariamente, pela omissão daquela, mas apenas subsidiariamente, em caso de exaurimento da entidade autárquica." (Responsabilidade civil do Estado. 2ª ed. 2ª tir. São Paulo : Malheiros, 1996, p. 183).

Nada obstante, defendendo a pertinência subjetiva da ação, assevera o MPF, em sua réplica, que a responsabilidade da UNIÃO FEDERAL é derivada das normas legais que, de modo geral, impõem ao Ministério da Saúde a obrigação "de licenciar a fiscalizar instalações, equipamentos e agentes que utilizem aparelhos radioagnósticos e radioterapia" (fl. 5.772).

Acontece que as causae petendi formuladas na exordial calcaram-se, como já visto, tão-só, na responsabilidade da UNIÃO em razão de falhas na fiscalização do monopólio da exploração e fiscalização dos materiais radioativos (fls. 15/17).

Desse modo, ao contrário do pretendido na réplica ministerial, não é comportável o alargamento da causa a outros fundamentos jurídicos além dos inicialmente elencados (art. 128, c/c arts. 264, parágrafo único, e 460, todos do CPC), motivo pelo qual a UNIÃO deve ser excluída do feito.

A.4) Da ilegitimidade passiva dos Réus CARLOS DE FIGUEIREDO BEZERRIL, CRISEIDE CASTRO DOURADO e ORLANDO ALVES TEIXEIRA

Por grande infelicidade na confecção da inicial, em vez de proposta em face da pessoa jurídica responsável pela guarda e manutenção da bomba de Césio 137, foi a ação movida contra os sócios-gerentes do INSTITUTO GOIANO DE RADIOTERAPIA - IGR, sociedade civil registrada no Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas da 2ª Zona de Goiânia.

O tema da ilegitimidade passiva, então, foi agitado na contestação de fls. 5.678/5.682.

De efeito, não consta dos autos qualquer documentação atinente à interrupção do funcionamento do IGR, ou alguma prova que possa indicar ser caso de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade civil. Na verdade, não houve sequer pedido voltado à desconsideração ou ao menos alguma explicação da direta indicação, na inicial, dos sócios do IGR, motivo pelo qual, em razão do disposto no art. 20. do CC, afigura-se-me inviável responsabilizá-los per saltum.

De outro lado, replicou o MPF dizendo ter "eficácia imediata e aplicabilidade direta a norma constitucional que impõe às pessoas físicas ou jurídicas a obrigação de reparar os danos causados ao meio ambiente" (fl. 5.767). Afirmou ainda que a norma de direito privado que consagra a separação da personalidade jurídica não pode ser alegada, em se tratando de dano ambiental.

A uma, ressalto que a responsabilidade civil, de ordinário, é fixada conforme as regras vigentes quando da prática do ato danoso. Aliás, no Direito Penal, foi adotada a teoria da atividade, segundo a qual considera-se praticado o crime "no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado." (Art. 4º do CP)

Dito isso, acaso aceita a tese ministerial de que a eficácia das normas constitucionais é imediata, ao contrário do pretendido, a responsabilização civil não poderia ser feita com base nos ditames da nova Constituição, eis que os fatos danosos ocorreram em setembro de 1987. Nesse sentido, analisando o disposto no §6º do art. 37. da CF/88:

"O art. 37, §6º, da CF, que dispõe sobre a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiro é norma de eficácia imediata e não tem efeito retroativo, inaplicável a fatos ocorridos anteriormente à sua vigência. Isso porque as Constituições não têm, de ordinário, retroeficácia. (...)" (1º TACSP, 8ª Câm., Rel. Juiz TOLEDO DA SILVA, RT 673/104).

Nada obstante, a jurisprudência do STF, adotando a tese da tripartição dos efeitos retroativos da norma2, atribuiu à Constituição retroatividade mínima automática. Dessarte, as disposições constitucionais, ainda que não contemplem dispositivo expresso, atingem os efeitos futuros de fatos passados:

"Já se firmou a jurisprudência desta Corte no sentido de que os dispositivos constitucionais têm vigência imediata, alcançando os efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima). Salvo disposição expressa em contrário - e a Constituição pode fazê-lo -, eles não alcançam os fatos consumados no passado nem as prestações anteriormente vencidas e não pagas (retroatividades máxima e média)." (Grifei - RE nº 140.499-GO, 1ª Turma, Rel. Min. MOREIRA ALVES, RTJ 156:229).

