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Inadimplência na rede privada de ensino e responsabilidade civil do Estado

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Parecer defende que o Estado deve indenizar as escolas privadas que foram obrigadas, por lei, a manter contratos com alunos inadimplentes. Alega-se que o Estado impõe danos financeiros a tais empresas, ao exigir que assumam os encargos de educação gratuita.

ESTUDO: PARECER JURÍDICO

OBJETO: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

ORIGEM: INADIMPLÊNCIA NAS ESCOLAS PRIVADAS

DATA: 03/2009

CLIENTE: COLÉGIO SALOMÉ BASTOS E OUTROS

EMENTA: Relatório. Descrição e Delimitação do Objeto de Estudo. Inadimplência Escolar. Rede Privada de Ensino. Impossibilidade de Retenção de Documentos. Impossibilidade de Restrição ao Acesso às Aulas e às Avaliações. Impossibilidade de Constrangimento do Aluno. Lei n° 9.870/99. Parecer. Fundamentos Constitucionais da Educação e da Prestação de Serviços Educacionais. A Relação de Consumo e as Regras de Direito Privado. Os Princípios Contratuais e a Exceção de Contrato não Cumprido. A Função Social do Contrato de Educação. O Nexo Causal e a Responsabilidade Civil do Estado pelo Inadimplemento das Obrigações Escolares da Rede Privada. Responsabilidade Civil do Estado nas atividades Legislativa e Executiva de Ensino. A LDB e o entendimento dos tribunais superiores. Conclusão. Parâmetros Técnicos para o manejo das Ações de Reparação Civil contra o Estado.


RELATÓRIO

Trata-se de consulta jurídica formulada por um grupo de instituições privadas de ensino do estado do Ceará, liderada e encartada pelo Colégio Salomé Bastos[1], sobre possível Responsabilidade Civil Objetiva do Estado pela inadimplência financeira na prestação de serviços de ensino, na rede privada de educação, com assento nas seguintes proposições:

1ª) O Estado pode ser responsabilizado pela inadimplência causada por alunos à rede privada de ensino, em face da restrição de medidas administrativas impostas pelo artigo 6°, da Lei n° 9.870/99?

2ª) As normas legislativas e as resoluções executivas de ensino violam os fundamentos da livre iniciativa e da não intervenção do Estado na iniciativa privada?

3ª) A obrigação de prestar serviço educacional gratuito pode ser extensiva à rede privada?

4ª) Há colisão de Direitos Fundamentais entre o acesso à educação e os princípios gerais da atividade econômica?

O desafio proposto pelos solicitantes é grandioso, ensejando discussão aprofundada que projeta o parecer jurídico no contexto social, político e econômico, antes de ser meramente jurídico.

A consulta se origina em razão dos crescentes índices de inadimplência financeira que atingem as escolas privadas, sobretudo depois de 1999, data que coincide com a edição da Lei Federal nº 9.870/99[2] que, de certo modo, contribuiu para que o índice de mal pagadores aumentasse assustadoramente, provocando o encerramento das atividades de mais de quatrocentos colégios e estabelecimentos educacionais privados no estado do Ceará, na última década, segundo dados divulgados pela Associação Cearense de Pequenas e Médias Escolas (ACEPEME) e pela Associação das Escolas de Fortaleza (AEF).[3] Mas este é um fenômeno que não se restringe ao nosso estado.[4]

Referida lei chancelou, de forma irrecorrível, a obrigatoriedade das instituições privadas manterem em seus quadros, durante todo o ano letivo, os alunos que estejam com pendências para com suas obrigações financeiras, sem que, contra eles, possa adotar qualquer medida de caráter administrativo ou pedagógico, tais como: retenção de documentos e suspensão das aulas, para ficarmos nesses dois exemplos.

Disciplina a lei, in verbis:

“Art. 6º São proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento, sujeitando-se o contratante, no que couber, às sanções legais e administrativas, compatíveis com o Código de Defesa do Consumidor, e com os arts. 177 e 1.092 do Código Civil Brasileiro, caso a inadimplência perdure por mais de noventa dias.

§ 1º O desligamento do aluno por inadimplência somente poderá ocorrer ao final do ano letivo ou, no ensino superior, ao final do semestre letivo quando a instituição adotar o regime didático semestral.

