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A autonomia dos peritos criminais

Agenda 28/07/2015 às 10:31

A Associação de Criminalística do Estado de Minas Gerais - ASCEMG, solicitou parecer acerca do alcance das autonomias descritas na Lei Nacional 12.030/2009, face às recentes modificações na legislação mineira aplicável à Polícia Civil de Minas Gerais.

De: Advocacia e Consultoria em Direito Público

Para: Associação de Criminalística do Estado de Minas Gerais - ASCEMG

Ref. Envia Parecer

Em: 12/04/2010

CONSULTA

A Associação de Criminalística do Estado de Minas Gerais - ASCEMG, solicita parecer acerca do alcance das autonomias descritas na Lei Nacional 12.030/2009, face às recentes modificações na legislação mineira aplicável à Polícia Civil.


1. DOS FATOS

1.1 – Em 17 de setembro de 2009 o União editou a Lei nº 12.030/2009 que “Dispõe sobre as perícias oficiais e dá outras providências”.

1.2 – Inspirado no legislador federal, o Estado de Minas Gerais editou a Lei Estadual nº 18.682/2009 em 28 de dezembro de 2009, deslocando a subordinação dos Peritos Criminais e Médicos Legais para a Superintendência de Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil.

1.3 – Logo em seguida, em 29 de dezembro de 2009, foi publicada a Resolução nº 7.196/2009 do Chefe de Polícia Civil, também tratando da subordinação dos Peritos Criminais (não menciona os Médicos Legais).

1.4 – Diante destes fatos, questiona-nos o consulente:


2. PARECER

Ab initio, precisamos “polir” nossos conceitos doutrinários a respeito da autonomia e suas espécies, para situarmos com mais propriedade o tema dentro dos institutos e princípios do Direito Administrativo:

2.1. Da Autonomia: Níveis e Espécies

Antes de mais nada, vejamos o significado do vocábulo “autonomia” dado pelo dicionário Aurélio (versão online):

“s.f. Faculdade de se governar por suas próprias leis, dirigir-se por sua própria vontade. Para um veículo a motor (navio, avião, automóvel etc.), distância que pode percorrer com o consumo total do combustível a bordo. Autonomia financeira, situação de um serviço cuja gestão financeira é independente daquela da coletividade pública que o criou e controla”.

(Dicionário Aurélio, endereço: http://www.dicio.com.br/autonomia, acessado em 30 de março de 2010)

O dicionário já reflete o significado de autonomia no senso comum, qual seja, como sinônimo de independência.

Porém a autonomia também pode ser classificada em níveis e espécies.

Em nível, classificando-a da menor para a maior autonomia.

Em espécie, classificamos p. ex., em autonomia política, administrativa, financeira, que na verdade são conseqüências/fundamentos dos poderes na sociedade humana.

Desta forma, o poder político requer autonomia política, a poder administrativo (disciplinar, de gestão e autogestão) requer autonomia administrativa, o poder econômico requer autonomia financeira e assim por diante.

Portanto, a autonomia, quando reconhecida pelos demais (sociedade) revela a existência de um poder constituído, por isso dissemos que a autonomia é uma característica do poder, mas não se confunde com este que é mais amplo.

No Direito Administrativo, quando nos referimos à autonomia, imediatamente lembramos dos conceitos de Descentralização e Desconcentração da Administração Pública.

Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Melo:

“Assim, diz que a atividade administrativa é descentralizada quando é exercida, em uma das formas mencionadas, por pessoa ou pessoas distintas do Estado. Diz-se que a atividade administrativa é centralizada quando é exercida pelo próprio Estado, ou seja, pelo conjunto orgânico que lhe compõe a intimidade. Na centralização o Estado atua diretamente por meio dos seus órgãos, isto é, das unidades que são simples repartições interiores de sua pessoa e que por isto dele não se distinguem. Consistem, portanto, em meras distribuições internas de plexos de competência, ou seja, em 'desconcentrações' administrativas. (...) (...) Tal desconcentração se faz tanto em razão da matéria, isto é, do assunto (por exemplo, Ministério da Justiça, da Saúde, da Educação etc.), como em razão do grau (hierarquia), ou seja, do nível de responsabilidade decisória conferido aos distintos escalões que corresponderão aos diversos patamares de autoridade (por exemplo, diretor de Departamento, diretor de Divisão, chefe de Seção, encarregado de Setor). Também se desconcentra com base em critério territorial ou geográfico (por exemplo, delegacia regional da Saúde em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro etc.). A aludida distribuição de competências não prejudica a unidade monolítica do Estado, pois todos os órgãos e agentes permanecem ligados por um sólido vínculo denominado hierarquia”.