Atentando-se, então, aos efeitos do ato ilícito, restaria a aplicação das novas regras constitucionais aos danos (efeitos do acidente) registrados em momento posterior à promulgação da Constituição de 1988.

Acontece que todo o dano ambiental narrado na exordial teve sua fluência obstada antes da promulgação da Constituição atual, pois, conforme conclusões do Relatório Final da Equipe de Rastreamento Aéreo, elaborado em outubro de 1987 (fls. 980/996), a cidade de Goiânia já estava "isenta de uma contaminação regional pelo Cs-137" (fl. 987), enquanto a contaminação se restringia "aos focos isolados e sob o controle da CNEN" (fl. 987).

Sem embargo, é cabível a responsabilização pelo infortúnio, calcada nos preceitos da nova Constituição, em face, porém, de danos que futuramente possam descobertos (efeitos futuros do acidente anterior), dado o diferimento no tempo das conseqüências da radiação, v.g., um câncer hoje não detectável ou um defeito genético nas gerações posteriores das vítimas. Veja-se a lição de CARLOS ALBERTO BITTAR:

"No acidente de Goiás, diversos efeitos produzir-se-ão nas pessoas e nos locais atingidos, nos casos em que houve contato direito com o material, com a violação da bomba, o transporte (inclusive por ônibus) e guarda pessoal, e indireto, com o desprendimento do pó e sua instalação nos locais detectados.

De fato, a rápida ascensão à atmosfera, pelos trilhões de desintegração por minuto que as reações do átomo em cadeia provocam, por ter alcançado pessoas que, no momento, nem sequer se aperceberam e que só no futuro poderão ver aparecer sinais da ação da radiotividade, que, como se sabe, vitimou a própria descobridora do fenômeno." (O Direito Civil na Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo : RT, 1991, p. 204).

Dessarte, a despeito desse desencontro jurisprudencial acerca da eficácia retroativa mínima da nova Constituição, sua discussão torna-se estéril em razão dos danos narrados na inicial, todos verificados em data anterior ao advento da atual Carta, conduzindo assim ao necessário raciocínio da inaplicação retroativa das mais recentes normas constitucionais.

A duas, ao contrário do que pretende o MPF, a norma do §3º do art. 225. da CF/88 não derrogou o art. 20. do CC. Na verdade, no direito positivo em vigor, a responsabilidade civil das "pessoas físicas ou jurídicas" (grifei - §3º do art. 225) não é cumulativa. Confira-se, ainda, a Lei 6.938/81, art. 3º, IV, ao conceituar o poluidor como sendo "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (grifei).

Assim, vê-se que a legitimidade passiva, abstratamente, deve recair sobre a pessoa (física ou jurídica) que esteja exercendo a atividade que deu causa ao dano. No caso, quem explorava a atividade que teria dado ensejo ao acidente, quem solicitou a licença de utilização do material radiológico, foi a pessoa jurídica INSTITUTO GOIANO DE RADIOLOGIA, e não a pessoa física de seus sócios.

A imputação cumulativa de responsabilidade à pessoa jurídica e sócios, atualmente, acontece tão-só na esfera penal, nos termos da Lei 9.605/98 (art. 21), talvez em razão de sua precípua finalidade de prevenção (geral e especial). Inexiste, contudo, disposição semelhante na órbita civil, até porque a pretensão indenizatória objetiva a recomposição do status quo ante ou, quando não mais possível, a reparação patrimonial do dano causado, daí porque a indenização não poderia ser multiplicada em face do número de sócios que a pessoa jurídica possa ter.

De fato, o que pode haver é o estabelecimento da responsabilidade civil por solidariedade passiva entre os autores do evento danoso (art. 1.518. do CC). Mas, pelo visto, não se podendo desprezar a autônoma atuação da pessoa jurídica de que faziam parte, não restou aos sócios nenhuma atividade desvinculada que lhes impingisse a responsabilidade solidária.

Palmilhando, porém, as mesmas regras da responsabilidade solidária, em estreita ligação com o mérito da causa, estou em que o tema da ilegitimidade passiva não favorece o físico hospitalar FLAMARION BARBOSA GOULART, ou tampouco o ex-sócio AMAURILLO MONTEIRO DE OLIVEIRA, conforme delinear-se-á.

Por via de conseqüência, excluo do pólo passivo os Réus CARLOS DE FIGUEIREDO BEZERRIL, CRISEIDE CASTRO DOURADO e ORLANDO ALVES TEIXEIRA.