§ 2º Os estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior deverão expedir, a qualquer tempo, os documentos de transferência de seus alunos, independentemente de sua adimplência ou da adoção de procedimentos legais de cobranças judiciais.”

A justificativa é a de que o dever social da escola é formar os caracteres educacionais do estudante, independentemente da contraprestação financeira assumida, muitas vezes, por seus pais. Defendem os especialistas do Governo em políticas educacionais, que, em se tratando dos discentes de ensino fundamental e médio, os contratos são estabelecidos entre seus responsáveis e a escola, portanto, não poderiam constranger os alunos a arcarem com obrigações que não são de sua responsabilidade, além do fato de haver mecanismos alternativos de cobrança, previstos na legislação.[5]

Sem poder adotar qualquer medida restritiva ao alunado, sob pena de levá-lo ao prejuízo pedagógico, as escolas privadas se viram de mãos atadas, obrigadas a dar continuidade à relação contratual assumida, em detrimento de seus custos operacionais. Pior, à medida que se espalhou a notícia da aplicação da referida lei, os (ir)responsáveis financeiros, mesmo os que costumavam honrar seus compromissos, começaram a inadimplir despreocupadamente com os pagamentos, amparados que estavam pela lei.

Somente nos últimos dois anos, o estado do Ceará assistiu assombrado o fechamento de três instituições seculares de ensino, todas pelos elevados índices de inadimplência: o Colégio Marista Cearense, o Colégio Stella Maris e o Colégio Dorotéias, bancos escolares pelos quais passaram vários governadores do estado e inúmeras lideranças políticas e intelectuais. Seus fechamentos foram silenciosos, sem qualquer intervenção do Estado, ou sem qualquer ensaio de resistência pública.

Para não ficarmos apenas nos números alencarinos, segundo dados do Semesp (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo), publicados no Boletim Informativo n° 41, da I2Credit, o percentual de inadimplência no ensino superior atingiu 34,5% (trinta e quatro, cinco por cento), um aumento de 23% (vinte e três por cento) em relação ao ano de 2007. Este registro implica dizer que a crise não é limitada à região mais pobre do país, ela é nacional.

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É em meio a este cenário caótico que desenvolvemos nosso estudo, que culminou no presente parecer e serve de alento aos solicitantes, pelo menos do ponto de vista de solução jurídica, com a sugestão do ajuizamento de ação de responsabilidade civil.


PARECER

I – FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA EDUCAÇÃO

Os fundamentos básicos da educação no Brasil estão, obviamente, amparados na Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 6º a enquadra como um Direito Social, o que equivale ao Direito Fundamental de 2ª geração, nas lições do jurista tcheco KAREL VASAK[6], mais tarde estruturada por NOBERTO BOBBIO[7]. Disciplina assim o referido artigo, verbis:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

E por ser um Direito Social, a Carta Política quis distribuir a responsabilidade pela missão educacional às escolas, à sociedade e à família, como apregoado no artigo 205, in verbis:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Numa análise mais empírica, parece residir na redação do artigo uma mens legislativa voltada para a co-responsabilização na formação educacional no país. Portanto, uma responsabilidade solidária, ao invés de uma responsabilidade derivada. Porém, essa não pode ser a leitura correta.

É possível até, que em razão disso, se tenha estabelecido a ideia que culminou na elaboração do artigo 6º, da já mencionada Lei Federal nº 9.870/99, delegando à iniciativa privada o ônus de suportar os custos educacionais, exercendo a tal “responsabilidade solidária”.

A sentença “(...) com a colaboração da sociedade (...)”, empregada no artigo 205, não quer supor que será ela responsável conjuntamente com o Estado pela educação do povo brasileiro, apenas quer supor que criará ou facilitará a criação de mecanismos de suportes que permitam que a educação seja fonte primária de interesse no desenvolvimento humano do país. Uma dessas fontes sociais advém da iniciativa privada, através das escolas e instituições de ensino, criadas, sobretudo, para o amparo à rede pública que, como se sabe, é incapaz de sozinha atender a demanda.

