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Utilização de bens públicos por particulares.

Casamento no hemocentro?

Agenda 18/11/2010 às 06:52

É possível a utilização de bem de uso especial por particular, mediante simples autorização, desde que demonstrado o interesse público.

Trata-se de consulta formulada pela Fundação HEMOCENTRO de Brasília quanto à possibilidade de realização de cerimônia de casamento nas dependências daquela entidade. A consulta encontra-se assim redigida:

"Ao cumprimentá-lo, e considerando o pedido de uma doadora de sangue que gostaria de realizar o seu casamento nas dependências da Fundação Hemocentro de Brasília, conforme justificativas apresentadas pela mesma, em anexo. Solicito análise no sentido de nos fornecer subsidio para deferir ou indeferir o pleito." (com adaptações).

2.O expediente traz, em anexo, justificativa apresentada pela Senhora CILMA PAULA DE AZEVEDO que, em resumo, relata ter sido vítima de grave acidente envolvendo veículo automotor, ocasião em que, para sua recuperação, foi essencial a transfusão sanguínea, o que se processou com sucesso, segundo consta, graças ao abastecimento regular dos estoques da Fundação HEMOCENTRO de Brasília. Em razão disso, relata que uma das causas sociais de sua vida passou a ser o estímulo à doação de sangue. Assim, deixou consignado:

"Quero casar no Hemocentro de Brasília para mostrar a todos que graças à solidariedade de pessoas anônimas eu poderei vivenciar um momento tão belo

(...)

O meu sonho tem como objetivo a sensibilização das pessoas quanto à importância da doação de sangue, pois se os hospitais não tivessem sangue a minha vida seria interrompida

" (grifos no original).

3.A consulta integra a disciplina da utilização de bens públicos por particulares. Trata-se, portanto, em primeiro plano, de avaliar a possibilidade legal e em tese de que essa intenção se processe sem malferimento do ordenamento jurídico vigente e com apoio na Constituição Federal.

4.Primeiramente, para melhor situar o tema, há de se ressaltar que o art. 99, II do Código Civil Brasileiro classifica os bens públicos em três modalidades, quais sejam: de uso comum do povo, de uso especial e os dominicais. Essa classificação leva em conta a destinação dos bens públicos. Os primeiros são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo. Os segundos, ao uso da Administração, para consecução de seus objetivos, como os imóveis onde estão instaladas as repartições públicas e os bens móveis utilizados na realização dos serviços públicos (veículos oficiais, materiais de consumo, etc). Os últimos não têm destinação pública definida, razão pela qual podem ser aplicados pelo Poder Público para obtenção de renda [01]. Assim estabelece o Código Civil:

Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

5.A par disso, percebe-se que as dependências físicas da Fundação Hemocentro de Brasília, como um todo e cada uma de suas partes, têm natureza jurídica de bem público de uso especial, o que lhes aporta característica singular, qual seja a sua afetação a um serviço ou estabelecimento público para consecução dos objetivos específicos da entidade, conforme definição legal e regulamentar.

6.Acerca dessa classificação, com lucidez, Maria Sylvia Zanella Di Pietro [02] enfatiza:

A expressão uso especial, para designar essa modalidade de bem, não é muito feliz, porque se confunde com outro sentido em que é utilizada, quer no direito estrangeiro, quer no direito brasileiro, para indicar o uso privativo de bem público por particular e também para abranger determinada modalidade de uso comum sujeito a maiores restrições, como pagamento de pedágio e autorização para circulação de veículos especiais.

É mais adequada a expressão utilizada pelo direito italiano e pelo Código de Contabilidade Pública, ou seja, bens do patrimônio indisponível; por aí se ressaltar o caráter patrimonial do bem (ou seja, a sua possibilidade de ser economicamente avaliado) e a sua indisponibilidade, que resulta, não da natureza do bem, mas do fato de estar ele afetado a um fim público.

(grifos no original).

7.Conforme assevera Marçal Justen Filho [03], em princípio, o uso e a fruição de bens de uso especial (bens do patrimônio indisponível) são reservados, com exclusividade, à própria Administração Pública, para abrigar seus agentes (bens imóveis) e permitir a realização do exercício formal e material de suas atividades (bens móveis). Entretanto, segundo o mesmo autor, dá-se de forma diversa quando tais bens forem instrumentais em relação ao oferecimento de utilidades a terceiros, ou seja, quando, em razão das características próprias da atividade administrativa a que estão orientados admitir a outorga.