(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 13ª ed., Malheiros, São Paulo:2000, p. 115-116, grifos nossos)

Com base nas explanações supra, já podemos tecer nossas primeiras considerações.

Primeiro, que a Segurança Pública é prestada diretamente pelo Estado de Minas Gerais através de seus órgãos, mais especificamente por suas polícias.

Há neste caso o fenômeno da Desconcentração.

Na Desconcentração, a autonomia dos órgãos inferiores é limitada, e será menor (ou nenhuma autonomia) na base da pirâmide e sendo máxima no topo.

Assim, o Estado de Minas Gerais (sempre considerando como pessoa única de Direito Público), representado por seu governador, possui a autonomia administrativa em seu âmbito mais completo.

Talvez não tenha total autonomia financeira (dependa de repasses da União para prestar serviços públicos), e tampouco terá autonomia política plena, pois a soberania é exercida exclusivamente pela União, ou seja, para outros estados estrangeiros a pessoa jurídica de Direito Público Internacional é o Brasil, representado por seu chefe político (de Estado), no nosso caso, do Presidente da República, jamais de um Estado da Federação.

Segundo, que tratando-se de Desconcentração do Serviço Público, o que existirá entre os órgãos será sempre uma hierarquia (ou Princípio da Hierarquia), desta forma a autonomia tanto maior quanto mais alto o escalão.

Neste ponto, valiosa a lição de Celso Antônio, vejamos:

“Hierarquia pode ser definida como vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões sucessivos, numa relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarca a subalterno. Os poderes do hierarca conferem-lhe uma contínua e permanente autoridade sobre toda a atividade administrativa dos subordinados. Tais poderes consistem no (a) poder de comando, que o autoriza a expedir determinações gerais (instruções) ou específicas a um dado subalterno (ordens), sobre o modo de efetuar os serviços; (b) poder de fiscalização, graças ao qual inspeciona as atividades dos órgãos e agentes que lhe estão subordinados; (c) poder de revisão, que lhe permite, dentro dos limites legais, alterar ou suprimir as decisões dos inferiores, mediante revogação, quando inconveniente ou inoportuno o ato praticado, ou mediante anulação, quando se ressentir de vício jurídico; (d) poder de punir, isto é, de aplicar as sanções estabelecidas em lei aos subalternos faltosos; (e) poder de dirimir controvérsias de competência, solvendo os conflitos positivos (quando mais de um órgão se reputa competente) ou negativos (quando nenhum deles se reconhece competente), e (f) poder de delegar competências ou de avocar, exercitáveis nos termos da lei”.

(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. Cit., p. 116-117, grifos nossos)

Portanto, a resposta da última questão do consulente (qual seja, “A Resolução nº 7.196/2009 é compatível com a legislação pertinente à matéria? Se há divergência, quais são os pontos contraditórios?”) dependerá de uma análise da estrutura administrativa do Estado de Minas Gerais, para verificarmos, se em algum momento a resolução infringiu o Princípio da Hierarquia, ou seja, se a Resolução nº 7.196/2009 determina que orgão que não seja superior hierárquico tenha Poder de Comando, Fiscalização, Revisão, Punição, Solução de Controvérsias e Delegação/Avocação de Competências.

É o que passaremos a analisar na seqüência.

2.2. Da Legislação em Debate

Pelo tamanho diminuto, citemos a Lei Nacional 12.030/2009 na íntegra, in verbis:

“LEI Nº 12.030, DE 17 DE SETEMBRO DE 2009.

Dispõe sobre as perícias oficiais e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o Esta Lei estabelece normas gerais para as perícias oficiais de natureza criminal.

Art. 2o No exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal, é assegurado autonomia técnica, científica e funcional, exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial.

Art. 3o Em razão do exercício das atividades de perícia oficial de natureza criminal, os peritos de natureza criminal estão sujeitos a regime especial de trabalho, observada a legislação específica de cada ente a que se encontrem vinculados.

Art. 4o (VETADO)

Art. 5o Observado o disposto na legislação específica de cada ente a que o perito se encontra vinculado, são peritos de natureza criminal os peritos criminais, peritos médico-legistas e peritos odontolegistas com formação superior específica detalhada em regulamento, de acordo com a necessidade de cada órgão e por área de atuação profissional.

