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Da competência penal na Justiça do Trabalho

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Agenda 07/04/2006 às 00:00

Parecer elaborado por solicitação da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA), a respeito da polêmica competência penal da Justiça do Trabalho, tendo em vista a ADIN nº 3684/2006, ajuizada pelo Procurador Geral da República.

Referência: Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3684/2006 (do Exmo. Procurador-Geral da República)

Consulta: Presidência da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA)

Objeto: Parecer 01/2006.

Data: 24.03.2006.

O Exmo. Juiz Diretor-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), Dr. JOSÉ NILTON PANDELOT, dirige-me a presente consulta, com respeito ao objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3684/2006, de 08.03.2006, ajuizada pelo Exmo. Procurador-Geral da República, Dr. FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA. Solicita-me a opinar sobre o teor da referida ação e a correspondente tese de inconstitucionalidade sem redução de texto do art. 114, I, da CRFB, no que toca à competência criminal da Justiça do Trabalho e à garantia do juiz natural.

Para tanto, formula basicamente os seguintes quesitos:

(a) A Justiça do Trabalho detém competência penal estrita sob a égide da Emenda Constitucional n. 45/2004?

(b) O entendimento de que os juízes do Trabalho exercem competência penal estrita fere as garantias do devido processo legal, do juiz natural e/ou do promotor natural?

(c) Essa interpretação atrai, em tese, a pecha da inconstitucionalidade material, apta a engendrar, a propósito, interpretação conforme ou declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto do artigo 114, I, da CRFB?

Examinados os termos da ADIn n. 3684/2006 e os demais subsídios de informação coligidos, passo a dar o meu parecer, para efeitos "interna corporis" e exclusivo uso associativo, sem natureza própria de consultoria (ut artigo 1º, II, da Lei 8.906/94, "a contrario").


P A R E C E R

Em 08.03.2006, o Procurador-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade com fundamento nos artigos 102, I, "a" e 103, VI, da CRFB, requerendo a declaração de inconstitucionalidade formal do artigo 114, I, por violação do artigo 60, §§ 2º e 4º, IV, da CRFB, e ? sucessivamente ? a declaração de sua inconstitucionalidade material sem redução de texto, bem como a dos incisos IV e IX do mesmo artigo 114, por violação do artigo 5º, caput e inciso LIII, da CRFB, com vistas a afastar qualquer interpretação que reconheça competência criminal à Justiça do Trabalho. Aduziu pedido de concessão liminar da tutela, atribuindo-se-lhe, em qualquer caso, eficácia "erga omnes" e "ex tunc", com efeitos plenamente vinculantes.

1.2. O Parquet entende, sucintamente, que o artigo 114, I, da CRFB padece de inconstitucionalidade formal, porque o dispositivo aprovado no Senado Federal, em primeiro turno, excetuava expressamente "os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação". Esse trecho foi depois suprimido no Parecer n. 1.747/2004, que baseou a redação votada e aprovada em segundo turno. A supressão teria relevância para o objeto da ADIn n. 3684/2006, na medida em que o excerto expurgado parametrizaria o alcance da expressão "ações oriundas das relações de trabalho", revelando que a competência material da Justiça do Trabalho não iria além da superação de

uma pretensão resistida do trabalhador quanto à observância de direitos trabalhistas descumpridos pelo empregador, salvo quando esse trabalhador fosse um servidor público estatutário ou comissionado. Noutras palavras, ações trabalhistas! [01]

1.3. Por outro lado, advoga o Parquet que a interpretação sistemática a conferir competência penal estrita à Justiça do Trabalho padeceria de inconstitucionalidade material, por malferir o artigo 5º, LIII, da CRFB, já que o juízo natural para o processo e o julgamento das infrações penais jamais poderia ser um órgão da Justiça do Trabalho: ora seria um órgão da Justiça Comum Federal, ora da Justiça Eleitoral, ora da Justiça Militar e, nos demais casos, órgãos da Justiça Comum Estadual (competência residual). A Justiça do Trabalho, porém, não deteria, em qualquer hipótese, competência penal "stricto sensu" ? à diferença de todos os demais ramos do Poder Judiciário nacional. A par disso, as ações penais ajuizadas por órgãos do Ministério Público do Trabalho feririam o princípio do promotor natural. Tal desordem institucional culminaria por incutir sentimento de insegurança jurídica e facilitar prescrições, fato especialmente grave nos casos de "trabalho escravo" contemporâneo. Donde a necessidade da concessão liminar requerida.