8.Acerca dessa possibilidade, Celso Antônio Bandeira de Mello [04] registra que, como os bens de uso especial são aqueles onde estão instaladas repartições públicas, compreende-se que, como regra, o uso que as pessoas podem deles fazer é o que corresponda às condições de prestação do serviço ali sediado.

9.Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por outro lado, esclarece que as três modalidades de bens públicos previstas pelo Código Civil - de uso comum, de uso especial e dominical - podem ser utilizados pela pessoa jurídica de direito público que detém a sua titularidade ou por outros entes públicos aos quais sejam cedidos, ou ainda, por particulares [05].

10.No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles destaca que todos os bens públicos, qualquer que seja a sua natureza - de uso comum, de uso especial ou dominical - são passíveis de uso especial [06] por particulares, desde que a utilização consentida pela Administração não os leve à inutilização ou à destruição [07]. E acrescenta:

"Ninguém tem direito natural a uso especial de bem público, mas qualquer indivíduo ou empresa pode obtê-lo mediante contrato ou ato unilateral da Administração, na forma autorizada por lei ou regulamento ou simplesmente consentida pela autoridade competente. Assim sendo, o uso especial do bem público será sempre uma utilização individual – uti singuli – a ser exercida privativamente pelo adquirente desse direito. O que tipifica o uso especial é a privatividade da utilização de um bem público, ou de parcela desse bem, pelo beneficiário do ato ou contrato, afastando a fruição geral e indiscriminada da coletividade ou do próprio Poder Público. Esse uso pode ser consentido gratuita ou remuneradamente, por tempo certo ou indeterminado, consoante o ato ou contrato administrativo que o autorizar, permitir ou conceder." (destacou-se).

11.Portanto, o que na prática se pretende, é o consentimento para o uso, em caráter privativo, mediante restrição por convite, do bem imóvel de propriedade da Fundação HEMOCENTRO de Brasília (ou apenas parte dele) [08], com vistas à realização de cerimônia de casamento, com duração efêmera e pelos motivos já expostos.

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12.Dessa maneira, tal outorga, pelas características citada e pelas intenções consignadas, encontra amparo no instituto jurídico denominado autorização de uso, o qual objetiva materializar o ato administrativo a rigor, precário, pelo qual a Administração Pública atribui a um particular a faculdade de usar transitoriamente um bem público de modo privativo ou exarcebado.

13.Como toda autorização administrativa, a de uso privativo é ato unilateral, porque não obstante outorgada mediante provocação do interessado, se perfaz com a exclusiva manifestação de vontade do Poder Público; discricionário, uma vez que o consentimento pode ser dado ou negado, segundo considerações de oportunidade e conveniência, a cargo da Administração; precário, no sentido de que pode ser revogado a qualquer momento, quando o uso se tornar contrário ao interesse público, podendo ser gratuita ou onerosa, dispensando licitação [09].

14.O Tribunal de Contas do Distrito Federal, aprofundando-se no estudo do uso de bem público por particular, manifestou-se por meio da Decisão n.º 131/2003, da seguinte forma:

(...)

1.3) a autorização de uso, que tem caráter precário, não exige prévia licitação, a menos que lei distrital disponha em contrário;

(...)

1.8) o instrumento da autorização de uso, cuja abrangência é bastante distinta da autorização de serviço público, destina-se a facultar ao particular a ocupação temporária, transitória, de duração efêmera e passageira de bem público, sem que tal ocupação tenha maior relevância para a comunidade, caso, por exemplo, do depósito de materiais em via pública, da interdição de rua para realização de construção ou festas comunitárias e da ocupação de terrenos por circo ou parque de diversões itinerante, não se mostrando adequado, por outro lado, à ocupação de espaços públicos em feiras, sejam livres ou permanentes, bancas de jornais e revistas, trailers, quiosques e similares, cantinas, restaurantes e lanchonetes em repartições públicas, entre outros; (destacou-se).

15.A precariedade que qualifica o instituto da autorização de uso afasta a possibilidade de fixação de prazo e, segundo grande parte da doutrina, desnatura o instituto. Entretanto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro [10] admite a possibilidade registrando que, na prática administrativa, tem-se admitido autorização com prazo fixo (chamadas, por isso, condicionadas ou qualificadas), ressalvando que, nessa hipótese, confere-se ao particular a mesma estabilidade que decorre da concessão e, portanto, o mesmo direito à indenização, em caso de revogação do ato antes do prazo estabelecido.

16.Dessa forma, em tese, é possível a utilização do instituto da autorização de uso para materializar o que se pretende, observadas, por óbvio, além da adequação da forma, as demais regras do Código Civil Brasileiro aplicáveis ao instituto do casamento, especialmente, no caso em apreço, as dispostas em seu art. 1.534.