Art. 6o Esta Lei entra em vigor 90 (noventa) dias após a data de sua publicação.

Brasília, 17 de setembro de 2009; 188o da Independência e 121o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Tarso Genro Paulo Bernardo Silva “(Grifos nossos)

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Ao nosso ver, o conteúdo da norma tem dois aspectos: (a) processual e (b) administrativo.

Do ponto de vista processual, o objetivo foi de garantir idoneidade aos laudos oficiais de natureza criminal, para dar mais firmeza à prova pericial, uma vez que será realizada, conforme segunda parte do art. 2º por concursados e com formação acadêmica na área de atuação, salvo raríssimas exceções.

Do ponto de vista administrativo, visa proibir definitivamente eventuais ingerências de superiores hierárquicos na convicção do perito criminal oficial.

Neste aspecto a lei tem muito pouco valor, pois outras normas (tais como o próprio Código Penal) já proíbem o abuso de poder, a advocacia administrativa ... etc.

Mas o que seria autonomia técnica, científica e funcional? Técnica pode ser considerada como o conjunto de métodos e processos da profissão.

Ninguém melhor que os próprios peritos, especialistas na área, para elaborar estes métodos, normalizar processos do trabalho pericial.

Portanto, de acordo com a Lei 12.030/2009, os regulamentos que disciplinam o ofício (no sentido de atividade) pericial, deverá ser elaborado por órgão da própria perícia, isto seria o significado de autonomia técnica.

Autonomia científica e funcional não passam de redundâncias para a autonomia técnica, vejamos os silogismos:

Portanto, autonomia técnica, científica e funcional, na prática possuem o mesmo significado e abrangência.

Diferente da autonomia administrativa que é muito mais ampla, envolvendo um âmbito de atuação superior à autonomia funcional.

Para verificar se existe autonomia administrativa, qual seja, aquela necessária para a gestão do órgão pericial, é indispensável uma análise da estrutura administrativa determinada na legislação estadual.

Pois a Lei Nacional 12.030/2009, traçou apenas as diretrizes, não bastando para encerrar a questão.

Será pela análise das leis estaduais que verificaremos a quem a Perícia Técnico-Científica está subordinada e o grau de subordinação/independência a Perícia Técnico-Científica possui.

Passemos agora para uma análise da Constituição Mineira, especificamente quanto às normas pertinentes à competência legislativa, bem como da organização do Estado e, conseqüentemente, da Polícia Civil, vejamos:

Art. 10 – Compete ao Estado:

(...) II – organizar seu Governo e Administração; (...)

VI – manter e preservar a segurança e a ordem públicas e a incolumidade da pessoa e do patrimônio;

XIII – dispor sobre sua divisão e organização judiciárias e divisão administrativa;

........................................................................

Art. 14 – Administração pública direta é a que compete a órgão de qualquer dos Poderes do Estado.

§ 3º – É facultado ao Estado criar órgão, dotado de autonomia financeira e administrativa, segundo a lei, sob a denominação de órgão autônomo.

§ 10 – A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e das entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante instrumento específico que tenha por objetivo a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade.

........................................................................

Art. 139 – À Polícia Civil, órgão permanente do Poder Público, dirigido por Delegado de Polícia de carreira e organizado de acordo com os princípios da hierarquia e da disciplina, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração, no território do Estado, das infrações penais, exceto as militares, e lhe são privativas as atividades pertinentes a:

I – Polícia técnico-científica;

II – processamento e arquivo de identificação civil e criminal;

III – registro e licenciamento de veículo automotor e habilitação de condutor.

Hierarquicamente posicionadas abaixo da Constituição Estadual, encontram-se a legislação complementar e ordinária.

Originariamente, a hierarquia vinha definida na Lei Estadual 5.406/69, vejamos:

Art. 61 - Ao Delegado de Polícia incumbe, além do exercício de funções na administração policial, a direção e a execução de serviços de polícia judiciária, de vigilância e administrativa na unidade respectiva, nos termos desta lei e regulamentos.

CAPÍTULO II

MÉDICO-LEGISTA

Art. 62 - O Médico-Legista é o servidor policial que tem a seu cargo os exames macroscópicos, microscópicos e de laboratório, em cadáveres e em vivos, para determinação da "causa-mortis" ou da natureza de lesões e a conseqüente elaboração de laudos periciais.