1.4. O inteiro teor da peça "sub examinen" demonstra que todos os argumentos expendidos ? da inconstitucionalidade formal à inconstitucionalidade material ? convergem para uma única preocupação, estribada na Representação PGR n. 1.00.000.001257/2006-27, da Associação Nacional dos Procuradores da República: pacificar a tese da incompetência material da Justiça do Trabalho para lides de natureza penal estrita. Preocupação que ganha corpo à mercê das decisões pontuais que vêm reconhecendo aquela competência no âmbito da Justiça do Trabalho, como apontado ilustrativamente no item n. 24 da ADIn n. 3684/2006.

1.5. Diante disso, o cerne da insurgência reduz-se à questão da incompetência material da Justiça Obreira e, paralelamente, à tese de que a admissão de uma competência penal estrita exercitável pelos órgãos da Justiça do Trabalho feriria, a um tempo, os princípios do juiz natural e do promotor natural (i.e., o devido processo legal formal). O problema da inconstitucionalidade formal do artigo 114, I, da CRFB é, a bem dizer, objeto de outra ação direta de inconstitucionalidade (ADIn n. 3395/2005, de iniciativa da AJUFE), na qual se concedeu tutela liminar para afastar quaisquer interpretações que incluam, no âmbito de competência material da Justiça do Trabalho, as causas entre o Poder Público e os servidores a ele vinculados por relação de natureza estatutária ou jurídico-administrativa. Não há, porém, decisão definitiva a reconhecer a inconstitucionalidade formal do artigo 114, I (ao revés, deu-se-lhe interpretação conforme, o que significa reconhecer, "in limine litis", a sua validade em tese). Logo, essa matéria já está "sub judice", não esgrime as principais razões que importam à questão da ADIn n. 3684/2006 e, de resto, não foi objeto de consulta (supra). Ater-nos-emos, por isso, ao "thema" da inconstitucionalidade material sem redução de texto e do conseqüente pleito de interpretação conforme.


II. COMPETÊNCIA PENAL-TRABALHISTA APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004

Afirmar que a competência material da Justiça do Trabalho cinge-se às "ações trabalhistas", assim entendidas as ações que manifestam conflitos de interesses qualificados por pretensão resistida de observância de direitos trabalhistas (item n. 09 da ADIn n. 3684/2006) é, "concessa venia", um equívoco notável.

2.2. Mesmo antes da EC n. 45/2004, a Justiça do Trabalho já detinha competência material que ultrapassava indelevelmente os lindes de sua competência basal histórica (dissídios contratuais na esfera individual e coletiva). O próprio Supremo Tribunal Federal já havia afirmado a competência material da Justiça do Trabalho para conhecer e julgar ações de indenização por danos materiais e morais no marco da relação de emprego (STF, RE n. 238.737-SP, 1ª T., rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 17.11.1998 [02]), conquanto se compreendesse, com ressalva do pensamento minoritário [03], que tais indenizações têm natureza aquiliana (= extracontratual) e não contratual. Na ementa, lê-se que

Compete à Justiça do Trabalho o julgamento de ação de indenização por danos materiais e morais, movida pelo empregado contra seu empregador, fundada em fato decorrente da relação de trabalho […], nada importando que o dissídio venha a ser resolvido com base nas normas de Direito Civil [grifos nossos].

2.3. Na mesma ensancha, a Justiça do Trabalho passou a ser competente para executar, de ofício, as contribuições sociais decorrentes das sentenças que profere (EC n. 20/98), passando a deter competência executiva em matéria tributária, sem qualquer substrato contratual (ut artigo 3º do CTN) e sem conexões diretas com os direitos trabalhistas estritamente considerados (artigo 7º da CRFB).

