Exmo. Sr. Juiz da Infância e Juventude da Comarca de Anápolis:
O Ministério Público do Estado de Goiás, através de seu representante legal, dentro de suas atribuições erigidas primordialmente no artigo 127 da Constituição Federal e, em particular, no artigo 210 do Estatuto da Criança e do Adolescente, vem perante este juízo propor a presente AÇÃO PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, com via processual eleita nos artigos 212 e 213 do Estatuto da Criança e do Adolescente e competência fixada em seu artigo 209, em desfavor do MUNICÍPIO DE ANÁPOLIS-GO, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Av. Brasil, nº 200, Centro, representada por seu Prefeito Municipal, Sr. Adhemar Santillo, fazendo-o com fulcro nas razões fáticas e jurídicas abaixo articuladas:
I - DOS FATOS
1- Como é de conhecimento geral, há longa data o Conselho Tutelar deste município encontra-se instalado e funcionando no antigo prédio da Estação Ferroviária, localizado em frente à praça Americano do Brasil, tendo ao fundo o Terminal Urbano de Passageiros de Anápolis, o que privilegiava e garantia o fácil e democrático acesso das pessoas aos serviços prestados pelo referido Conselho, tanto é que tal "ponto" - central e estratégico - tornou-se referencial a todos deste município.
2- Todavia, no mês de agosto do corrente ano, iniciou-se projeto de ampliação do aludido terminal de ônibus ("croqui" anexo), sendo que toda a área em torno do prédio da Estação Ferroviária foi fechada por tapumes, formando-se um verdadeiro canteiro de obras no seu interior, ilhando o prédio e inviabilizando seja o trabalho dos próprios Conselheiros Tutelares seja o acesso da população.
3- No final do mês de agosto, tal situação absurda foi informada até em tom de súplica tanto pelo Conselho Tutelar como pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, cujos ofícios estão adiante anexados.
4- Em face disso, foi realizada diligência na qual verificou-se no local o problema noticiado, apurando-se inclusive ser mais grave do que se supunha a princípio, porquanto não fosse o próprio isolamento do prédio e o empecilho ao regular funcionamento do Conselho Tutelar, ainda se criou o risco (trata-se de um canteiro de obras, como já dito) àqueles que ali se aventuram a cumprir o seu mister (conselheiros e funcionários) e, por igual, às crianças, adolescentes, pais e demais cidadãos que buscam no Conselho Tutelar socorro aos seus problemas.
5- Em conseqüência, por esta Promotoria de Justiça foi expedida a Recomendação nº 01/98 dirigida ao Prefeito Municipal de Anápolis para que fosse garantido, sem qualquer entrave, o livre acesso às dependências do Conselho Tutelar (prédio da antiga Estação Ferroviária), fazendo-se as modificações necessárias para tanto na obra em construção de ampliação do terminal, com passagens e sinalizações adequadas, inclusive para segurança das pessoas; tendo sido então fixado o prazo de 48 horas para a consecução das melhorias apontadas e outras que se fizerem precisas. Este expediente foi recebido no dia primeiro deste mês.
6- Através do ofício nº 240/98, de mesma data, só que recebido em 08/09/98, o Sr. Prefeito Municipal respondeu sucintamente que as providências cabíveis já estavam sendo providenciadas e que o Conselho Tutelar seria mudado para as dependências do "Feirão do Jundiaí", assumindo assim o município-réu (via de seu representante) o papel e a responsabilidade que dele os cidadãos esperavam, exceto no que tange ao local indicado para a mudança do conselho, naturalmente impróprio pela sua destinação e deslocado da região central, o que dificultará a acesso das pessoas aos serviços indispensáveis e de suma relevância desempenhados pelo Conselho Tutelar.