CAPÍTULO III

PERITO CRIMINAL ESPECIALISTA

Art. 63 - O Perito Criminal Especialista é o servidor policial que tem a seu cargo a realização de exames e análises relacionados com a física, química e biologia legais, e de perícias grafotécnicas, inclusive em documentos vazados em idiomas estrangeiros, aplicados à criminalística.

CAPÍTULO IV

PERITO CRIMINAL

Art. 64 - O Perito Criminal é o servidor policial que tem a seu cargo o trabalho especializado de investigação e pesquisa policial, que consiste em examinar peças, apurar evidências ou colher indícios em locais de crimes ou acidentes, ou em laboratórios, visando a fornecer os elementos esclarecedores para a instrução de inquéritos policiais e processos criminais.

CAPÍTULO V

PERITO DE TRÂNSITO

Art. 65 - O Perito de Trânsito é o servidor policial que tem a seu cargo trabalhos técnicos, que consistem em realizar exames periciais destinados a apurar causas e responsabilidades em acidentes de trânsito.

Art. 145 – A hierarquia no serviço policial é fixada do seguinte modo:

I – Secretário de Estado da Segurança Pública;

II – Dirigentes dos Órgãos Superiores da Polícia Civil;

III – Chefe de Departamentos Policiais e unidades equiparadas;

IV – Delegados de Polícia, observado em ordem descendente, o escalonamento da série de classes correspondentes;

V – Médicos-Legistas, Peritos Criminais Especialistas, Inspetores Gerais e Chefes de Serviços Policiais;

VI – Ocupantes das demais chefias policiais, na escala descendente de níveis de vencimentos; VII – cargos das demais classes policiais, segundo o mesmo critério consignado no item anterior.

Parágrafo único – Para desempate no grau de hierarquia, observar-se-á o seguinte:

I – em igualdade de cargo de chefia ou de classe, é considerado superior aquele que contar com mais antigüidade num ou noutro; II – quando a antigüidade de cargo ou classe for a mesma, prevalecerá a do cargo ou classe anterior e assim, sucessivamente, até o maior tempo de serviço na classe e, por fim, de idade”.

Posteriormente, veio a Lei Complementar Estadual nº 84 de 2005, disciplinando a hierarquia da carreira policial da seguinte forma:

“Art. 7º As carreiras policiais civis obedecem à seguinte ordem hierárquica:

I - Delegado de Polícia;

II - Médico Legista e Perito Criminal;

III - Agente de Polícia e Escrivão de Polícia;

IV - Auxiliar de Necropsia.

§ 1º A hierarquia e a disciplina são valores de integração e otimização das atribuições dos cargos e competências organizacionais pertinentes às atividades da Polícia Civil e objetivam assegurar a unidade técnico-científica da investigação policial.

§ 2º A hierarquia constitui instrumento de controle e eficácia dos atos operacionais, com a finalidade de sustentar a disciplina e a ética e de desenvolver o espírito de mútua cooperação em ambiente de estima, harmonia, confiança e respeito.

§ 3º A disciplina norteia o exercício efetivo das atribuições funcionais em face das disposições legais e das determinações fundamentadas e emanadas da autoridade competente, estimulando a cooperação, o planejamento sistêmico, a troca de informações, o compartilhamento de experiências e a desburocratização das atividades policiais civis.

§ 4º O regime hierárquico não autoriza imposições sobre o convencimento do servidor, desde que devidamente fundamentado, garantindo-lhe autonomia nas respostas às requisições”.

Já a Lei Estadual 18.682 de 28 de dezembro de 2009, apesar de não tratar especificamente da estrutura hierárquica da Polícia Civil, dispôs contrariamente à norma anterior, estabelecendo que os Peritos Criminais estão subordinados administrativamente à Superintendência de Polícia Técnico-Científica, in verbis:

“Art. 22. A Lei Delegada nº 112, de 2007, fica acrescida do seguinte art. 20-A:

"Art. 20-A. A Superintendência de Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil é órgão técnico e de pesquisa, de caráter permanente, constituído pelo Instituto de Criminalística e pelo Instituto Médico Legal, e integra o Conselho Superior de Polícia Civil.

§ 1º A Superintendência de Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil será dirigida por servidor titular do cargo de Perito Criminal ou de Médico Legista que esteja em atividade e no nível final da carreira.