2.4. Após a entrada em vigor da EC n. 45/2004, essa competência atípica foi dilargada para alcançar virtualmente todas as ações de representação sindical (artigo 114, III), as ações relativas às penalidades administrativas aplicadas no exercício da fiscalização do trabalho (artigo 114, VII) e, para mais, remédios constitucionais tão excelsos quanto o "habeas data" e o "habeas corpus" (artigo 114, IV). Essas ações servem, respectivamente, à tutela de direitos civis de representação associativa e do próprio direito constitucional de livre associação na órbita sindical, com todos os seus consectários positivos e negativos (artigo 5º, incisos XVII a XXI); ao resguardo dos interesses públicos e dos direitos individuais do cidadão ao ensejo do exercício do poder de polícia nas atividades administrativas de fiscalização do trabalho (Direito Administrativo sancionador [04]); à salvaguarda do direito geral de informação mínima e do direito de saber ou registrar a verdade sobre si mesmo [05]; e, finalmente, à preservação da liberdade espacial-corporal de tantos quantos se sintam constrangidos por atos de império imbricados com matérias afetas à jurisdição da Justiça do Trabalho.

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2.5. Por conseguinte, não se pode mais afirmar que a competência material da Justiça do Trabalho esteja adstrita às lides tipicamente trabalhistas, i.e., à observância/inobservância de direitos trabalhistas "stricto sensu" (artigo 7º da CRFB). A jurisprudência consolidada no âmbito dos tribunais superiores e o "telos" da Reforma do Poder Judiciário (EC n. 45/2004) demonstram, à saciedade, que a Justiça do Trabalho deixou de ser a «Justiça do trabalhador» (ou quiçá «Justiça do empregado») e passou a ser, propriamente, a Justiça do Trabalho. De uma perspectiva tuitiva "a parte subjecti" (a do trabalhador subordinado), evoluiu para uma perspectiva funcional "a parte objecti" (a do trabalho como projeção da personalidade humana), com "vis atractiva" para toda a matéria concernente ao trabalho humano de fundo consensual (elemento volitivo), com pessoalidade mínima (elemento tendencial) e caráter continuativo ou coordenado (elemento funcional) [06].

2.6. Tampouco se pode afirmar, em bom Direito, que a Justiça do Trabalho não detém competência penal estrita. Possui-a, por expresso comando constitucional, ut artigo 114, IV, da CRFB. Como é sabido, o "habeas corpus" nada mais é que uma ação penal popular. É essa a sua matriz ontológica, ainda que o constrangimento subjacente admita as mais diversas morfologias: cumprimento de pena (em sede de execução penal), prisão cautelar (em sede processual penal), inadimplemento de deveres familiares jusfundamentais (alimentos), inadimplemento de obrigações contratuais estritas (infelidelidade depositária), etc. Não é outro, aliás, o entendimento do Excelso Pretório:

Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento e julgamento será sempre do juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença. [07]

No mesmo sentido e "ad exemplum", vejam-se, na jurisprudência nacional, os seguintes arestos: STJ, CC n. 2459/SP, 3ª S., rel. Min. Francisco de Assis Toledo, j. 20.02.1992 [08]; TRF 4ª Reg., HC n. 944.2.173-1 [09]; TRF 1ª Reg., HC n. 92.01.27.236-7 [10].

Na doutrina, confiram-se, entre outros, TOURINHO FILHO [11], MIRABETE [12], ALEXANDRE DE MORAES [13], ADA GRINOVER, GOMES FILHO e SCARANCE FERNANDES [14].

2.7. Já por isso, pedir que o Supremo Tribunal Federal declare a incompetência penal "tout court" da Justiça do Trabalho é pedir, "a fortiori", a declaração da inconstitucionalidade parcial do artigo 114, IV, da CRFB, com redução de texto. Se não, vejamos.

