III – COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Como já mencionado, a norma em questão põe em conflito dois fundamentos constitucionais de um Estado Democrático de Direito: o “acesso à educação” e a “livre iniciativa”. Ao optar por declarar a constitucionalidade de qualquer mecanismo legal que proteja o primeiro em detrimento do segundo, o STF aplicou a regra da ponderação, também definida como regra da proporcionalidade, desenvolvida na teoria estrutural de ROBERT ALEXY[12].
Pela teoria de ALEXY, o direito positivo se estrutura em direito-princípio, direito-fundamento, direito-garantia e direito-regra, havendo entre eles um grau de relevância que deve ser observado quando de sua aplicação. Neste sentido, entenderam os ministros do Supremo Tribunal Federal que o “acesso à educação” é um direito-fundamento e, a “livre iniciativa”, um direito-princípio.
De sorte que, na dimensão objetiva dos direitos fundamentais, os efeitos irradiantes do primeiro seriam mais significativos do que o segundo. Ou seja, o fundamento seria o alicerce que estrutura o ordenamento, que não poderia ser rompido, senão por uma reforma constitucional (as chamadas cláusulas pétreas). Já os princípios seriam dimensões empíricas do texto constitucional, que obrigam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as condições fáticas e jurídicas; portanto, podem ser relativizados.
Resumindo, entendeu o STF que, entre desalojar o aluno da escola preservando a sua autonomia financeira, e manter o aluno na escola, em prejuízo financeiro desta, haveria muito mais preceito constitucional a proteger na última hipótese do que na primeira.
Concessa vênia, registramos brevemente nossa posição em contrário, o que decorre de simples análise do texto constitucional. A “livre iniciativa” é tão direito-fundamento quanto o “acesso à educação”. Aduzem assim os artigos da Carta Magna, verbis:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, (...) tem como fundamentos:
(...)
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;”
“Art. 6º São direitos sociais a educação, (...), na forma desta Constituição.”
Bem se vê que a “livre iniciativa” tem respaldo nos preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, enquanto ao “acesso à educação” estatuiu-se o caráter de garantia fundamental, portanto, ambos são direito-fundamento e mereceriam tratamento igualitário.
Data vênia, a egrégia Corte superior deveria ter analisado a questão no plano da repercussão geral, já que seu alcance abrange instituições privadas em todo território nacional e o prejuízo decorrente do inadimplemento escolar irradia efeitos sobre vários outros setores, muitas vezes maior do que o prejuízo suportado pelo discente moroso. Quando a rede privada fecha as portas, gera milhares de desempregos, eleva os prejuízos de arrecadação tributária do Estado e compromete o adimplemento contratual dessas escolas com seus fornecedores. Por outro lado, os inadimplentes das escolas sofreriam, apenas, (justamente, diga-se de passagem) a retenção de seus documentos administrativos até ulterior solução do problema.
Mas, segregada a discussão, resta inferir que estão subvertidos os princípios e fundamentos que esteiam a Teoria Geral dos Contratos, restando apelar para regra da responsabilidade objetiva (extracontratual), consoante passamos a abordar.
IV – OS PARÃMETROS DA RELAÇÃO CONTRATUAL EDUCACIONAL
Do ponto de vista contratual, a prestação de serviços educacionais pode perfeitamente se enquadrar nos artigos 593 e seguintes do Código Civil, que disciplinam os contratos de prestação de serviço em geral, excluídos os tratados pela CLT e por demais leis especiais. Como não vige qualquer regra específica sob o contrato de ensino, a atividade subsume-se às regras da lei civil, com observância das normas supletivas do CDC e da LDB.
A teoria geral dos contratos tem, como postulados, os princípios que orientam e norteiam as relações jurídicas; são eles: a função social, a boa-fé, o força obrigatória, a autonomia da vontade privada e o equilíbrio na relação material. Cabe aqui uma análise mais detida de quatro dos cinco princípios.
A função social dos contratos de prestação de serviços educacionais possui um fim em si mesmo, que é o de contribuir para formação cultural e a consciência cidadã do estudante, facilitando seu ingresso no mercado de trabalho.
A entrega do serviço é caracterizada pela existência de um plano curricular de ensino, um projeto pedagógico para cada fase educacional, a utilização de recursos educativos, a interação psico-social com os demais alunos, incentivos a projetos de pesquisa e investigação e, principalmente, através das aulas ministradas por professores formados e capacitados.
