4. Da restituição do indébito em tributos indiretos
Sem dúvida, a restituição do indébito tributário atende aos imperativos constitucionais da proteção da propriedade privada (art. 5.º, XXII, da CF) e da vedação do confisco (art. 150, IV). Funda-se, igualmente, no princípio da legalidade (arts. 5.º, II, 37, caput, e 150, I, da CF), na medida em que ao Estado não é permitido invadir a esfera patrimonial do indivíduo sem que esta incursão esteja autorizada pela vontade soberana do povo, expressa na lei.
Atento aos ditames constitucionais supracitados, o Código Tributário Nacional, recepcionado, em sua maior parte, pela Constituição vigente na condição de lei complementar (art. 146, III, a e b), por seus arts. 165. e seguintes, dispôs sobre o ressarcimento ao contribuinte de valores por ele pagos a título de tributos. Dentre as várias regras ali inscritas, chama-se a atenção para a do art. 166, de aplicação inconteste ao pedido de restituição apresentado pela Viação Aérea São Paulo S.A.
"Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la".
O dispositivo em apreço, como bem se observa, separa os tributos em duas categorias: a) aqueles que, "por sua natureza", admitem a transferência do respectivo encargo financeiro, tradicionalmente conhecidos como tributos indiretos, e b) aqueles que não comportam tal transferência, os chamados tributos diretos.
No que tange aos tributos indiretos, há que serem extremadas as figuras do contribuinte de direito e do contribuinte de fato. Com efeito, tais tributos são aqueles cuja carga econômica é transferida para um terceiro que mantém com o sujeito passivo da exação uma relação jurídica qualquer. Assim, diz-se que o responsável pelo recolhimento do tributo aos cofres públicos é o contribuinte de direito (aquele definido em lei como sujeito passivo do tributo), o qual repassa para um terceiro todo o ônus da exação, este último, o contribuinte de fato.
Em verdade, segundo leciona SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO (Manual de direito tributário, 1. ed., Forense, p. 466-7), todos os tributos são passíveis de translação, ou seja, de repasse do seu ônus para um terceiro, o que vai depender apenas da atividade desempenhada pelo contribuinte de jure. Destarte, até mesmo o imposto sobre a renda, típico imposto direto, pode ter o seu encargo financeiro transferido para outrem. Veja-se o caso da empresa comercial que repassa para os adquirentes de suas mercadorias, total ou parcialmente, o imposto de renda por ela devido, através dos mecanismos de formação dos preços. SACHA CALMON cita também o caso do IPTU (outro imposto direto autêntico), que pode ser transferido para o locatário, como uma das obrigações decorrentes do contrato de locação, ainda que o contribuinte de direito continue a ser o proprietário-locador.
Ocorre, outrossim, que o citado art. 166. faz menção aos tributos que "por sua natureza" comportem a translação do respectivo encargo financeiro. São estes, portanto, apenas os tributos que pela sua própria configuração jurídica (constitucional e legal) admitem a repercussão. Noutro dizer, tributo indireto não é qualquer um passível de translação, mas tão-somente aquele que pelo seu regramento legal e supralegal comporte a transferência do ônus correspondente a um terceiro. Não se trata, aqui, de averiguar a repercussão apenas econômica (viável em qualquer espécie de exação), que nada interessa ao Direito Tributário, mas, sim, a repercussão jurídica, que decorre da própria lei que disciplina o tributo.
Neste sentido, é o ICMS o tributo indireto por excelência. Também o são o IPI e o ISS, os quais, entretanto, passam ao largo deste trabalho.
O ICMS é tributo indireto e, como tal, é da sua essência que os valores pagos pelo contribuinte de jure sejam posteriormente cobrados do adquirente de suas mercadorias ou do tomador de seus serviços. É da própria natureza do imposto estadual que assim seja. Quando o legislador constituinte formatou este tributo, teve como certa a translação do gravame para o consumidor final. Veja-se o princípio da não-cumulatividade, previsto no art. 155, § 2.º, I e II, da Constituição da República. Que outra finalidade ele tem, afora evitar que a tributação do consumo seja por demais excessiva? Ciente de que o encargo financeiro do ICMS decerto seria transferido para o consumidor final, dada a natureza plurifásica do tributo, o constituinte de 1988 estabeleceu que o montante do imposto cobrado em operações e prestações anteriores serviria como moeda de pagamento para o montante do mesmo imposto cobrado em operações ou prestações subseqüentes. Assim, ao final do ciclo que vai do produtor ou fornecedor até o consumidor final, mesmo que transferidos para cada um dos adquirentes que formam esta cadeia o encargo financeiro do ICMS, ainda assim o consumidor final será tributado apenas com o valor correspondente à aplicação da alíquota do imposto sobre o valor da operação ou prestação que o envolva.