2.8. Prover a ADIn n. 3684/2006 nos precisos termos das alíneas "b" e "c" do seu capítulo VI é repelir, "in totum", a competência constitucional da Justiça do Trabalho para o processo e o julgamento de "habeas corpus", que é ação penal liberatória (tópico 2.6, supra). Suprimir-se-ia obliquamente a validade e a eficácia jurídica de uma parcela do texto normativo vazado no inciso IV do artigo 114; e, por essa via, conceder-se-ia ao Parquet mais do que foi pedido, com violação do princípio da correlação entre a demanda e a sentença (artigo 460, caput, do CPC). É que a declaração de inconstitucionalidade com redução de texto circunscreve-se à hipótese do artigo 114, I, da CRFB, nos exatos termos da alínea "a" do referido item VI (inconstitucionalidade formal). Conseqüentemente, deferir «interpretação conforme» nos moldes dos pedidos "b" e "c" terminaria por violar a cláusula do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CRFB) ? cláusula que, ironicamente, fora evocada em defesa da medida (item n. 32 da ADIn n. 3684/2006).

2.9. Ademais disso, há razões ponderáveis para crer que, a par do remédio penal liberatório previsto no artigo 5º, LXVIII, da CRFB, também as ações penais condenatórias passaram à esfera de competência material da Justiça do Trabalho, quando a "persecutio in judicio" referir-se àquelas infrações penais (= crimes e contravenções) oriundas da relação de trabalho, seguindo a dicção do artigo 114, I, da CRFB. Essa compreensão dimana da perspectiva funcional "a parte objecti" chancelada pelo Poder Legislativo reformador ao ensejo da EC n. 45/2004 e abrange, notadamente, os crimes contra a organização do trabalho (Título IV da Parte Especial do Código Penal, artigos 197 a 207) e as contravenções relativas à organização do trabalho (Capítulo VI da Parte Especial da Lei de Contravenções Penais, artigos 47 a 49) [15], quando não estiver em causa lesão a interesses coletivos e difusos e/ou atentado à organização geral do trabalho como sistema institucionalizado. Com efeito, na esteira da inteligência da Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos (que ainda se conserva [16]), "compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente" [grifos nossos]. Assim deve ser compreendida a norma de competência inserta no artigo 109, VI, 1ª parte, da CRFB ? tanto antes, quando a competência residual pertencia às Justiças estaduais (Súmula n. 115/TFR), como agora, em se admitindo que a competência residual tenha se trasladado para a Justiça do Trabalho, "ex vi" do artigo 114, I e IV, da CRFB.

2.10. A abonar essa tese ? não apenas mais acertada do ponto de vista político-judiciário, como também mais defensável constitucionalmente ?, há fortes argumentos de caráter jusfundamental. A par do quanto já se escreveu a respeito (em torno da teoria da «adequação legítima» entre a competência penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho, que a nós diz bem pouco), existe um aspecto jusfundamental que, com razões melhores e mais nítidas, parece afinal justificar a exegese da outorga, à Justiça do Trabalho, de competência para o processo e o julgamento das infrações penais indicadas no tópico 2.9 (supra). Vejamos.

2.11. Impende reconhecer, com ALEXY, que a teoria abstrata da ação (DEGENKOLB, 1877) não pode levar à extrema conseqüência de apartar, qual compartimentos estanques, o processo/procedimento (incluído, no binômio, o conceito de competência, que é um dos institutos fundamentais da Teoria Geral do Processo) e o direito material resistido, especialmente em se tratando de direitos humanos fundamentais. Bem ao revés, há uma conexão fundamental entre os direitos fundamentais ? entre os quais os direitos sociais positivados no artigo 7º da CRFB ? e os procedimentos jurídicos predispostos para a sua satisfação, de modo que "o aspecto procedimental e o material têm de ser reunidos em um modelo dual que garanta o primado do aspecto material" [17]. De outra forma, o processo perderia, pela abstração, a sua mais evidente característica contemporânea, a saber, a instrumentalidade [18]. Conseqüentemente, ali onde as normas processuais e/ou procedimentais podem aumentar a proteção de determinado direito fundamental, tais normas estão exigidas "prima facie" por princípios jusfundamentais [19] (entre os quais o da unidade da Constituição, o da máxima efetividade e o da força normativa da Constituição [20]). Mesmo argumento serve às diversas interpretações possíveis de uma norma constitucional de competência (que não é uma norma de procedimento, mas é uma norma de processo). Pelo princípio hermenêutico da força normativa da Constituição, é cediço que,