17.Em razão das peculiares circunstâncias envolvidas, muito embora não se possa afastar o interesse particular que aflora da demanda (casamento), o que, por certo, permite a utilização da autorização de uso, é especialmente necessário que a entidade consulente comprove à exaustão e formalize o interesse público envolvido, avaliando, particularmente, a utilidade da iniciativa para Estado e para as políticas públicas objetivando o estímulo à doação de sangue, antes de proceder à autorização.

18.Sob o ponto de vista teórico essa análise faz-se com relativa facilidade, uma vez que é inconteste que as políticas públicas de estímulo à doação de sangue e as iniciativas sociais que visem, de alguma forma, a materializá-las no seio da sociedade e do Estado integram o esforço para concretização do direito fundamental social à saúde, ao qual o Poder Executivo está invariavelmente jungido e obrigado, na forma do art. 6º e do art. 196, da Constituição Federal. Tais iniciativas são indissociáveis da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da própria vida. Os dois primeiros, fundamentos da República (art. 1º, II e II da CF), enfatizam a importância no contexto social e jurídico. O último, bem cuja proteção inviolável (art. 5º, caput) encerra o mais importante direito fundamental e enche de significado o nobre ato de desprendimento e solidariedade consubstanciado na doação de sangue. Sem a vida não há pessoa, sem pessoa não há cidadania e sem cidadania padece o povo na ignorância política.

19.Mas como se disse, não basta o referencial teórico, a entidade consulente precisa estabelecer, ela própria, esse liame, bem como formalizá-lo como fato motivador do ato de autorização de uso que se pretende realizar. A Fundação HEMOCENTRO de Brasília, dadas as suas competências legais, afora os anseios da requerente, tem interesse institucional na autorização? Esse interesse é útil ao Distrito Federal e à sua sociedade?

20.A preocupação de fixar firme convicção acerca dessa premissa encontra fundamento na previsão do art.10, da Lei n.º 8429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), o qual dispõe:

Art. 10º - constitui improbidade administrativa, que causa lesão ao erário, qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

(...) 

XII – permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou a disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, bem como o trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades.

21.Atento a isso, seguro de que essa pecha, no presente caso, pode ser perfeitamente afastada e objetivando dar melhor suporte à decisão discricionária da entidade consulente, cabe citar o Acórdão proferido na Apelação Cível n.º 2008.025888-7/0000-00/Bela Vista, pela Terceira Turma Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul:

EMENTA– APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – EMPRÉSTIMO DE CARTEIRAS ESCOLARES PARA UTILIZAÇÃO EM FESTA DE CASAMENTO EM FINAL DE SEMANA – AUTORIZAÇÃO DA PREFEITA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO – AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ OU INTENÇÃO DESONESTA DOS RÉUS E PREJUÍZO AO ERÁRIO PÚBLICO – SENTENÇA CORRETA PELA IMPROCEDÊNCIA DA DEMANDA – RECURSO IMPROVIDO

A improbidade prevista na Lei 8429/92 deve ser analisada com bom senso, de modo a verificar se o administrador agiu com alguma desonestidade ou má-fé, pois não é a simples ilegalidade ou irregularidade formal que irá tipificar o ato ímprobo.

O simples empréstimo de algumas carteiras escolares para serem utilizadas em um casamento realizado no fim de semana, não configura ato de improbidade administrativa, eis que não causou prejuízo ao erário. Ademais, não há nos autos prova convincente de que a Prefeita Municipal tenha agido de má-fé, com o intuito de beneficiar os noivos, em prejuízo do Município.

22.No voto condutor da decisão acima citada, o Des. Marco André Nogueira Hanson deixou assentado:

No caso, o simples empréstimo de algumas carteiras escolares para serem utilizadas em um casamento realizado no fim de semana, não configura ato de improbidade administrativa, eis que não causou prejuízo ao erário. Ademais, não há nos autos prova convincente de que a Prefeita Municipal tenha agido de má-fé, com o intuito de beneficiar os noivos, em prejuízo do Município.

Trata-se na verdade de uma espécie de ato análogo ao ato administrativo denominado – Autorização de polícia administrativa, que segundo Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, ‘é ato mediante o qual o poder publico faculta ao particular a utilização de um bem público, denominado autorização de uso de bem público.’ (In Direito Administrativo Descomplicado – 17ª Ed.: Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 486).