B) Da prescrição

Sobre o assunto, cumpre dizer que os radioisótopos de utilização médica foram expressamente excluídos da disciplina da Lei 6.453/77, que dispôs sobre a responsabilidade civil por danos nucleares e a responsabilidade criminal por atos relacionados com atividades nucleares. Não fosse o suficiente, a referida lei limitou o conceito de dano nuclear somente àqueles que envolvam materiais nucleares que se encontrarem em instalação nuclear, ou dela procedentes ou a ela enviados. Confira-se a redação dos artigos 1º e 16 da Lei 6.453/77:

"Art. 1º - Para os efeitos desta Lei considera-se:

I - "operador", a pessoa jurídica devidamente autorizada para operar instalação nuclear;

II - "combustível nuclear", o material capaz de produzir energia, mediante processo auto-sustentado de fissão nuclear;

III - "produtos ou rejeitos radioativos", os materiais radioativos obtidos durante o processo de produção ou de utilização de combustíveis nucleares, ou cuja radioatividade se tenha originado da exposição às irradiações inerentes a tal processo, salvo os radioisótopos que tenham alcançado o estágio final de elaboração e já se possam utilizar para fins científicos, médicos, agrícolas, comerciais ou industriais;

IV - "material nuclear", o combustível nuclear e os produtos ou rejeitos radioativos;

V - "reator nuclear", qualquer estrutura que contenha combustível nuclear, disposto de tal maneira que, dentro dela, possa ocorrer processo auto-sustentado de fissão nuclear, sem necessidade de fonte adicional de neutrons;

VI - "instalação nuclear":

a) o reator nuclear, salvo o utilizado como fonte de energia em meio de transporte, tanto para sua propulsão como para outros fins;

b) a fábrica que utilize combustível nuclear para a produção de materiais nucleares ou na qual se proceda a tratamento de materiais nucleares, incluídas as instalações de reprocessamento de combustível nuclear irradiado;

c) o local de armazenamento de materiais nucleares, exceto aquele ocasionalmente usado durante seu transporte;

VII - "dano nuclear", o dano pessoal ou material produzido como resultado direto ou indireto das propriedades radioativas, da sua combinação com as propriedades tóxicas ou com outras características dos materiais nucleares, que se encontrem em instalação nuclear, ou dela procedentes ou a ela enviados;

VIII - "acidente nuclear", o fato ou sucessão de fatos da mesma origem, que cause dano nuclear;

IX - "radiação ionizante", a emissão de partículas alfa, beta, nêutrons, íons acelerados ou raios X ou gama, capazes de provocar a formação de íons no tecido humano.

...............................

Art. 16. - Não se aplica a presente Lei às hipóteses de dano causado por emissão de radiação ionizante quando o fato não constituir acidente nuclear." (Grifei)

Nesse prumo, com total acerto, ao comentar a Lei 6.453/77, afirma PAULO DE BESSA ANTUNES:

"A Lei nº 6.453/77 somente fornece solução jurídica para os casos de danos nucleares causados por acidentes nucleares ocorridos em instalações nucleares, conforme estas sejam legalmente definidas, isto é, aqueles que possam ser compreendidos pelo inciso VII do artigo 1º. Instalação nuclear é conceito jurídico normativo. Assim sendo, acidentes com outras fontes radioativas não estão amparados pela tutela fornecida pela presente lei. As vítimas deverão, por conseguinte, buscar a suas indenizações pela via do Direito comum." (Direito Ambiental. Rio : Lumen Juris, 1996, p. 408).

Igual escólio traz CARLOS ALBERTO BITTAR (O Direito Civil..., cit., p. 200).

Cabe salientar que o recente Decreto 911, de 03/09/93, o qual promulgou a Convenção de Viena sobre Responsabilidade Civil por Danos Nucleares, de 21/05/63, aprovada pelo Decreto Legislativo 93, de 29/02/92, terminou por também excluir os radioisótopos do conceito de "produtos ou dejetos radioativos" (art. 1º, letra g).

Outrossim, restam inaplicáveis os prazos prescricionais previstos no art. 12. da mencionada Lei 6.453/773, devendo a presente discussão ser norteada pelas regras ordinárias.

De outra feita, percebe-se que a presente ação foi proposta em 17/09/95, ou seja, sete anos após a ocorrência do acidente radioativo.

Em razão disso, o ESTADO DE GOIÁS e a UNIÃO FEDERAL suscitaram a questão da incidência da prescrição qüinqüenal regulada pelo Decreto 20.910/32 e Decreto-Lei 4.597/42.