como a Constituição quer ser atualizada, mas as possibilidades e condições históricas dessa atualização se transformam, deve, na resolução de problemas jurídico-constitucionais, ser dada a preferência àqueles pontos de vista que, sob os respectivos pressupostos, proporcionem às normas da Constituição força de efeito ótima [grifos nossos]. [21]

Logo, uma interpretação constitucional só tem legitimidade jusfundamental se der "primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a «actualização» normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência" [22].

2.12. Não é outra a função social e histórica da tendência jurisprudencial atacada na ADIn n. 3684/2006, cujas fileiras, ao se avolumarem, talvez arranhem interesses corporativos. Procede-se ali à atualização normativa da Constituição, consumando o que o legislador possivelmente temeu fazer por expresso. Compreende-se a historicidade do sistema constitucional de competências e da sua estrutura, soerguida em um tempo menos virtuoso, quando os órgãos da Justiça do Trabalho ainda possuíam representação classista e pouco avançavam além dos restritos contornos da relação empregatícia (mesmo em matéria sindical); compreende-se, ainda, a dificuldade discursiva em se alterar esse paradigma no texto normativo. E entrevê-se, no vazio textual, a brecha contextual legislativa para uma nova competência material, apta a assegurar eficácia ótima aos direitos materiais em jogo (direitos sociais "stricto sensu"), por duas perspectivas:

(a) na medida em que o processo penal-trabalhista vincule, do ponto de vista humano, um corpo de magistrados peritos na figura elementar dos tipos penais (relação de subordinação laboral) e historicamente comprometidos com a resolução eqüidistante dos conflitos entre o capital e o trabalho;

(b) na medida em que a violação cabal dos bens jurídico-penais visados pelas normas de proteção social desafie, do ponto de vista estrutural, os rigores de uma jurisdição mais célere e menos formalista, sem prejuízo da estrita observância do devido processo penal.

Basta ver, quanto à última, a capacidade média de absorção da demanda judiciária na Justiça Federal comum (com efeitos funestos no quadro de prescrições), por um lado, e a capacidade de absorção na Justiça do Trabalho, em primeira e segunda instâncias, por outro [23]. Com a nova exegese, revitaliza-se a jurisprudência em seara penal-trabalhista. Repele-se, no mesmo âmbito, algum sentimento de anomia e impunidade que porventura haja. E recompõem-se, nesse campo, os efeitos de prevenção especial e geral negativa ? e mesmo os de prevenção geral positiva [24] ? que devem acompanhar as sanções penais em geral. Em resumo, a nova regra de competência, adscrita à norma do artigo 114 da CRFB, passa a garantir mais fielmente o primado dos direitos materiais diretamente envolvidos.

2.13. As decisões jurídicas em matéria de direitos fundamentais (como é o direito ao juiz natural e ao devido processo legal) sujeitam-se à racionalidade possível, não admitindo «exatidão de resultados» à maneira das ciências naturais [25]. Ou seja: tais decisões não são "verdadeiras" ou "falsas", mas legítimas ou ilegítimas. E a legitimidade, no processo de argumentação jusfundamental, diz com a sua controlabilidade racional [26]. Nesse caso, a teoria da argumentação jurídica ganha especial relevo. Na exegese do artigo 114 da CRFB, há um argumento que se atém à vontade histórica do legislador, tal como manifestada nos trabalhos legislativos (rejeição das emendas que conferiam expressamente a competência penal condenatória à Justiça do Trabalho), e a associa à literalidade do texto constitucional. Esse argumento está vazado na ADIn n. 3684/2006. Mas há outro argumento que considera os fins mirados pelo legislador em 2004, ao ampliar a competência material da Justiça do Trabalho: revalorizar o trabalho humano, humanizar as relações de trabalho "lato sensu" (i.e., relações de emprego e relações de trabalho não subordinado) e otimizar a satisfação dos direitos a prestações em sentido estrito [27]. Quanto à competência penal da Justiça do Trabalho, o legislador positivou-a, no que toca à ação penal liberatória por excelência ("habeas corpus"); e, de resto, calou-se. O silêncio poderia significar vedação; mas isso seria incomum, já que a competência penal foi conferida noutra circunstância, para processo e julgamento da ação penal popular. Nada obstante, o silêncio também pode significar a permissão jusfundamental para que a jurisprudência dos tribunais adira ao texto da Reforma a competência penal necessária para realizar aqueles fins ínsitos à EC n. 45/2004, desde que residual (i.e., não atribuída a outro ramo do Judiciário no próprio texto constitucional). Com isso, corrige-se o argumento genético-literal e obtém-se uma solução hermenêutica dotada de maior legitimidade social, engendrada por uma regra de inferência dialética de justificação externa. No modelo de ALEXY:

(a) o fato de o legislador querer R com a intenção de que ele seja interpretado segundo W (IRW = R’) é uma razão da validade de R’.

[...]

(b) O fato de o legislador querer R como meio de chegar a Z é um motivo para sustentar que é obrigatório aplicar R de tal modo a realizar Z.

(c) Se é obrigatório realizar Z, então quaisquer meios que sejam necessários para a realização de Z são obrigatórios também.

[...]

(a) e (b) receberam uma formulação muito fraca. A intenção do legislador é somente uma razão para a interpretação. Isso possibilita a apresentação de razões contrárias. A regra de inferência (c) é de grande interesse [grifos nossos]. [28]

Avaliza-se, assim, a competência penal estrita da Justiça do Trabalho pela legitimidade sócio-discursiva da correta argumentação jusfundamental, identificando, como norma adscrita aos incisos I e IV do artigo 114 da CRFB [29], uma regra concreta de competência material para ações penais condenatórias (tópico 2.9, supra).

2.14. O Supremo Tribunal Federal brasileiro chegou a empregar raciocínio semelhante, porém inverso, quando provocado a se manifestar sobre o órgão jurisdicional competente para o processo e o julgamento de "habeas corpus" impetrado contra ato de promotor de Justiça. A Constituição Federal é silente, pois só estabelece foro penal privilegiado para o caso de crimes comuns e de responsabilidade (artigo 96, III); i.e., para as ações penais condenatórias. Entendendo, porém, que a decisão do "habeas corpus" poderia, nessas hipóteses, importar em afirmação de prática de ilegalidade ou abuso de poder pela autoridade ministerial (no limite, prática de infração penal), a Corte concluiu que o órgão competente para o julgamento do writ haveria de ser o mesmo a que competiria, em tese, julgar a ação penal condenatória pela prática da infração penal em tese configurada ? ou seja, os órgãos de segunda instância (Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais, Tribunais militares). In verbis:

[...] 4. Tanto mais se legitima a norma questionada da Constituição local quanto é ela que melhor se ajusta ao correspondente modelo federal, no qual ? com a única exceção da hipótese de figurar como coator um Ministro de Estado ? o princípio reitor é conferir a competência originária para o "habeas-corpus" ao Tribunal a que caiba julgar os crimes de que seja acusado a autoridade coatora. [...]  Em matéria de competência para o habeas corpus, o sistema da Constituição Federal - com a única exceção daquele em que o coator seja Ministro de Estado (CF, arts. 105, I, c, e 102, I, c) - é o de conferi-la originariamente ao Tribunal a que caiba julgar os crimes de autoridade que a impetração situe como coator ou paciente (CF, arts. 102, I, d; 105, I, c). O princípio tem óbvia explicação sistemática: a decisão concessiva de habeas corpus traduz, com freqüência, provimento mandamental, a ser cumprido pela autoridade coatora, sob pena de prisão por desobediência [grifos nossos]. [30]