Segundo o entendimento doutrinário, a autorização, seja qual for seu objeto, é um ato discricionário, ou seja, cabe exclusivamente à administração decidir sobre a oportunidade e a conveniência do deferimento, ou não, da autorização requerida.

Por outro lado, cumpre registrar que ainda que se diga que a autorização para o uso de bem público tenha interesse exclusivo particular, a verdade é que deve ela atender também ao interesse público, pelo menos indiretamente, uma vez que o ato de autorização, por definição, tem como finalidade geral a satisfação do interesse público, o que não ocorreu no caso em tela.

Entretanto, uma simples irregularidade na autorização de uso não sujeita o Administrador às severas penalidades da Lei n° 8.429/92.

Na lição de MARINO PAZZAGLINI FILHO, a ilegalidade não é sinônimo de improbidade e a ocorrência daquela, por si só, não configura ato de improbidade administrativa:

‘Portanto, a conduta ilícita do agente público para tipificar ato de improbidade administrativa deve ter esse traço comum ou característico de todas as modalidades de improbidade administrativa: desonestidade, má-fé, falta de probidade no trato da coisa pública. E essa ausência de honestidade, retidão, integridade na gestão pública, nas hipóteses de ato de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 9o) e que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11), pressupõe a consciência da ilicitude da ação ou omissão praticada pelo administrador (dolo). Apenas nos casos de atos de improbidade administrativa lesivos ao Erário (art. 10) é suficiente, para sua configuração, a ação ou omissão ilícita culposa, ou seja, o descumprimento inescusável de dever de ofício, causador de involuntário dano ao Erário, por não conduzir-se o agente público infrator com a atenção e a diligência reclamadas pela função pública por ele exercida. O atentado a legalidade, segundo Waldo Fazzio Júnior, só adquire, por assim dizer, o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios éticos que, a partir do caput do art. 11 iluminam seus incisos, sobretudo a honestidade, a imparcialidade e a lealdade. Assim, os atos administrativos ilegais que não se revestem de inequívoca gravidade, que não ostentam indícios de desonestidade ou má-fé, que constituem simples irregularidades anuláveis (e não atos nulos de pleno direito), que decorrem da inabilitação ou despreparo escusável do agente público, não configuram improbidade administrativa’ (Lei de Improbidade Administrativa Comentada, Editora Atlas S. A. - 2005, pág. 111).

Na doutrina de HELY LOPES MEIRELLES:

‘Ao prefeito, como aos demais agentes políticos, se impõe o dever de tomar decisões governamentais de alta complexidade e importância, de interpretar as leis e de converter os seus mandamentos em atos administrativos das mais variadas espécies. Nessa missão político-administrativa é admissível que o governante erre, que se equivoque na interpretação e aplicação da lei, que se confunda na apreciação da conveniência e oportunidade das medidas executivas sujeitas à sua decisão e determinação. Desde que o chefe do Executivo erre de boa-fé, sem abuso de poder, sem intuito de perseguição ou favoritismo, não fica sujeito à responsabilidade civil, ainda que seus atos lesem a Administração ou causem danos patrimoniais a terceiros. E assim é porque os agentes políticos, no desempenho de suas atribuições de governo, defrontam-se a todo momento com situações novas e circunstâncias imprevistas, que exigem pronta solução, à semelhança do que ocorre na Justiça, em que o juiz é obrigado a decidir ainda que na ausência ou na obscuridade da lei. Por isso mesmo, admite-se para essas autoridades uma margem razoável de falibilidade nos seus julgamentos" (Direito Municipal Brasileiro, Mattieiros Editores, 8a ed., pág. 573).

Nesse sentido, o seguinte julgado:

‘(...) A improbidade prevista no art. 11 da Lei 8429/92 deve ser analisada com bom senso, de modo a verificar se o administrador agiu com alguma desonestidade ou má-fé, pois não é a simples ilegalidade ou irregularidade formal que irá tipificar o ato ímprobo. 2 - Nessa linha de pensamento, o Superior Tribunal de Justiça já julgou que a lei de improbidade objetiva alcançar o administrador desonesto ou corrupto, e não aquele apenas inábil ou despreparado (REsp 213.994-0/MG; REsp 758.639/PB).’ (TJPR - 5ª C.Cível - AC 0532959-5 - Astorga - Rel.: Juiz Subst. 2º G. Rogério Ribas - Unanime - J. 10.02.2009)." (destacou-se).