Neste ponto, devo lembrar que a invocação do aludido prazo prescricional, já que estendido às autarquias (art. 2º do Decreto-Lei 4.597/42), também beneficiaria a CNEN e o IPASGO, entidades autárquicas essas que, contudo, não ventilaram o tema.

Agora, devo consignar as tentativas que fiz de encontrar alguma causa de suspensão ou interrupção da prescrição, conforme as regras do Código Civil.

Comecei analisando o teor da Lei estadual 10.977, de 03/10/89, que concedeu pensões às vítimas do acidente, uma vez que, acaso considerada ato inequívoco que importasse em reconhecimento do direito (art. 172, V, do CC), configurar-se-ia causa de interrupção da prescrição. Contudo, além de não me parecer que a referida lei constitua ato "inequívoco" de assunção de responsabilidade por parte do Governo de Goiás, pois estou em que revestiu-se o ato de atitude de caridade para com os vitimados pelo Césio, ainda assim o prazo fatal ter-se-ia operado, nos termos do art. 3º do Decreto-Lei 4.597/42, combinado com a Súmula 383 do STF.

Então, perscrutei nos vinte e quatro volumes de documentos anexados por quaisquer ações anteriores que pudessem ter interrompido a prescrição.

Nessa linha, deparei-me com a petição inicial de uma outra ação civil pública, proposta em 19/07/90 (fls. 617/634), a qual, porém, a par de não afastar a incidência do aludido art. 3º do Decreto-Lei 4.597/42, possuía objeto totalmente distinto, a saber, a resolução de problemas afetos ao depósito provisório de rejeitos radioativos.

Encontrei, ademais, comprovação de que algumas das vítimas ingressaram com ação indenizatória em face da CNEN, conforme cópia da respectiva contestação assinada por essa autarquia, em 15/02/90 (fls. 134/145). Também nesse caso, a diligência não se frutificou. De fato, ainda que se possa sustentar a responsabilidade solidária dos responsáveis pelo acidente radiológico com base no art. 1.518. do CC, fazendo assim valer a interrupção da prescrição prevista no art. 176, §1º, do CC, incidiria, de toda forma, o disposto no art. 3º do Decreto-Lei 4.597/42. Não bastasse isso, nos moldes do art. 174. do CC, a pretensa interrupção não poderia ser elastecida em favor do MPF, já que inconfundíveis os direitos pleiteados.

Por conseguinte, vejo que fluiu o prazo prescricional previsto no Decreto 20.910/32 e no Decreto-Lei 4.597/42.

Contudo, defendendo a inaplicação da prescrição qüinqüenária, afirma o MPF que os direitos não-patrimoniais seriam imprescritíveis (fl. 5.773).

Ocorre que o referido Decreto 20.910/32 estabelece que o prazo prescricional fulmina, além das dívidas passivas, "todo e qualquer direito ou ação" (art. 1º), não-patrimonial inclusive.

Desse modo, não há que se sustentar que somente os direitos patrimoniais estejam sujeitos à prescrição. Pelo contrário. A prescrição atinge, sim, os direitos não-patrimoniais, tanto que o tema pode ser reconhecido até mesmo de ofício pelo órgão julgador (cf. art. 219, §5º, do CPC e art. 166. do CC).

Sem embargo, entre os direitos imprescritíveis estão os de natureza indisponível (cf. ORLANDO GOMES. Introdução ao Direito Civil. 11ª ed. Rio : Forense, 1995, p. 498), que podem ser traduzidos como aqueles que "constituem diretas irradiações da personalidade humana" (WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO. Curso de Direito Civil. Parte Geral. Vol. 1. 28ª ed. São Paulo : Saraiva, 1989, p. 287).

Dessarte, enquadrado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no rol dos direitos fundamentais da terceira geração (inciso LXXIII e §2º do artigo 5º, c/c art. 225, todos da CF/88), verifica-se sua elevação à categoria de direito indisponível e, portanto, imprescritível, qualidade essa, aliás, comum a todos os direitos fundamentais previstos na Constituição (cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA. Curso de Direito Constitucional positivo. 6ª ed. São Paulo : RT, 1990, p. 162; ALEXANDRE DE MORAES. Direito humanos fundamentais. 2ª ed. São Paulo : Atlas, 1998, p. 41).

Assentando o caráter indisponível do direito à integridade do meio ambiente, cf. o seguinte aresto do STF:

"(...) O direito à integridade do meio ambiente - típico direito da terceira geração - constitui prerrogativa jurídica da titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo da afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social.

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos da segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identificam com a liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade. Considerações doutrinárias." (Grifei - Rel. Min. CELSO DE MELLO, RTJ 164:159).