Desta forma, não é admissível que se transfira à iniciativa privada o ônus de “sustentar” a educação como se houvesse uma responsabilidade solidária com o Estado. O ensino gratuito só é admissível na rede de ensino oficial, obrigação, aliás, exclusivamente conferida ao poder público, consoante definem os seguintes artigos da constituição, ipsis litteris:

“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

(...)

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;”

“Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria.”

Este dever que o Estado tem de ofertar ensino gratuito na rede pública é um direito público subjetivo, com forte vínculo no exercício da cidadania, que se não for estruturado pela administração pública, poderá gerar sanções de ordens administrativa, cível e, até mesmo, criminal. Rezam os parágrafos 1º e 2º, do artigo 208, da Carta Política, verbis:

“§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.”

Percebe-se de pronto que o dirigismo constitucional delegou ao poder público, em caráter de exclusividade, a obrigação de ofertar e manter o ensino gratuito no país. Portanto, não incide sobre a iniciativa privada a obrigação de manter alunos estudando gratuitamente.

A prestação do serviço educacional, nesses termos, é dicotômica e compreendida entre o serviço público e o privado, ou seja, o público estruturado nas bases dos mencionados artigos 206 e 208 da CF/88 e o privado com bases no artigo 209 da CF/88. Neste ponto assevera a Lei Federal nº 9.394/96, que instituiu as Diretrizes e Bases da Educação – LDB que, verbis:

“Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

(...)

V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;”

No que se reporta ao custeio, o ensino público sobrevive do repasse da receita arrecadada com impostos, consoante definem o artigo constitucional 212 e seus parágrafos, litteris:

“Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

(...)

§ 3º - A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, nos termos do plano nacional de educação.

§ 4º - Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários.

§ 5º A educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação recolhida pelas empresas na forma da lei.

§ 6º As cotas estaduais e municipais da arrecadação da contribuição social do salário-educação serão distribuídas proporcionalmente ao número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino.

E o privado, com recursos próprios, conforme define a LDB, in verbis:

“7º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

(...)

III - capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal.”

Desta feita, é a livre iniciativa de mercado que regulará o serviço de ensino privado, com bases na lei da oferta da procura, impulsionada, com recursos próprios, ou oriundos da iniciativa privada, ou ainda, mediante programas de financiamento estudantil, como no caso do FIES. Toda essa estrutura de aporte financeiro tem assento nos princípios da valorização do trabalho, da livre iniciativa e da livre concorrência, como definem os seguintes artigos da CF/88, in verbis:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;”

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;”

“Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;

II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”

Sendo assim, é imperativa a dissolução de obrigações entre as duas redes de ensino, que são idênticas apenas no plano da natureza jurídica da atividade, mas que diferem totalmente em seus regimes jurídicos. As duas coexistem para o fim único de formação educacional.

As escolas privadas são empresas como outras quaisquer, estruturadas em contratos sociais específicos, com compromissos tributários e trabalhistas, com o fardo adicional da fiscalização dos entes administrativos do Estado, responsáveis pela educação, tais como o Ministério da Educação e as Secretarias de Educação, além dos Conselhos de Educação e os Tutelares, para não mencionar as entidades sindicais. Por fim, ainda estabelecem relações comerciais paralelas aos serviços que prestam, e que do sucesso financeiro deles dependem.

Assim, impingir às escolas privadas a obrigação de suportar a inadimplência sem que administre sanções em contrário, compromete a capacidade de autofinanciamento da rede, violando frontalmente os princípios gerais da atividade econômica e da livre iniciativa, pois as tornam ingerenciáveis do ponto de vista financeiro, ocasionando a perda de postos de trabalho e, nos casos mais graves, o fechamento dos estabelecimentos.

Ademais, as autoridades públicas não podem olvidar a importância da rede privada de ensino para a economia nacional. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas – FGV, publicados em 2005[8], somente entre os anos de 2004 e 2005, a educação privada movimentou cerca de R$ 35, 1 bilhões de reais no país, o equivalente a 1,3% (um, três por cento) do Produto Interno Bruto – PIB, além de ter gerado mais de 600 mil novos empregos diretos e mais de 1 milhão de novos empregos indiretos.