Por se tratar de imposto indireto, aplica-se ao ICMS a regra antes exposta, inserta no art. 166. do CTN. Destarte, a restituição de valores pagos indevidamente pelo contribuinte de direito a título de ICMS somente poderá ser deferida se este comprovar a assunção do ônus do tributo, através de documentos fiscais ou da sua escrituração contábil, ou, caso tenha transferido tal ônus, demonstrar que está autorizado pelo contribuinte de fato a reclamar a restituição. Não sendo assim, impossível o ressarcimento, sob pena de compactuar com o enriquecimento sem causa do contribuinte de jure, em detrimento do contribuinte de fato. Assim pontua o notável mestre mineiro (Manual..., p. 466):
"Quando o CTN se refere a tributos que, pela sua própria natureza, comportam a transferência do respectivo encargo financeiro, está se referindo a tributos que, pela sua constituição jurídica, são feitos para obrigatoriamente repercutir, casos do IPI e do ICMS, entre nós, idealizados para serem transferidos ao consumidor final. A natureza a que se refere o artigo é jurídica. A transferência é juridicamente possibilitada. A abrangência do art. 166, portanto, é limitada, e não ampla.
Sendo assim, é possível, pela análise dos documentos fiscais e pela escrita contábil das empresas, verificar a transferência formal do encargo financeiro do tributo.
O CTN está rigorosamente certo. Não seria ético, nem justo, devolver o tributo indevido a quem não o suportou. Seria enriquecimento sem causa. Por isso mesmo, exige a prova da não-repercussão, ou então a autorização do contribuinte de fato, o que suportou o encargo para operar a devolução ao contribuinte de jure, o sujeito passivo da relação jurídico tributária. [...]".
O problema da restituição de indébito em tributos indiretos há muito tem preocupado o Excelso Pretório. Já no início da década de 60 fora editada a vetusta Súmula n.º 71, que preconizava uma solução extrema para estes casos, conquanto não admitisse, em hipótese alguma, a restituição de tributos indiretos cobrados indevidamente. O enunciado está assim redigido:
"Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto".
Posteriormente, já no final dos anos 60, o Supremo Tribunal, talvez reconhecendo o rigor excessivo da citada Súmula n.º 71, editou a de n.º 546, que, com outras palavras, reproduz o mesmo preceito encerrado no art. 166. do CTN:
"Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo".
A jurisprudência atual, nada obstante uma parcela da doutrina que não se conforma com a regra do art. 166. do CTN e apregoa que o mesmo não fora recepcionado pela Carta de 1988, consagra plenamente a impossibilidade de restituição de tributos indiretos a quem não prove a assunção do seu encargo financeiro, nem esteja autorizado pelo terceiro que suportou tal encargo. São do Superior Tribunal de Justiça:
"Tendo o encargo financeiro do tributo sido transferido ao contribuinte de fato, só este ou quem por este for autorizado, terá legitimidade para pleitear a restituição. Sendo o ICMS tributo indireto, há a presunção de transferência do ônus tributário ao contribuinte de fato e a prova da não transferência envolve matéria fática, insuscetível de análise na via Especial (Súmula n.º 7 do STJ"
(REsp 218.042-SP, Rel. Min. Garcia Vieira., j. 17.8.1999, DJU 27.9.1999).
"I – Compensação tributária é uma forma de restituição, na qual, o contribuinte que recolheu tributo indevido, em lugar de recuperar o respectivo dinheiro, apresenta seu crédito ao Fisco, imputando-o como pagamento da dívida que tenha para com este.
II – Em sendo forma de restituição, a compensação tributária de ICMS, submete-se à prova negativa de transferência do respectivo encargo (CTN, art. 166)"
(REsp 191.005, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 21.10.1999, DJU 17.12.1999).
"O creditamento a posteriori equivale à efetiva repetição de indébito. Se o contribuinte já fez repercutir o tributo, transferindo a terceiros o respectivo encargo, não há mais como reconhecer-lhe direito ao creditamento sem ofender o art. 166. do CTN. Para que se efetive o creditamento a posteriori é necessária a prova de que o encargo do imposto respectivo não se transferiu ao contribuinte de fato"
(Embargos em REsp 4.156-0-RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 8.10.1993)."
Do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios:
"AÇÃO DE REPETIÇÃO DO INDÉBITO. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS (ISS). TRIBUTO INDIRETO. NÃO DEMONSTRADA A AUSÊNCIA DE REPASSE, CARÊNCIA DA AÇÃO PROPOSTA. Carece da ação proposta o contribuinte que postula restituição de imposto indireto descuidado da prova que não o repassou aos seus clientes"
(APC1.484.986 DF, Rel. Des. Manoel Coelho, j. 19.9.1991, DJU 23.10.1991).
"TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO DE TRIBUTOS, AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTOS AUTORIZATIVOS. IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO DO ISS, POR SE TRATAR DE IMPOSTO INDIRETO. SÚMULAS 71 E 546 DO STF. Tratando-se de imposto indireto, a sua restituição somente se dará quando comprovado pelo contribuinte de jure, que não repassou o valor deste tributo para o contribuinte de facto. Apelo improvido"
(APA 4.569.897 DF, Rel. Des. Ribeiro de Sousa, j. 9.10.1997, DJU 18.2.1998).
