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Inadimplência na rede privada de ensino e responsabilidade civil do Estado

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VI – DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELA INADIMPLÊNCIA NAS ESCOLAS PRIVADAS

 Diante do presente cenário estruturam-se as seguintes premissas:

 Considerando a declaração de constitucionalidade do artigo 6º, da referida Lei nº 9.870/99, exarada pelo STF, que inadmite a adoção de medidas administrativas ou pedagógicas contra o estudante, para constrangê-lo ao pagamento do serviço, tornando inviável qualquer discussão jurídica em sentido contrário;

a)            Considerando que para efeitos da lei em referência, os estabelecimentos de ensino privado são obrigados a permanecer com o aluno inadimplente durante todo o semestre ou ano letivo, sem nada poder adotar como medida administrativa;

b)            Considerando mais, que os dados estatísticos, erigidos pelos sindicatos das escolas privadas e órgãos especializados do próprio governo, comprovam o aumento da inadimplência após o advento da lei;

c)            Considerando por último, a inoperância do sistema executório e a “falência” das ferramentas de efetividade do Poder Judiciário, para que o empresário do ensino privado consiga reaver seu prejuízo só com a aplicação da legislação vigente;

 Surge viável, ao menos no plano teórico, a ilação da responsabilização objetiva do Estado, para se substituir na obrigação de reparar os danos oriundos da inadimplência.

 É que como salienta Augusto do Amaral Dergint[15]:

 "A responsabilidade estatal supõe pelo menos três elementos: 1) que um particular tenha sofrido um dano; 2) que o ato lesivo seja imputável ao Estado; 3) que haja relação de causa e efeito entre o dano sofrido e o ato lesivo."[16]

 O “particular” em questão pode ser compreendido como a escola privada, na qualidade de ente jurídico, ou o empresário da educação, titular da escola. O “ato lesivo” decorre da elaboração normativa proibitiva da aplicação de medidas administrativas e pedagógicas contra o aluno inadimplente, in casu, a malferida Lei n° 9.870/99. E a “relação de causa e efeito” está representada pelos dados estatísticos que comprovam o aumento de inadimplência nas mensalidades escolares e o fechamento de inúmeras escolas privadas, após a edição da lei.

 Talvez o cerne da questão - alguém haverá de indagar - seja o argumento contrário de que o Estado não terá provocado qualquer ato lesivo, porquanto não terá firmado qualquer contrato ou convênio de bolsa com o estabelecimento de ensino, que tenha deixado de honrar para resultar na inadimplência.

 É evidente que a relação contratual se estabelece entre o particular e a escola, numa prestação de serviços de natureza bilateral e comutativa, afastando, a priori, qualquer participação do Estado, a não ser como ente regulador da atividade. Nisso estariam corretos os críticos.

 No entanto, a dimensão de responsabilidade que se quer estabelecer entre o Estado e a iniciativa privada do ensino não reside na responsabilidade contratual, mas sim, na extracontratual, de natureza objetiva.

 Nesse contexto, quando a Constituição Federal definiu em seu artigo 209 que: “O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público” acabou por vincular as ações educacionais privadas aos atos administrativos, regulamentados por legislação específica, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB.

 Com isso, mesmo não participando do contrato primário entre o estudante e a escola, o Estado acaba por se integrar na relação comercial munido do poder genérico inerente à administração pública, conhecido como “poder de polícia”, em razão de ser ele o ente responsável por autorizar o funcionamento da escola, fiscalizá-la e puni-la, quando necessário.[17]

 À evidência disso, ressalta-se a redação do § 1°, do artigo 6°, da lei em debate:

“O desligamento do aluno por inadimplência somente poderá ocorrer ao final do ano letivo ou, no ensino superior, ao final do semestre letivo quando a instituição adotar o regime didático semestral.

 - grifamos -

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 Percebe-se que a norma cogente do Estado obriga a que as escolas privadas permaneçam com o aluno inadimplente durante todo o ano escolar, ou seja, os doze meses de prazo gerados entre uma matrícula e outra, ou os seis meses, no caso das instituições de ensino superior. Com isso, o Estado interfere na relação contratual, impedindo que o contrato seja resolvido pelo inadimplemento absoluto, consoante já abordamos alhures.