§ 2º Os Peritos Criminais e Médicos Legistas lotados nas Seções Técnicas Regionais de Criminalística, nos Postos de Perícias Integradas e nos Postos Médicos-Legais estão subordinados administrativamente à Superintendência de Polícia Técnico-Científica."

Art. 23. Ficam revogados a alínea "a" do inciso II do art. 18 e os incisos II e III do art. 24 da Lei nº 9.380, de 18 de dezembro de 1986”.

(Grifos nossos)

Ocorre que nesta evolução legislativa, em nenhum momento houve revogação expressa da lei antiga pela lei mais nova.

Ou seja, a Lei Complementar 84/2005 não revogou expressamente a Lei 5.406/69.

Tampouco a Lei 18.682/2009 revogou expressamente as leis anteriores.

Mas isto significa que elas continuam valendo? A resposta para esta pergunta encontraremos na Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/1942), que assim dispõe:

“Art. 2o ........................

§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

(Grifos nossos)

Portanto, só continuam em vigor os artigos que não sejam contrários à lei posterior.

Melhor dizendo, existirá a revogação tácita, sempre que a lei nova dispor de forma contrária à lei antiga.

É o que aconteceu exatamente no caso concreto.

Desta forma, os artigos das leis anteriores que prescreviam que os Peritos eram hierarquicamente inferiores aos Delegados de Polícia são totalmente contrários ao que determinou a lei posterior (Lei 18.682/2009), uma vez que esta última foi clara ao impor que os Peritos Criminais (Postos de Perícia Integrada) subordinam-se administrativamente (por conseqüência, diretamente) à Superintendência de Polícia Técnico-Científica, e não mais aos Delegados de Polícia.

Isto foi o que estabeleceu legislação mineira.

2.3. Da Impossibilidade de Edição de Regulamentos Contrários à Lei e o Princípio da Legalidade

A partir da edição da Lei 18.682/2009, a antiga reivindicação (de autonomia) dos Peritos Criminais do Estado de Minas Gerais estava atendida, ao nosso ver sem nenhuma controvérsia, ou interpretação que pusesse em dúvida a novel estrutura hierárquica.

Porém, o Chefe da Polícia Civil, publicou a Resolução 7.196 em 29 de dezembro de 2009, ou seja, um dia após a publicação da referida Lei, dispondo o seguinte:

“Art. 5º São atribuições da Chefia de Departamento de Polícia Civil, de âmbito territorial e atuação especializada: (...)

§ 1º Competirá ao Departamento de Polícia Civil, de atuação territorial, supervisionar a atividade da Circunscrição Regional de Trânsito - CIRETRAN, do Posto de Perícia Integrado, da Seção Técnica Regional de Criminalística e do Posto de Identificação, subordinados operacionalmente à Delegacia Regional de Polícia Civil.

Art. 6º São atribuições do titular de Delegacia Regional de Polícia Civil e de Divisão Especializada: (...)

§ 1º Competirá ainda à Delegacia Regional de Polícia Civil dirigir as atividades das seguintes unidades em sua área de atuação: (...)

II - do Posto de Perícia Integrado e da Seção Técnica Regional de Criminalística subordinados administrativamente à Superintendência de Polícia Técnico-Científica;” (Grifos nossos)

Ora, como seria possível, dentro da nova estrutura administrativa, que um Posto de Perícia Integrado, agora pertencente à outra ramificação hierárquica seja supervisionado e dirigido pelos Delegados Regionais de Polícia? Dentro da atual hierarquia, a Chefia de Polícia Civil poderá sim supervisionar os Postos de Perícia.

Poderá até dirigir indiretamente, pois diretamente esta direção será realizada pela Superintendência de Polícia Técnico-Científica.

Mas não poderá contrariar o que dispõe a lei.

Cabe salientar, que o texto dos artigos 5º e 6º da resolução é completamente contraditório, pois afirma que a subordinação dos Peritos Criminais é à Sup. de Polícia Técnico-Científica (inciso II), praticamente repetindo o texto da Lei 18.682/2009, mas ao mesmo tempo no caput do § 1º do art. 6º, fala que a direção será dos Delegados Regionais.

Ou seja, o texto é contraditório por si só, e mais grave ainda, contrário à Lei.