E do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
"O ISS é tributo indireto e o art. 166, do CTN estatui que ‘a restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la’. Havendo o Excelso Pretório sumulado a questão através de sua Súmula n.º 546 – ‘Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo’, ou seja, quando se tratar de tributo indireto, isto é, aquele em que há repercussão do tributo em relação a uma terceira pessoa, somente será possível a repetição de indébito se o contribuinte de direito, isto é, a pessoa jurídica, comprovar que não repassou a contribuinte de fato, ou seja, ao consumidor, aquele imposto que pretende receber de volta, pouco importando se o auto de infração é nulo, se o imposto é indevido ou se houve isenção"
(Apelação Cível 1999.001.18795, Rel. Des. Ademir Pimentel, j. 28.3.2000).
Na caso em apreço, a Viação Aérea São Paulo S.A. requer a restituição de valores recolhidos aos cofres do Estado do Maranhão a título de ICMS pago ao longo dos anos de 1989 a 1994. Diz o órgão consulente que a pleiteante não exibira prova de ter assumido o encargo financeiro do imposto estadual recolhido, nem tampouco apresentara autorização de quem tenha suportado tal ônus para reclamar a restituição. Ante estas circunstâncias, força é convir que à requerente falece legitimidade para o pleito em exame. Do contrário, admitir que possa ela ser ressarcida de lesão que efetivamente não suportara, é compactuar com o enriquecimento sem causa, que repudia ao bom direito. Por tal motivo, é de ser indeferida a restituição.
5. Das respostas aos quesitos formulados
Em face da argumentação apresentada, passa-se a responder aos quesitos formulados pelo órgão consulente:
5.1. A decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.089-1 declarou inconstitucional a cobrança de ICMS sobre a navegação aérea?
O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto do art. 1.º e do inciso IX, do art. 2.º, do Convênio ICMS n.º 66/88, para excluir destes dispositivos a interpretação que os coloca em conflito com a Magna Carta, por abranger, na hipótese de incidência do imposto estadual, os serviços de transporte aéreo. Por certo reconheceu a Suprema Corte que este ICMS, incidente sobre tais serviços, trata-se de um imposto novo que não poderia ser regrado através de norma convenial pautada no art. 34, § 8.º, do ADCT, mas tão-somente por meio de lei complementar. A inconstitucionalidade refere-se à forma por que editadas as normas impugnadas; todavia, ainda que cogitasse do conteúdo da regra, os efeitos, mormente temporais, da declaração de inconstitucionalidade seriam os mesmos.
5.2. A sobredita decisão produz efeitos ex nunc ou ex tunc?
Como regra, as decisões do Supremo Tribunal em controle abstrato de constitucionalidade de leis ou atos normativos produzem efeitos ex tunc. Este princípio, entretanto, pode ser excepcionado, notadamente após a edição da Lei n.º 9.868/99 que, em seu art. 27, expressamente prevê esta possibilidade. Em relação à ADIn 1.089-1/DF o Excelso Pretório não fez nenhuma ressalva quanto aos efeitos temporais de seu julgamento. Destarte, é de se ter presente que tal decisão produz efeitos retrooperantes.
5.3. Que outras teses, a favor ou contra o pedido da requerente, podem ser propostas?
Em face dos elementos de que se dispôs, não se vislumbra outras teses a serem erguidas contra o pedido em questão. Chegou-se a cogitar da ocorrência de prescrição, já que, a contar da decisão de inconstitucionalidade, a requerente teria, então, o prazo de 5 (cinco) anos para pleitear a restituição do indébito (art. 168. do CTN). Todavia, crê-se que tal argumento não resistiria à regra do art. 4.º do Decreto n.º 20.910, de 6 de janeiro de 1932, que dispõe sobre a prescrição qüinqüenal para a cobrança de dívidas passivas da Fazenda Pública federal, estadual ou municipal. Diga-se, porém, que o quesito é muito aberto e que só uma análise minudente do requerimento formulado pela VASP permitirá conclusões mais precisas.
5.4. À luz das respostas às questões acima, a requerente tem direito à restituição pleiteada?
Tomados apenas os efeitos retrooperantes do julgamento da ADIn 1.089-1/DF, seria de se concluir favoravelmente à restituição. Entretanto, o deferimento do pleito apresentado pela empresa aeroviária vai de encontro ao disposto no art. 166. do Código Tributário Nacional. Como bem informa o órgão consulente, a VASP não trouxera com o seu requerimento nada que atestasse ter ela assumido o encargo financeiro do ICMS por ela recolhido entre 1989 e 1994. Também não cuidou em apresentar autorização, para pleitear o ressarcimento, de quem tenha suportado este ônus. Tendo em vista, portanto, estas considerações, é de ser indeferido o pedido de restituição em apreço.
É o parecer, s. m. j.
São Luís (MA), 9 de janeiro de 2002.
Oscar Cruz Medeiros Júnior, Procurador do Estado