7- Entretanto, conforme teor das declarações do Presidente do Conselho Tutelar, prestadas em 04/09/98, e nova vistoria deste órgão ministerial acontecida em 09/09/98, quando foram tiradas as incontestáveis e denunciadoras fotografias que acompanham esta peça, comprovou-se que nada havia sido feito, restando a mesma realidade inaceitável anteriormente asseverada, contradizendo por sinal as afirmativas do município-réu proferidas em primeiro deste mês. Nem foram feitas passagens especiais e cobertas, nem sinalizações, nem retirada dos tapumes; em inegável e acintosa omissão do município-réu tanto em relação à referida obra por ele encampada como pela inércia quanto ao exercício de qualquer poder de polícia/fiscalizatório/inibidor para ordenar as mudanças necessárias a terceiros que a estejam executando, sob o discutível e nebuloso "interesse público" com o que se tenta justificar as atitudes do município-réu.
8- Em suma, o que se percebe é que a ordem constitucional de prioridade absoluta no tratamento das questões atinentes à criança e ao adolescente - nesse contexto tem-se inserto o Conselho Tutelar como não poderia deixar de ser haja vista ser um dos pilares que sustenta os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente - parecem não vigorar no município de Anápolis, não podendo sequer o mesmo escudar-se por detrás da desculpa da discricionariedade, pois contra ditame constitucional de prioridade absoluta tal não passa de falácia que, aliás, não se confessa nem nos discursos de palanque, muito mais na obrigação de servir imposta aos governantes.
9- Inadmissível que num Estado Democrático de Direito subsista a mentalidade alcaideana, os quais desdenham da participação democrática na gestão do Poder Público, via conselhos de toda espécie, e, in casu, coloque o Conselho Tutelar ilhado no meio de um canteiro de obras, cercado, obstando o acesso do povo a tal entidade e a implementação de seus deveres, dando-lhe condições precárias de funcionamento e, para piorar, ainda tenciona despejá-lo para um local bom para feiras e nunca para o Conselho Tutelar... Só se as crianças e adolescentes puderem também ser negociados nas barracas de frutas, legumes e verduras da feira que lá rotineiramente se tem.
II - DO DIREITO
Prevê o artigo 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente que o Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.
"Ao indicar a finalidade do Conselho Tutelar, o Estatuto faz cumprir a Constituição Federal, que diz ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, os direitos individuais e sociais que enumera (art. 227), e faz alusão à legislação tutelar específica, determinando que, no atendimento daqueles direitos, levar-se-á em consideração o disposto no art. 204, que traça duas diretrizes: descentralização político-administrativa e participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação e no controle das ações em todos os níveis.
O Conselho Tutelar não é apenas uma experiência, mas uma imposição constitucional decorrente da forma de associação política adotada, que é a Democracia participativa ("Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição"), e não mais a Democracia meramente representativa de Constituições anteriores.
O Estatuto, como lei tutelar específica, concretiza, define e personifica, na instituições do Conselho Tutelar, o dever abstratamente imposto, na Constituição Federal, à sociedade. O Conselho deve ser, como mandatário da sociedade, o braço forte que zelará pelos direitos da criança e do adolescente"
(Judá J. de Bragança Soares, "Estatuto da Criança e do Adolescente", 2ª Ed., Ed. Malheiros, págs. 405/406).
Em cada município há de ter pelo menos um Conselho Tutelar, devendo constar da Lei Orçamentária Municipal previsão dos recursos necessários ao seu funcionamento (arts. 132 e 134, parág. Único, do ECA). A propósito, a sua existência é condição para o repasse de verbas da União e do Estado referentes aos programas e atividades ligados aos direitos da criança e do adolescente.