23.Mas não só isso. O expediente encaminhado deixa transparecer comovente profissão da fé católica da interessada. Quanto a esse aspecto, embora o casamento religioso seja reconhecido pelo Estado que - nos termos do art. 226, §§ 1º e 2º da Constituição Federal e do art. 1.515 do Código Civil - desde que atendidos os requisitos legais, equipara-o ao casamento civil; para evitar questionamentos à luz da vedação contida no art. 18, I da Lei Orgânica do Distrito Federal e no art. 19, I, da Constituição Federal, recomenda-se que a cerimônia, se religiosa, adote postura ecumênica.

24.Não obstante, guardadas as devidas proporções, pela pertinência temática e coerência do raciocínio e para permitir a avaliação quanto à possibilidade de extensão lógica, consideramos adequada a referência ao pensamento do Min. Gilmar Ferreira Mendes [11]:

"Os logradouros públicos [12] não são, por natureza, locais de culto, mas a manifestação religiosa pode ocorrer ali, protegida pelo direito de reunião, com as limitações respectivas.

(...)

A laiciedade do Estado não significa, por certo, inimizade com a fé. Não impede a colaboração com confissões religiosas, para o interesse público (CF,art. 19, I). A sistemática constitucional acolhe, mesmo, expressamente, medidas de ação oficiais certos atos praticados no âmbito de cultos religiosos, como é o caso da extensão de efeitos civis ao casamento religioso.

Nesse sentido, não há embaraço – ao contrário, parecem bem-vindas, como ocorre em tantos outros países – a iniciativa como a celebração de concordata com a Santa Sé, para a fixação de termos de relacionamento entre tal pessoa de direito internacional e o país, tendo em vista a missão religiosa da Igreja de propiciar o bem integral do indivíduo, coincidente com o objetivo da República de ‘promover o bem de todos (art. 3º, IV, da CF). Seria erro grosseiro confundir acordos dessa orem, que se garantem meios eficazes para o desempenho da missão da igreja, com a aliança vedada pelo art. 19, I da Constituição. A aliança que o constituinte repudia é aquela que inviabiliza a própria liberdade de crença, assegurada no art. 5º, VI, da Carta, por permitir que outras confissões religiosas atuem livremente no País

O reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denota haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado. Afinal, as normas jusfundamentais apontam para valores tidos como capitais para a coletividade, que devem não somente ser conservados, como também promovidos e estimulados." (destacou-se).

25.Além disso, cabe à entidade fundacional e ao particular interessado adotarem todas as medidas para garantir que o ato, em nenhuma hipótese:

a) embarace, de qualquer forma, os serviços públicos prestados à população ou atrapalhe a rotina da entidade;

b) tenha conotações político-partidárias de qualquer espécie;

c) constitua promoção de quem quer que seja, pessoa física ou jurídica;

d) implique danos ao patrimônio público;

e) gere custos para o Estado, afora aqueles decorrentes da própria autorização; e

f) sejam atraídas hipóteses que façam nascer direito de ressarcimento para o particular.

26.Ademais, dada a aglomeração de pessoas que o evento poderá provocar, importante que a entidade se certifique de que o local escolhido ofereça todas as condições de segurança aos presentes.

Dessa forma, deve-se responder à consulta da Fundação HEMOCENTRO de Brasília no sentido de que, a critério da autoridade competente

é possível a utilização de bem de uso especial por particular, mediante simples autorização de uso, desde que, no presente caso, pelas peculiaridades do objeto, seja amplamente demonstrado o interesse público envolvido e minimamente confirmadas as alegações objetivas da requerente quanto ao sinistro propulsor da intenção por ela formalizada. No caso específico, recomenda-se a realização de cerimônia ecumênica, nos termos do item 23, retro, devendo-se observar rigorosamente as disposições dos itens 25 e 26, supra.


Notas

  1. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 565.
  2. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 569.
  3. FILHO, Marçal Justen. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 861-862.
  4. DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
    p. 820.
  5. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 582.
  6. Aqui a expressão é utilizada no sentido de uso privativo (vide item 6, retro).
  7. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. Rio de Janeiro: Malheiros, 2004. p. 499.
  8. não há esclarecimentos a esse respeito.
  9. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 588.
  10. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 587.
  11. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva e IDP, 2007. p. 407.

12.Classificados como bens de uso comum do povo.

Sobre o autor
Luciano Wagner Firme

Auditor de Controle Interno do Distrito Federal; Advogado; Administrador de Sistemas de Informações; Especialista em Controle da Gestão Pública pela Universidade de Brasília, Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Assessor do Ministério Público de Contas do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIRME, Luciano Wagner. Utilização de bens públicos por particulares.: Casamento no hemocentro?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/17133. Acesso em: 22 dez. 2024.

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