Ou ainda:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMPETÊNCIA. HABEAS CORPUS CONTRA ATO DE PROMOTOR DE JUSTIÇA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 96, III). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO PARA QUE O TRIBUNAL A QUO PROSSIGA NO JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS. [...] o fundamento dessa jurisprudência foi sempre o de que da decisão do habeas corpus pode resultar afirmação de prática de ilegalidade ou de abuso de poder pela autoridade. [31]

A legitimidade do argumento exposto no tópico 2.13 (supra) tem, seguramente, a mesma matriz, posto que às avessas. Se o juiz do Trabalho possui, "mutatis mutandi", competência constitucional expressa para proferir decisão concessiva de "habeas corpus" em matéria sujeita à sua jurisdição (artigo 114, IV, da CRFB), e se nessa sede pode vir a reconhecer incidentalmente ilícitos ou abusos idôneos a configurar crimes ou contravenções em tese, há também «óbvia explicação sistemática» a escorar o entendimento de que, nesses nichos, a decisão penal condenatória deve lhe estar igualmente acometida. "Ubi eadem ratio, ibi idem jus".

2.15. Diga-se, por fim, que a tese da competência penal-trabalhista tem precedentes concretos no Direito comparado. Em Portugal, p. ex., conquanto não existam ramos judiciários autônomos do ponto de vista funcional, administrativo e orçamentário, há tribunais e juízos de competência especializada (Secção III do Capítulo V da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ? Lei n. 3/99, de 13 de janeiro). O artigo 78º relaciona expressamente os tribunais de instrução criminal, os de família, os de menores, os do trabalho, os de comércio, os marítimos e os de execução das penas. E, na regra de competência dos tribunais do trabalho, estabelece o artigo 86º da Lei n. 3/99:

Competência contravencional. Compete aos tribunais do trabalho conhecer e julgar, em matéria contravencional:

a) As transgressões de normas legais e convencionais reguladoras das relações de trabalho;

b) As transgressões de normas legais ou regulamentares sobre encerramento de estabelecimentos comerciais ou industriais, ainda que sem pessoal ao seu serviço;

c) As transgressões de normas legais ou regulamentares sobre higiene, salubridade e condições de segurança dos locais de trabalho;

d) As transgressões de preceitos legais relativos a acidentes de trabalho e doenças profissionais;

e) As infracções de natureza contravencional relativas à greve;

f) As demais infracções de natureza contravencional cujo conhecimento lhes seja atribuído por lei.

Trata-se de competência eminentemente penal, embora não extensível aos crimes [32]. Tanto que a competência administrativa ? similar àquela inserta no artigo 114, VII, da CRFB ? é objeto do artigo 87º (impugnação das decisões das autoridades administrativas em processos de contra-ordenação nos domínios laboral e de segurança social), enquanto a competência estritamente cível é objeto de tratamento exauriente no artigo 85º (questões emergentes das relações de trabalho subordinado e dos contratos individuais de trabalho, anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, questões emergentes de contratos de aprendizagem e tirocínio, questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por elas representados, questões entre comissões de fábrica e as respectivas comissões coordenadoras, os trabalhadores ou as empresas, etc.). E, na linha do cabal reconhecimento daquela competência penal, a franca doutrina aponta a adstrição dos tribunais do trabalho, nessa matéria, às normas constitucionais do devido processo penal (artigos 29º, 30º e 32º da CRP) [33]. Tratamento semelhante pode ser vislumbrado nos sistemas jurídicos espanhol, italiano e alemão (embora a tendência legislativa, em toda a Europa, seja a progressiva eliminação do ilícito contravencional, em favor de um sistema administrativo-sancionador de mera ordenação social [34]). Como se vê, a experiência jurídica alienígena legitima o modelo de repartição coerente das competências "a parte objecti", reservando para os juízes e tribunais do trabalho certa competência penal (ações condenatórias inclusive), em maior ou menor escala, e uma ampla competência contra-ordenacional, precisamente naquilo que se relaciona ao principal objeto fenomenológico de sua atuação jurisdicional (a saber, as relações de trabalho).

Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Da competência penal na Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1010, 7 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16676. Acesso em: 2 nov. 2024.

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