Tratando-se de Administração Pública, lembremos o valioso Princípio da Legalidade, estampado no caput do art. 37 da Constituição da República de 1988, bem como do art. 13 da Constituição do Estado de Minas Gerais, a qual todos devem obediência, quiçá os agentes públicos em seus atos administrativos (e a resolução é um deles).

Vejamos os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, in verbis:

“Assim, o princípio da legalidade, é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só poder ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete o Direito brasileiro. (...) O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina”.

(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Op. cit., p. 74-76. Grifos nossos.

No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles, José dos Santos Carvalho Filho, Edimur Ferreira de Faria, Odete Medauar e tantos outros grandes administrativistas brasileiros) A resolução em debate é um ato administrativo decorrente do poder regulamentar do Chefe da Polícia Civil que, agente público, também deve obedecer os limites legais.

Assim é o ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho, vejamos:

“(...) O poder regulamentar é subjacente à lei e pressupõe a existência desta. É com esse enfoque que a Constituição autorizou o Chefe do Executivo a expedir decretos e regulamentos: viabilizar a efetiva execução das leis (art. 84, IV). Por essa razão, ao poder regulamentar não cabe contrariar a lei (contra legem), pena de sofrer invalidação. Seu exercício somente pode dar-se secundo legem, ou seja, em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites que esta impuser”.

(FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Lumen Juris, 15ª edição, p. 46, grifos nossos)

Vejamos a seguinte ementa:

“Lei e Regulamento – Distinção – Poder Regulamentar – Ampliação. É da nossa tradição constitucional admitir o regulamento apenas como ato normativo secundário subordinado à lei, não podendo expedir comandos contra ou extra legem, mas tão-somente secundum legem”.

(STJ. Resp n.º 3.667-SC, 1ª Turma, Rel. Min. Pedro Acioli, 1990, apud FILHO. José dos Santos Carvalho. Op. cit., p. 46)

A estrutura da Polícia Civil não poderia ser mudada nem por Decreto do Governador do Estado de Minas Gerais, quiçá por ato do Chefe da Polícia Civil.

Trata-se de uma questão de competência legislativa e de matérias reservadas à lei.

A Constituição Estadual é clara ao esclarecer que compete privativamente ao Governador do Estado, a iniciativa de leis que regulamentem a estrutura administrativa do Estado.

“Art. 90 – Compete privativamente ao Governador do Estado: (...)

XIV – dispor, na forma da lei, sobre a organização e a atividade do Poder Executivo;”

Portanto, há na Resolução 7.196/2009 tanto o vício de forma quanto vício material, qual sejam:

Assim, a resolução é ilegal e inconstitucional (face à Constituição Estadual).

2.4. Da Atual Estrutura Hierárquica

Pela análise das normas em vigor, a estrutura hierárquica resumida (sem os órgãos que não interessam ao caso concreto) possuem a seguinte ordem (do mais alto escalão para o menor):

Em uma ramificação:

Em outra ramificação:

Por mais que doa aos Delegados, os Postos de Perícia Integrado, possuem chefes nomeados diretamente pelo Governador, que pela atual estrutura organizacional, encontra-se no mesmo nível hierárquico que os Delegados Regionais, porém em outra ramificação.

Melhor dizendo, não há subordinação entre eles, há apenas integração e cooperação, pois o interesse público (que inclui a efetivação da segurança pública) pressupõe que atuem em parceria para a solução de crimes.

Mesmo se fossem de níveis diferentes não haveria qualquer subordinação (em nenhum sentido – nem de Delegado para Perito, nem de Perito para Delegado) entre eles, conforme percebemos da atual estrutura organizacional.

Ao nosso ver, toda controvérsia tem origem em dois fatores preponderantes e conseqüentes um do outro:

Talvez por isso, qual seja, por pertencer ao órgão máximo da Polícia Civil, seu Chefe tenha excedido seu poder regulamentar, publicando resolução dispondo de uma hierarquia que não mais possui embasamento legal.

Neste ponto, fazemos um alerta.

Mesmo não podendo alterar a hierarquia prescrita em lei, o Gabinete do Chefe da Polícia Civil continua sendo o órgão máximo da Polícia, podendo sim editar resoluções que disciplinem o trabalho policial como um todo, inclusive dos peritos.

No caso concreto, o problema se deu pelo fato de ter ultrapassado os limites de seu poder regulamentar.

Excetuando-se os artigos que ferem a nova hierarquia, os demais artigos da Resolução 7.196/2009 nos parecem válidos.