Ratificando os princípios da Constituição Federal e da Constituição Estadual, a Lei Orgânica do Município de Anápolis reza que: O Município, juntamente com a família e a sociedade, assegurará à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 314). Por certo, não é turbando o trabalho do Conselho Tutelar – órgão de execução das políticas vinculadas à criança e ao adolescente – que o município-réu está cumprindo o seu dever legal
Pondo uma pá de cal em qualquer discussão ou debate sobre as obrigações do município-réu em respeito ao Conselho Tutelar, tem-se a Lei Municipal nº 1.899/91 que dispõe sobre a política municipal de atendimento aos direitos da criança e do adolescente, com supedâneo na Lei Federal nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Consta nela que o município-réu reconhece o Conselho Tutelar como um dos órgãos de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, de caráter permanente e autônomo (arts. 4º, II e 13). Em destaque:
Art. 32 – A Administração Pública Municipal ficará responsável pelas instalações físicas e funcionais necessárias ao funcionamento dos Conselhos Tutelares e por sua manutenção.
Parágrafo único – O Conselho Tutelar manterá uma Secretaria Administrativa encarregada de prover o funcionamento adequado dos serviços e instalações destinados às atividades do órgão.
Logo, cumpre ao município-réu garantir o pleno, livre e eficaz trabalho e funcionamento do Conselho Tutelar, seja dando-lhe instalações adequadas, seja proporcionando-lhe pessoal e estrutura aptas para tanto. Jamais ao contrário, isto é, isolando a sede do Conselho Tutelar, minguando-lhe as possibilidades de prestar serviço e, o que é mais grave, frustrando o acesso da sociedade anapolina ao Conselho Tutelar, inclusive com a declarada intenção de colocá-lo numa feira, fora do centro da cidade. É a aplicação daquela máxima ao inverso: Por que facilitar se pode complicar?
Ora, se a ampliação do terminal urbano rodoviário é importante, prioridade constitucional é o atendimento aos direitos da criança e do adolescente, nesse mundo gravita com enorme importância o Conselho Tutelar. Se o Conselho Tutelar pode ir para o "Feirão do Jundiaí", porque não o escritório da empresa TCA que explora o transporte coletivo de Anápolis, e para quem foi prometido o uso do prédio da antiga estação ferroviária desta cidade, tombado como patrimônio histórico, e que hoje e há muito abriga o Conselho Tutelar, que se lhe vinculou o ponto como no direito comercial, à grosso modo? Qual dessas providências atende melhor o espírito das constituições federal, estadual e municipal, e o próprio interesse público?
Para extirpar condutas impróprias como as que infelizmente estamos a presenciar aqui em Anápolis, o Direito Processual Pátrio - a custa da muita luta, de exércitos sem armas e sem fronteiras, e que agem norteados pelo bom senso e pela defesa do futuro positivo da humanidade – abraçou no Estatuto da Criança e do Adolescente tutelas ou provimentos jurídicos especiais, concedendo-lhes maior efetividade, com procedimento ágil e simplificado, priorizando-os como bem maior da sociedade. Por conseguinte, dotou-os de instrumentos fortes, rápidos e inibidores, numa salutar simbiose de institutos do gênero ação mandamental, como ocorre no sistema da "common law" e no Direito Italiano ("ação inibitória"), atribuindo ao magistrado, para prover a tutela, como bem leciona o Prof. Kazuo Watanabe maior plasticidade e mais perfeita adequação e aderência às peculiaridades do caso concreto. E prossegue: O legislador deixa bem claro que, na obtenção da tutela específica da obrigação de fazer ou não fazer, o que importa, mais do que a conduta, é o resultado prático protegido pelo Direito. E, para a obtenção dele, o juiz deverá determinar todas as providências e medidas legais e adequadas ao seu alcance, inclusive, se necessário, a modificação do mundo fático, por ato próprio e de seus auxiliares, para conformá-lo ao comando emergente da sentença... Para isso, os juizes deverão estar muito bem preparados, com a reciclagem permanente de seus conhecimentos jurídicos e de outras áreas do saber humano e com a perfeita aderência à realidade sócio-econômico-política em que se encontram inseridos, de tal modo que os direitos dos menores e dos adolescentes consagrados no Estatuto sejam efetivamente tutelados.