Neste prisma, as instituições privadas de ensino auxiliam o Estado na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sublimando seu grau de importância sócio-econômica, de modo que, a precariedade de seus serviços compromete toda a estrutura de ensino do país.
Ao não honrar os compromissos financeiros assumidos, os responsáveis pelo adimplemento da obrigação atentam contra a função social do contrato ao qual eles mesmos aderiram, e do qual esperam receber a prestação integral do serviço, além de se aproveitarem das vantagens econômicas que ele oferece sem a necessária contrapartida.
Sobre a função social dos contratos, inevitável ressaltar as lições do mestre MIGUEL REALE[13] a respeito:
“O ato de contratar corresponde ao valor da livre iniciativa, erigida pela Constituição de 1988 a um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito, logo no Inciso IV do Art. 1º, de caráter manifestamente preambular. Assim sendo, é natural que se atribua ao contrato uma função social, a fim de que ele seja concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público. Como uma das formas de constitucionalização do Direito Privado, temos o § 4º do Art. 173 da Constituição, que não admite negócio jurídico que implique abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Esse é um caso extremo de limitação do poder negocial, não sendo possível excluir outras hipóteses de seu exercício abusivo, tão fértil é a imaginação em conceber situações de inadmissível privilégio para os que contratam, ou, então, para um só deles. É em todos os casos em que ilicitamente se extrapola do normal objetivo das avenças que é dado ao juiz ir além da mera apreciação dos alegados direitos dos contratantes, para verificar se não está em jogo algum valor social que deva ser preservado. Como se vê, a atribuição de função social ao contrato não vem impedir que as pessoas naturais ou jurídicas livremente o concluam, tendo em vista a realização dos mais diversos valores. O que se exige é apenas que o acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade, mas represente um dos seus meios primordiais de afirmação e desenvolvimento.”
No mesmo sentido segue o princípio da boa-fé. Os pais, responsáveis pelo pagamento, ou os próprios alunos que contratam os serviços educacionais da rede privada, devem ter em mente que assumirão obrigações financeiras compatíveis com os serviços prestados, com as quais se vinculam até o término do contrato.
Não se imagina que o contratante, dessa posição, vislumbre lesar ao credor legalmente estabelecido (prestador do serviço), sob o pretexto de que a malsinada Lei Federal nº 9.870/99 tutela o seu direito de dar continuidade ao serviço, independentemente da continuidade de sua contraprestação. Aduz o artigo 422 do Código Civil, in verbis: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Consagrou o legislador de 2002 o instituto da boa-fé como parâmetro de confiança mútua na relação contratual. Como prenuncia Ernesto Wayar[14]: "Cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade".
Desta forma, a inadimplência desmotivada dos contratantes para com os prestadores do serviço educacional, laboram contra a boa-fé, pois frustram as expectativas do contratado em relação à concreção do negócio firmado.
Por sua vez, o princípio da força obrigatória dos contratos é priorado da autonomia da vontade privada e assim se estabelece como núcleo central das relações contratuais, já que ninguém é obrigado a contratar (Art. 5º, II, CF/88), mas uma vez contratado, deve respeitar as regras estabelecidas, em nome da segurança jurídica das relações sociais.
Nessa perspectiva, considerando que os contratos são, via de regra, acordos bilaterais de vontade, nos quais as partes convergem suas vontades para a obtenção de um fim patrimonial específico – que pode se concretizar na criação, modificação ou extinção de direitos e obrigações, desde que haja efetiva possibilidade de apreciação econômica dos mesmos –, uma vez convencionados os limites do contrato ficam as partes vinculadas às vontades que as uniu.
Quando os pais, responsáveis ou os próprios alunos contratam os serviços da rede privada de ensino, espera-se o cumprimento integral da relação assumida, resguardando-se a essência da autonomia da vontade de negociar, existente no ato da assinatura do contrato. A regra de ouro é, portanto, o adimplemento das obrigações avençadas.
Disciplinar o cumprimento das obrigações foi papel designado, primordialmente ao Código Civil, que no capítulo destinado aos Direitos das Obrigações, urde diversos mecanismos legais para forçar o inadimplente a honrar o compromisso, verbis:
“Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível.”
“Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”
“Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.”
“Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”
Mas ao Código de Processo Civil também foi dada a responsabilidade de tutelar, processualmente, a responsabilidade pelo cumprimento da obrigação, e no seu artigo 461 assim estatuiu, in litteris:
“Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.”