Portanto, os Peritos Criminais não estão mais sujeitos ao controle dos Delegados.

Agora estão diretamente ligados à Superintendência de Polícia Técnico-Científica e esta à Chefia de Polícia Civil, de modo que esta última ainda terá os poderes disciplinares, de gestão etc. sobre aqueles hierarquicamente inferiores.


3. CONCLUSÃO

Passemos às respostas dos questionamentos propostos pela ASCEMG.

a) Qual o alcance da autonomia descrita na Lei Federal 12.030/2009?

Muito pequeno.

Do ponto de vista administrativo.

A norma tem conteúdo apenas programático, determinando que os Estados organizem a carreira pericial respeitando no mínimo a autonomia funcional, técnica e científica.

A competência para organizar a estrutura organizacional da Polícia Civil é exclusiva do Estado, e a iniciativa privativa do Governador.

Do ponto de vista da hierarquia, foi a Lei Estadual 18.682/2009 que acrescentou um pouco de autonomia ao peritos.

b) A Lei Estadual 18.682/2009 é suficiente para que a Polícia Técnico-Científica seja órgão totalmente autônomo? Qual a abrangência desta autonomia?

Totalmente não, mas já aumentou.

Ao dispor que os Postos de Perícia não são subordinados às Delegacias Regionais e sim à Superintendência de Polícia Técnico-Científica, aumentou a autonomia administrativa em relação aos órgãos de outras ramificações hierárquicas.

Mas, se o que os Peritos Criminais pretendem é autonomia administrativa e financeira mais abrangente, com subordinação direta à Secretaria de Defesa Social, é indispensável a desvinculação da Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil, constituindo um órgão autônomo.

Lembremos as supracitadas lições de Celso Antônio, quanto maior o escalão, maior a autonomia.

Enquanto permanecer dentro da Polícia, a Chefia de Polícia Civil será sempre seu órgão máximo.

Apesar de não avançar muito na questão da autonomia, o fim da vinculação dos Postos de Perícias com as Delegacias, é uma alteração hierárquica muito importante, que refletiu e refletirá na independência funcional.

Mesmo que funcionem nos mesmos prédios, a partir desta lei, cada um está ligado (hierarquicamente) à superintendências distintas.

c) A Resolução nº 7.196/2009 é compatível com a legislação pertinente à matéria? Se há divergência, quais são os pontos contraditórios?

Ao nosso ver, a resolução não é compatível com o novo diploma legal, pois excedeu seu poder regulamentar contrariando nitidamente a nova lei.

Repetindo, concluímos que a Lei Nacional 12.030/2009, apenas expôs as diretrizes gerais para o funcionamento das Perícias Oficiais Criminais.

A competência para organizar a carreira da Perícia Técnico-Científica mineira é exclusiva do Estado de Minas Gerais.

São as leis estaduais que devem organizar hierarquicamente a estrutura da Administração Direta do Estado, inclusive da Polícia Civil.

O Chefe da Polícia Civil é o agente competente para disciplinar o funcionamento da Polícia Civil no Estado de Minas Gerais, mas sempre dentro dos limites legais.

Não poderá invocar seu cargo de alto escalão para editar regulamento (da qual resolução é espécie) que altere a hierarquia já estabelecida em lei stricto sensu.

Face ao Princípio da Legalidade, a estrutura hierárquica da Polícia Civil somente pode ser modificada em virtude de lei e nunca por atos regulamentares.

Como a organização do serviço de segurança pública é ato privativo do Governador, nos termos da Constituição Estadual, sob este prisma além da ofensa aos princípios da Legalidade e Hierarquia, fica caracterizada também a inconstitucionalidade dos arts. 5º e 6º da Resolução 7.156/2009 quando atribui aos Delegados Regionais a direção dos Postos de Perícia Integrados entre outros órgãos periciais.

Este é o parecer, sem embargos às opiniões contrárias que são respeitadas.

Lagoa da Prata, 12 de abril de 2010.

ELVIS EZEQUIEL AQUINO DE ALMEIDA

OAB/MG 104.407

Sobre o autor
Elvis Ezequiel Aquino de Almeida

Graduado em Direito (2004), com especialização em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2006). Atualmente é consultor jurídico empresarial e advogado de carreira da Prefeitura Municipal de Lagoa da Prata e Professor Assistente na Faculdade Alis de Bom Despacho. Tem experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Administrativo, Municipal, Tributário e Constitucional.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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