 Nesta sentada, é forçoso reconhecer o ato lesivo provocado por agentes do Estado que, na espécie, vem representado por edições do legislativo e decisões do judiciário. A propósito, Sylvia Zanella di Pietro[18] aduz com propriedade que: “(...) quando se fala em responsabilidade do Estado está se cogitando os três tipos de funções pelas quais se reparte o poder estatal: a administrativa; a jurisdicional e a legislativa.

 É o mesmo raciocínio de MARISA HELENA D’ARBO[19] que defende:

“A responsabilidade do Estado legislador surge como obrigação de responder pelo dano causado pela atividade legislativa, própria do Poder Legislativo, quando ilícita ou inconstitucional, quando particulariza seus efeitos ou quando é antijurídica (...) Sendo uno o poder soberano do Estado, deve ele responder pelos atos legislativos da mesma forma que res­ponde pelos atos administrativos e pelos jurisdicionais. Qualquer que seja a forma ou conteúdo dos atos do Estado, são eles frutos do mesmo poder e o tratamento dado a eles deve ser uniforme.”

 De certo que, no caso em debate, não há que se ventilar “ilicitude ou antijuridiciade” da Lei nº 9.870/99, pois não regula objeto ilícito ou antijurídico, vez que, a educação, como já amplamente abordado, é pedra angular do desenvolvimento social e fundamento do Estado Democrático de Direito. Também não há mais que se questionar sua “inconstitucionalidade”, pois como já versado, o STF a declarou constitucional. Resta, então, interpretar a atividade legislativa dessa norma como ato legislativo que particulariza, segrega, e não dá tratamento isonômico à atividade educacional privada.

 Se um dos caracteres da norma é ser abstrata, não pode ela particularizar seus efeitos, ou seja, não pode ela se direcionar a uma pessoa ou a um grupo específico de pessoas, impondo-lhes sacrifícios, porque se desnatura de seu propósito legislativo e passa a figurar como ato administrativo concreto. É como entende JOSÉ CRETELA JUNIOR[20]:

“Se a lei constitucional causar danos a seus destinatários, in genere, o Estado é irresponsável, porque o prejuízo reparte-se por todos. Se, entretanto, o dano for a um só, ou a restritís­simo número, deixa a lei constitucional de ser "lei em tese" para erigir-se em ato administrativo, e, nesse caso, o atin­gido pode recorrer aos tribunais, mediante os adequados re­médios jurídicos.”

 É a mesma linha de argumentação de J.J. GOMES CANOTILHO[21]

“Embora se costume argumentar a favor da irresponsabilidade do Estado por facto das leis com a ideia de a disciplina da lei ser geral e abstrata, deve ponderar-se que: (...) algumas leis, gerais e abstratas, podem vir impor encargos apenas a alguns particulares (leis fixadoras de vínculos ecológicos, urbanísticos, de nacionalização de bens etc.), violando quer o direito de propriedade quer o princípio da igualdade (restrições afectadoras do conteúdo essencial de um direito). Quer se trate de responsabilidade por actos legislativos ilícitos, quer por actos legislativos lícitos impositivos de sacrifícios especiais aos cidadãos (...) a responsabilidade por facto das leis não é um luxo mas uma exigência do Estado de Direito Democrático.”

 De tudo deduz-se que, mesmo sendo legítima e tendo sido declarada constitucional, a malfadada Lei nº 9.870/99 ofende o princípio constitucional da livre iniciativa privada, a exploração da atividade econômica, aos poderes inerentes ao direito de propriedade e aos princípios gerais do contrato. E de soslaio, cria regra de reserva de mercado em favor das escolas públicas, ao passo que obriga os estabelecimentos de ensino privado a suportarem o ônus do ensino “gratuito”.[22]

 Hoje, é perfeitamente possível deduzir o pensamento de um pai que queira matricular seu filho. Entre matriculá-lo na escola pública, de baixa qualidade, mas gratuita, e na escola particular, que lhe oferecerá melhor estrutura de ensino, mas que apesar de paga, poderá regatear o pagamento das mensalidades sem qualquer consequência, certamente optará pela segunda hipótese.