Todos esses dispositivos legais refletem o interesse do legislador em preservar o dever de cumprimento das obrigações firmadas em contrato. É, como foi dito, um mecanismo de efetivação da segurança jurídica. Se a todas as relações contratuais fossem dado o direito de descumprir voluntariamente a obrigação, sérios riscos correriam os fundamentos da responsabilidade contratual e o livre comércio.
A propósito da força obrigatória, o legislador também fez prever que, em casos extremos, nas relações bilaterais comutativas, como na espécie contratual em estudo, o prejudicado pode exercer seu direito de retenção e/ou retaliação ao cumprimento da sua obrigação, condicionando-a, ao cumprimento da parte adversa, é a chamada exceção de contrato não cumprido, ex vi dos seguintes artigos do NCC, in verbis:
“Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.”
“Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.”
Por esse raciocínio é possível concluir, que os responsáveis pela obrigação financeira do contrato de ensino, estariam sujeitos à aplicação da regra de exceção, permitindo-se que o prestador do serviço, no mínimo, retivesse documentos administrativos do aluno inadimplente. Como em outras situações semelhantes, em contratos de prestação de serviços, verbi gratia, o de hospedagem, em que o hoteleiro pode reter a bagagem do hóspede para obrigá-lo ao pagamento. O NCC é rico em outros exemplos, in verbis:
“Art. 571. (...)
Parágrafo único. O locatário gozará do direito de retenção, enquanto não for ressarcido.”
“Art. 644. O depositário poderá reter o depósito até que se lhe pague a retribuição devida, o líquido valor das despesas, ou dos prejuízos a que se refere o artigo anterior (...).”
“Art. 1.423. O credor anticrético tem direito a reter em seu poder o bem, enquanto a dívida não for paga; (...).”
Mas, lamentavelmente, o STF, ao declarar a constitucionalidade do artigo 6º, da indigitada “lei do calote”, que afasta a possibilidade de retenção dos documentos do aluno inadimplente, deixou também desprestigiada a norma de exceção de contrato não cumprido, rechaçando a aplicação do Código Civil nesses casos, especificamente. Donde se conclui pelo ferimento ao princípio da força obrigatória que, nos contratos educacionais terá deixado de existir.
Admitir tal situação subverte a classificação jurídica dos contratos de prestação de serviços educacionais, migrando da categoria de “comutativo” para “aleatório”, pois um dos lados (o prestador do serviço) passará a assumir os riscos do negócio.
Por fim, quanto ao princípio do equilíbrio contratual, entende-se como um dever genérico e um elemento natural das relações contratuais, pois em tempos em que se consagram a isonomia e igualdade, nada mais derivado desta percepção do que estabelecer contratos que privilegiem o equilíbrio, não só do ponto de vista financeiro, mas também, obrigacional.
Nos contratos escolares, as partes aquiescem ao seu conteúdo econômico e assumem o ônus do serviço, que varia conforme a exigência da demanda, por ensino de qualidade. Quanto mais qualidade de ensino o ofertante dispuser, mais oneroso será o contrato, em razão dos custos para manter o padrão exigido pelo contratante. Essa é mais uma vantagem estatuída pela livre concorrência.
Destarte, não havendo desequilíbrio de forças nas relações obrigacionais contratadas, não há nada que justifique a inadimplência voluntária, que autorize a aplicação da Lei Federal nº 9.870/99, sendo, pois, uma verdadeira afronta ao próprio princípio, uma vez que a relação de forças será comprometida, com a obrigação da escola em prestar o serviço gratuitamente.
De certo que o direito civil contemporâneo consagrou a figura da Teoria da Imprevisão, para redimensionar a aplicação do equilíbrio contratual. Mas essa teoria se experimenta com regras definidas em um rol taxativo, descritas especificamente em dois artigos, in verbis:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Percebe-se que, na redação do artigo 317, o legislador reservou ao Poder Judiciário, como resultado da função social do contrato, a possibilidade de rever o conteúdo econômico pactuado, de modo a adequá-lo a uma realidade que se instaurou a posteriori da assinatura. Noutras palavras, em caso de situação superveniente ao termo firmado, o juiz, verificando o desajuste financeiro buscará a aplicação do equilíbrio desejável pelo sistema.
E mesmo quando menciona a possibilidade de resolução por onerosidade excessiva, não condiciona a que uma das partes fique obrigada ao cumprimento de qualquer modo. Ora, por esse raciocínio, evidencia-se a possibilidade de responsabilização objetiva do Estado a qual passamos discorrer.