Pois bem. Sem prejuízo de sua indisponibilidade e imprescritibilidade, o direito ao meio ambiente equilibrado não se confunde com as pretensões de caráter meramente ressarcitório dele decorrentes, como as indenizações patrimoniais advindas de dano ambiental anteriormente verificado. Nesse sentido, é a lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

"A prescrição fulmina todos os direitos patrimoniais, e, normalmente, estende-se aos efeitos patrimoniais de direitos imprescritíveis, porque estes, como acima ficou explicitado, não se podem extinguir, o que não ocorre com as vantagens econômicas respectivas." (Instituições de Direito Civil. Vol. I. 18ª ed. Rio : Forense, 1996, p. 440).

Isso, porém, não afasta a incolumidade da pretensão indenizatória referente aos danos que futuramente possam descobertos, em razão do prolongamento no tempo dos efeitos da radiação, conforme já analisado. Essa constatação não passou despercebida por PAULO DE BESSA ANTUNES, ao criticar a fixação do termo a quo da prescrição prevista no art. 12. da Lei 6.453/77:

"O direito à indenização, como se sabe, não surge com a acidente, mas com a lesão por ele causada, ou mas precisamente, com o conhecimento pela vítima da lesão sofrida. Em sendo assim, a perda do Direito de ação, ou melhor, o início da contagem do prazo para que este Direito se perca (dies a quo) só pode ser aquele que deu margem ao Direito de requerer a indenização, isto é, aquele que deu origem à ação. A reparação, como se sabe, só é devida a partir do dano. (...) Esse é um princípio geral do Direito que não pode ser esquecido e que não há qualquer razão jurídica que justifique a sua exclusão em relação à responsabilidade nuclear." (Op. cit., p. 409)

Sem embargo, a propositura da ação ressarcitória pressupõe a demonstração efetiva do dano resultante do acidente, o que exclui a possibilidade da inclusão de danos futuros, sem que isso implique em prejuízo ao ajuizamento de novas ações, à medida em que descortinados outros efeitos danosos oriundos do Césio 137. Isso porque, somente é suscetível de ressarcimento o dano futuro quando "se possa demonstrar, no momento da decisão, que ele tem existência real" (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA. Responsabilidade civil. 2ª ed. Rio : Forense, 1990, p. 56).

Abrem-se aqui parênteses para infirmar a lição dos eminentes NELSON NERY JÚNIOR & ROSA MARIA B. B. DE ANDRADE NERY, segundo os quais a pretensão da pretensão indenizatória por dano ambiental, "por ser de ordem pública e indisponível, é insuscetível de prescrição, embora patrimonialmente aferível para efeito indenitário."( Responsabilidade civil, meio-ambiente e ação coletiva ambiental. In Dano ambiental, prevenção, reparação e repressão. Coordenador: ANTÔNIO HERMAN V. BENJAMIN. São Paulo : RT, 1993, p. 290).

Na verdade, como bem expõe CARLOS ALBERTO BITTAR, a prescrição da ação de responsabilização por danos nucleares é matéria inserida nas Convenções internacionais de Paris e de Viena, bem assim encontrada na legislação de todos os países da Europa ocidental (cf. Responsabilidade civil nas atividades nucleares. São Paulo : RT, 1985, p. 211. e segs.). Não é por outra razão que o próprio legislador já fixou, no art. 12. da Lei 6.453/77, prazo prescricional aos pedidos de indenização por danos ocorridos em instalações nucleares. Da mesma forma, cf. art. 6º do Decreto 911/93, que promulgou no Brasil os termos da Convenção de Viena.

Isto posto, os pedidos patrimoniais decorrentes do infortúnio, formulados em face da UNIÃO e do ESTADO DE GOIÁS, encontram-se atingidos pela prescrição. O mesmo, porém, não pode ser dito em relação à CNEN e ao IPASGO, à luz do vedativo dos artigos 219, §5º, do CPC e 166 do CC.

Em razão da anterior exclusão da União Federal do feito, declaro prescrito somente o pedido de condenação do Estado de Goiás ao pagamento de R$ 100.000,00 (cem mil reais) ao fundo de que trata o art. 13. da Lei 7.347/85.

Sobre o autor
Juliano Taveira Bernardes

juiz federal em Goiás, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), ex-membro da magistratura e do Ministério Público do Estado de Goiás, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Juliano Taveira. Sentença na ação civil pública no caso do acidente radioativo com césio 137 em Goiânia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1157, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/noticias/16292. Acesso em: 23 nov. 2024.

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