 A regra de ouro do artigo 37, §6º, da Carta Magna reside, irretorquivelmente, no fato de o legislativo e o judiciário constituírem órgãos integrantes do poder estatal e as decisões que tomaram em relação à Lei 9.870/99, provocaram e continuam a provocar danos irreparáveis aos destinatários dela.

 Portanto, esse desalinhamento da política nacional de educação atenta contra o fundamento da igualdade de todos perante os encargos públicos, pois, como já abordado, as escolas públicas possuem o lastro do financiamento público, mas as escolas privadas dependem do autofinanciamento. De modo que, ao impingir que esta categoria assuma os encargos de educação gratuita daquela, afronta a isonomia dos regimes jurídicos, e lhes impõem danos financeiros.

 Eis, pois, o nexo causal que irá justificar o dever de indenizar do Estado, pelo que nos alinhamos, de forma convicta, à ideia de que é possível avançar na pretensão reparatória em sede de Ação de Indenização por Perdas e Danos, ainda que as bases teóricas possam encontrar resistência no judiciário.[23] É que não se pode olvidar que se trata de uma questão espinhosa de viés político, e nessa perspectiva, nada melhor do que relembrar as lições de RONALD DWORKIN[24], para quem:

“Toda decisão, seja ela judicial ou não, será necessariamente política. Tal afirmativa parte do pressuposto de que o juiz, assim como qualquer indivíduo, é formado por uma gama de pré-conceitos, de pré-compreensões, de visões de mundo (...) Desta forma, não existe decisão neutra, mas antes, decisão imparcial. Sendo assim, o juiz, ao proferir uma sentença e, consequentemente, “optar” por uma das partes, realiza uma tarefa política.”


CONCLUSÃO

 VII – PARÂMETROS TÉCNICOS PARA O MANEJO DAS  AÇÕES DE REPARAÇÃO CIVIL CONTRA O ESTADO

 Cônscios da viabilidade de responsabilização do Estado, cumpre-nos destacar, em notas finais, os parâmetros técnicos para o manejo das eventuais ações judiciais que pretenderão intentar os estabelecimentos prejudicados.

 Os tópicos que se seguem vão definir os requisitos objetivos e subjetivos para proposição das eventuais ações, pelos quais assim se dividem:

a) REQUISITOS OBJETIVOS:

1)            Não serão legitimados a manejar a Ação de Reparação Civil, os estabelecimentos que não puderem provar o seu crédito, pois como delimitado nos artigos 221 e 223 do Código Civil: “O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor (...) Parágrafo único. A prova não supre a ausência do título de crédito, ou do original, nos casos em que a lei ou as circunstâncias condicionarem o exercício do direito à sua exibição.” Ou seja, o estabelecimento tem que ter em seu poder o contrato de prestação de serviços educacionais e pelo menos um título de crédito que vincule o aluno, ou o seu responsável, ao pagamento da mensalidade escolar;

2)            Não estarão legitimados também, os que não puderem comprovar, ao tempo do ingresso da ação, o inadimplemento absoluto do estudante ou de seu responsável, pois como define o artigo 397 do Código Civil, somente: “O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.” E prossegue o mesmo diploma legal, ao disciplinar em seu artigo 939 que: “O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro”. Assim, ao ajuizar a ação, a escola deverá anexar aos autos somente os contratos cujas obrigações já estejam vencidas há mais de 90 (noventa) dias, ou as que demonstrem a inviabilidade da recuperação do crédito perante o devedor primário;