E que os desavisados, os vetustos e os sofistas não confundam estes novos instrumentos jurídicos de tutela específica com uma invasão do Poder Judiciário na Administração Pública. A situação é outra: tais mecanismos têm o condão de simplesmente lembrar aos governantes as obrigações que lhes competem por lei, pelo império e soberania da lei, que juraram cumprir e da qual somos todos súditos, fazendo com que se realizem para o bem de todos, não por conveniência ou oportunidade, mas por dever legal e moral ("injunctions").
III- DOS PEDIDOS
Por todo o exposto, o Ministério Público, por meio de seu representante legal, com fulcro nos artigos 212 e 213 e seus parágrafos do Estatuto da Criança e do Adolescente, requer o seguinte:
1- Tendo em vista o relevante fundamento da demanda, somado ao justificado receio de ineficácia do provimento final, dada a atual e negativa realidade imposta ao Conselho Tutelar no que concerne à sua instalação e funcionamento (como sobejamente frisado na parte fática desta peça), que seja concedida tutela liminar (inaudita altera pars) para: a) determinar ao município-réu que retire todos os entulhos de materiais de construção à frente e nos jardins do prédio do Conselho Tutelar (antiga estação ferroviária), como também os tapumes que vedam o acesso ao mesmo (vide fotos); ou que abra passagem segura, limpa e desimpedida (corredor) entre os tapumes até a entrada na frente do prédio, colocando farta sinalização para indicar o acesso das pessoas ao Conselho Tutelar; em ambos os casos no prazo de 24 horas; b) manter ali instalado e funcionando o Conselho Tutelar, sustando qualquer tentativa de transferência do órgão para o "Feirão do Jundiai" por parte do município-réu.
2- A fixação de multa diária ao município-réu pelo descumprimento das medidas acima relacionadas, no importe de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), valendo no mesmo patamar para o descumprimento da sentença, revertidos os valores ao Fundo Municipal para a Infância e Adolescência, conta nº 92.251-X, ag. 3005-8, Banco do Brasil.
3- Na hipótese do descumprimento das medidas acautelatórias (item 1) ou daquelas fixadas por sentença (item 5), sem prejuízo da multa diária (item 2) e da configuração do crime de desobediência, que sejam determinadas por este juízo todas as providências legítimas e compatíveis que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento, mediante requisição de serviços de órgãos estaduais ou federais (Administração Direta ou Indireta) para tal fim, através da expedição de ordens.
4- A citação do município-réu na pessoa de seu representante legal, o Sr. Prefeito Municipal, ou por intermédio do Procurador Geral do Município, conforme autoriza o art. 81, V, da Lei Orgânica Municipal, para apresentar defesa, sob pena de ser-lhe reconhecida a revelia e aplicados os seus consectários, seguindo-se o feito pela remissão do art. 212, § 1º, do ECA.
5- O julgamento procedente do pedido para obrigar o município-réu: a) a garantir o pleno, livre e desimpedido funcionamento do Conselho Tutelar, fornecendo-lhe para isso todas as condições materiais, de funcionários e de instalação, conforme determina o artigo 32 da Lei Municipal nº 1.899/91, e por força dos preceitos tatuados no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, incluindo, também, verba orçamentária suficiente para tanto; b) que o Conselho Tutelar tenha assegurado o direito de permanecer instalado onde hoje está (prédio da antiga estação ferroviária) ou, caso haja proposta do município-réu aceita em juízo após inspeção, em local no centro desta cidade, desde que apresente reais vantagens tanto para o próprio órgão, mas principalmente para a sociedade anapolina que dele se beneficia por seus indispensáveis serviços, notadamente em lugar estratégico e de fácil acesso.
6- A condenação do município-réu nas verbas de sucumbência.
7- A produção de quaisquer provas admitidas no direito brasileiro (vistorias, perícias, testemunhas, etc.), fazendo parte deste conjunto, inicialmente, a documentação que acompanha esta petição.
Dá-se a esta causa o valor simbólico de R$ 1.000,00 (um mil reais).
Anápolis, 11 de setembro de 1.998.
Carlos Alexandre Marques
Promotor de Justiça