Somente no Ceará, segundo dados da Secretaria de Educação - SEDUC[9], as escolas particulares representam 21,32% do Ensino Infantil, 13,37% do Ensino Fundamental e 32,41% do Ensino Médio; números expressivos que representam parcela considerável das vagas existentes.

Ignorar esses números é desdenhar da importância econômica que a escola privada tem na própria história do ensino no Brasil, para além de ignorar a iminente crise social que bate à porta do sistema educacional.


II – A INTERPRETAÇÃO DO JUDICIÁRIO

A discussão em torno do assunto ganhou contornos draconianos, quando o egrégio Supremo Tribunal Federal, nos autos das ADin’s nº 1.117, 1.176, 1.236 e 1.350, todas movidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, entendeu serem constitucionais redações de dispositivos semelhantes ao artigo 6º, da Lei Federal nº 9.870/99, inseridas nas Medidas Provisórias de nº 524, 575 e 612, todas de 1994.

Mutatis Mutandis, entendeu a suprema instância que a ressalva de não levar o alunado ao constrangimento moral da cobrança, reveste-se de caráter constitucional que preserva a dignidade da pessoa humana. Porém, registre-se o dissenso no voto de alguns ministros, aqui destacado o do então Ministro Relator da Adin nº 1.117-1/DF, Paulo Brossard:

“É preocupante o cenário educacional brasileiro, sobretudo, no que se refere ao exercício da atividade por entes privados (...) Neste particular, a Medida Provisória nº 524 em apreço, deve ser fulminada no texto onde proíbe as escolas, por motivo de inadimplência dos alunos, de indeferir a renovação de matrícula. É uma coisa espantosa e atenta contra o cerne da educação, porque consagra, na escola, o calote, a desonestidade, a ilicitude. Fiquei de cabelos eriçados quando defrontei esse dispositivo. Como se pode consagrar isso em um ato de força de lei?”

Entretanto, em que pese o laborioso entendimento esboçado, está consagrado naquela casa superior, que redações como a contida no artigo 6º da referida lei, possuem interpretação conforme o texto constitucional.

O máximo que se admite, no entendimento do pretório excelso, é a não renovação da matrícula, consoante se abstrai do julgado abaixo, oriundo da 1ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça – STJ, nos autos do REsp n° 951206, publicado no D.J.U. em 03/03/2008, tendo como relator o excelentíssimo Ministro José Delgado:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. OMISSÃO NA CORTE A QUO NÃO SANADA POR EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ADUÇÃO DE OFENSA A NORMAS LEGAIS AUSENTES NA DECISÃO ATACADA. SÚMULA Nº 211/STJ. INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE ENSINO SUPERIOR. INADIMPLÊNCIA. REMATRÍCULA. PRECEDENTES. ANÁLISE DE OFENSA A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE (...) 2. O acórdão a quo indeferiu matrícula em razão de inadimplência da recorrente (...) 4. A jurisprudência do STJ envereda no sentido de que: “a Constituição Federal, no art. 209, I, dispõe à iniciativa privada o ensino, desde que cumpridas as normas gerais da educação nacional. A Lei 9.870/99, que dispõe sobre o valor das mensalidades escolares, trata do direito à renovação da matrícula nos arts. 5° e 6°, que devem ser interpretados conjuntamente. A regra geral do art. 1.092 do CC/16 aplica-se com temperamento, à espécie, por disposição expressa da Lei 9.870/99. O aluno, ao matricular-se em instituição de ensino privado, firma contrato oneroso, pelo qual se obriga ao pagamento das mensalidades como contraprestação ao serviço recebido. O atraso no pagamento não autoriza aplicar-se ao aluno sanções que se consubstanciem em descumprimento do contrato por parte da entidade de ensino (art. 5° da Lei 9.870/99), mas está a entidade autorizada a não renovar a matrícula, se o atraso é superior a noventa dias, mesmo que seja de uma mensalidade apenas (...) a regra dos arts. 5° e 6° da lei 9.870/99 é a de que o inadimplemento do pagamento das prestações escolares pelos alunos não pode gerar a aplicação de penalidades pedagógicas, assim como a suspensão de provas escolares ou retenção de documentos escolares, inclusive para efeitos de transferência a outra instituição de ensino. Entretanto, no afã de coibir abusos e de preservar a viabilidade financeira das instituições particulares de ensino, a lei excluiu do direito à renovação da matrícula (rematrícula), os alunos inadimplentes. 'A negativa da instituição de ensino superior em renovar a matrícula de aluno inadimplente, ao final do período letivo, é expressamente autorizada pelos arts. 5° e 6°, § 1°, da Lei 9.870/99' (...) 6. Agravo regimental não-provido.”