3)            Não estarão legitimados ainda, os estabelecimentos que não comprovarem a constituição do devedor em mora, e as tentativas frustradas em receberem seus créditos, pois, consoante prever o artigo 189 do Código Civil: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. Também aduzem os artigos 333, I e 614 e incisos, do Código de Processo Civil que: “O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito (...) Cumpre ao credor, ao requerer a execução, pedir a citação do devedor e instruir a petição inicial: (...) II - com o demonstrativo do débito atualizado até a data da propositura da ação, quando se tratar de execução por quantia certa; III - com a prova de que se verificou a condição, ou ocorreu o termo.”. Tal comprovação pode ser feita por qualquer das medidas cautelares nominadas de Notificação Judicial, Protesto Judicial ou Interpelação Judicial, ou através da Notificação de Protesto e certidão cartorária de não quitação do débito, ou ainda, despacho interlocutório nos autos de processo judicial, determinando a suspensão ou o arquivamento do feito, por impossibilidade na localização de bens do devedor;

4)            Por fim, não estarão legitimadas a propor ação, as escolas que já tiverem ajuizado ações de cobrança ou execução, contra o devedor originário, e que ainda aguardam os resultados do processo judicial.

b) REQUISITOS SUBJETIVOS

1)            Não poderão demandar contra o Estado, os estabelecimentos educacionais que já não existam mais no plano jurídico, ou seja, que já tenham dado baixa nos registros perante a Junta Comercial e à Secretaria Estadual de Educação, pois o encerramento das atividades as desnaturam como credores do direito ao ressarcimento. De tal sorte aduz o artigo 308 do Código Civil: “O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratificado, ou tanto quanto reverter em seu proveito”. Para esses casos em especial, serão legitimados o administrador da massa falida, ou os que sucederam no direito ao crédito;

2)            Não poderão também demandar contra o Estado, os estabelecimentos educacionais que não estiverem regularmente inscritos e registrados oficialmente como sociedades empresárias, porquanto malferem a legitimidade subjetiva, conforme exegese do artigo 3º, do Código de Processo Civil: “Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade”;

 Tendo em vista a delimitação das ações conforme os parâmetros acima descritos, resta evidenciar que o ajuizamento deverá acontecer em sede de foro judiciário federal, pela competência em razão da matéria, consoante se abstrai do artigo 109, I, da Constituição Federal:

“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;”

 Certamente, por se tratar de matéria complexa e de direito individual homogêneo, resta afastada a competência do Juizado Especial Federal, pois consoante a Lei nº 10.259/01

“Art. 3º Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.”

§ 1º Não se incluem na competência do Juizado Especial Cível as causas:

I - referidas no art. 109, incisos II, III e XI, da Constituição Federal, as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, execuções fiscais e por improbidade administrativa e as demandas sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos;” - grifamos -

 Em razão do lugar, por se tratar de consulta jurídica de escolas privadas do estado do Ceará, o foro federal é o da circunscrição abrangida pela sede da escola, nos municípios cearenses. As sedes judiciárias federais no Estado abrangem as seccionais de Fortaleza, Sobral, Limoeiro do Norte e Juazeiro do Norte. No site da JF é possível localizar a abrangência das jurisdições www.jfce.jus.br/internet/subsecoes/juazeiroNorte/jurisdicao/jurisdicao.jsp .

 Certos de termos atendido aos postulados da consulta e sendo este o nosso parecer, nos despedimos rendendo os cumprimentos de estilo e nos colocando à inteira disposição para, em havendo interesse, patrocinarmos a causa em bases contratuais oportunamente acordadas.

Fortaleza, 8 de março de 2009.

Glauco Cidrack do Vale Menezes – OAB-CE nº 11.743

Mirla Mara Bastos M. de Menezes – OAB-CE nº 24.302

Sobre os autores
Glauco Cidrack do Vale Menezes

Mestre em Ciências Jurídico-Processuais pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza; professor de Direito Civil e Processo Civil da Faculdade Farias Brito; Advogado.

Mirla Mara Bastos Mangueira de Menezes

Bacharelada em Direito, Pedagoga e Advogada especializada em Direito Educacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Glauco Cidrack Vale; MENEZES, Mirla Mara Bastos Mangueira. Inadimplência na rede privada de ensino e responsabilidade civil do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3158, 23 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/21135. Acesso em: 22 nov. 2024.

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