E, diga-se de passagem, à guisa do entendimento expendido no julgado acima, em causa está a “inadimplência” e não a simples “mora”. É que como observou aquela Colenda Turma, o artigo 6º, da Lei nº 9.870/99, condiciona a não rematrícula somente: “(...) caso a inadimplência perdure por mais de noventa dias.”

Ou seja, menos que esse prazo de atraso, não será considerado inadimplemento absoluto, mas sim, relativo. Neste ponto, é imperativo distinguir os dois institutos observando as lições de NELSON ROSENVALD[10]:

“Enquanto o inadimplemento absoluto resulta da completa impossibilidade de cumprimento da obrigação, a mora é a impossibilidade transitória de satisfazer a obrigação (...) a fonte imediata da mora é o atraso (...) o inadimplemento absoluto (...) equipara-se ao descumprimento definitivo (...) Em síntese, não basta uma diminuição no interesse do credor pela prestação em face da infração ao combinado; fundamental é a completa perda da necessidade e utilidade da coisa em face do descumprimento.”

O resultado prático desse raciocínio é que, se ao final do ano letivo (no caso das escolas), ou do semestre letivo (no caso das IES), o aluno estiver em situação de mora, portanto, transitoriamente tiver deixado de honrar o cumprimento de uma ou duas mensalidades, ou mesmo uma mensalidade, por até 90 (noventa) dias, o estabelecimento de ensino ainda será obrigado a rematriculá-lo. É como entende outra Egrégia Turma do STJ, a 2ª Turma, no julgado do REsp de nº 660.439/RS, da lavra da excelentíssima Ministra Relatora Eliana Calmon, publicado no DJU em 27/06/2005:

“ENSINO PRIVADO. FALTA DE PAGAMENTO DE 2 MENSALIDADES E RENOVAÇÃO DE MATRÍCULA. INTELIGÊNCIA DO ART. 6º DA LEI 9.870⁄99. Trata-se de recurso especial interposto pela UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS, com fulcro na alínea "a" do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. O impedimento à renovação de matrícula só pode ser realizado se o aluno estiver com pelo menos 3 prestações em atraso. A resolução depende de intervenção judicial, não podendo ser efetivada de mão própria. Recurso provido”

O que impressiona em toda essa discussão, é que o Estado parece ignorar o fato de que não há mecanismos efetivos para recuperação desse prejuízo financeiro, uma vez que o judiciário míngua a cada dia pela falta de estrutura. O processo de execução, por seu turno, mesmo depois das reformas introduzidas pela Lei n° 11.382/06 possui ferramentas falidas de cogência ao devedor.

Além do mais, a legislação infra-constitucional não admite repercussão pessoal na esfera jurídica do devedor, somente a patrimonial.[11] Noutras palavras, o devedor só pode arcar com o pagamento se possuir recursos ou patrimônio para tal, caso contrário, arquiva-se o processo.

Não bastasse isso, os técnicos dos órgãos de Defesa e Proteção ao Consumidor (DECONS e PROCONS) de todo o país estão firmando entendimento de que, por se tratar de uma prestação de serviço atípica, os nomes dos pais e/ou dos alunos devedores não podem ser incluídos nos cadastros de inadimplência do Serviço de Proteção ao Crédito - SPC. Ou seja, o nome fica imaculado para que possam assumir novos compromissos na praça. Com tudo isso, o setor não tem dúvidas de que tais amarras legais fadarão à falência em massa das escolas privadas, num verdadeiro incentivo ao calote.

Sobre os autores
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Mirla Mara Bastos Mangueira de Menezes

Bacharelada em Direito, Pedagoga e Advogada especializada em Direito Educacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale; MENEZES, Mirla Mara Bastos Mangueira. Inadimplência na rede privada de ensino e responsabilidade civil do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3158, 23 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/21135. Acesso em: 23 dez. 2024.

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