Excelentíssimo Senhor Ministro-Presidente do Supremo Tribunal Federal
: Governador do Estado de AlagoasObjeto: Lei Estadual 5.751, de 18 de Novembro de 1995
Dispositivos Constitucionais Violados: art. 142, §3º, inc. III, da CF/88; art. 5º, inc. LV (devido processo substantivo – razoabilidade)
EMENTA DA INICIAL: CONSTITUCIONAL. LEI ESTADUAL QUE PERMITE A POLICIAIS MILITARES "AGREGADOS" A PROMOÇÃO POR MERECIMENTO E ANTIGÜIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE. O militar da ativa que tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração direta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antigüidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não transferido para a reserva, nos termos da lei (art. 142, §3º, inc. III, da CF/88). A Lei 5.751/95, do Estado de Alagoas, que, sem qualquer coeficiente de razoabilidade, exclui da situação de agregado os militares estaduais em exercício de função civil de Subdelegado de Polícia, no DETRAN/Al, bem como em órgãos internacionais, quando em missão de paz, à disposição do Ministério das Relações Exteriores, é flagrantemente inconstitucional, pois pretende burlar a Constituição Federal, em seu art. 142, §3º, inc. III.
O
GOVERNADOR DO ESTADO DE ALAGOAS, RONALDO AUGUSTO LESSA SANTOS, brasileiro, Engenheiro Civil, divorciado, com endereço na Cidade de Maceió, Alagoas, Palácio Marechal Floriano Peixoto, Praça dos Martírios, telefax nº (82) 326-5724, com fundamento no art. 103, inc. V, combinado com o art. 102, inc. I, alíneas "a" e "p", todos da Constituição Federal de 1988, regulamentados pela Lei 9.868/99, vem ajuizar perante este Colendo Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de Medida Cautelar, no sentido de ser declarada a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 5.751/95, de 18 de novembro de 1995, pelas razões a seguir alinhadas:1. Breves Considerações Acerca da Norma Impugnada
m 18 de novembro de 1.995, foi promulgada a Lei Estadual nº 5.751, que alterou o §1º do art. 18 e o inciso VI do art. 81 da Lei Estadual nº 5346, de 26 de maio de 1992.Eis integralmente o teor da vergastada norma:
LEI Nº 5751, DE 18 DE NOVEMBRO DE 1995.
Altera o §1º do art. 18 e o inciso VI do art. 81 da Lei Estadual nº 5346, de 26 de maio de 1992
Faço saber que o Poder Legislativo decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º – O §1º do art. 18 e o inciso VI do art. 81 da Lei Estadual nº 5346, de 26 de maio de 1992, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 18 -..... .......
§ 1º -..... .........
VII – em função de Subdelegado de Polícia e no Departamento Estadual de Trânsito.
VIII – em órgãos internacionais, quando em missão de paz.
Art. 81 -..... .......
VI – for posto à disposição de Secretaria de Estado ou outro órgão desta Unidade da Federação, de outro Estado ou Território para exercer função de natureza civil, exceto na hipótese prevista no inciso VII do §1º do art. 18 desta Lei.
Art. 2º - A presente Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Palácio Marechal Floriano, em Maceió, 28 de novembro de 1995.
Os dispositivos alterados da Lei Estadual nº 5.346, de 26 de maio de 1992 (Estatuto da Polícia Militar do Estado de Alagoas), passaram, com isso, a ter a seguinte redação, na íntegra:
"art. 18 – São funções policiais militares o exercício dos cargos previstos nos Quadros de Organização da Corporação.
§1º – São consideradas funções policiais militares ou de interesse policial militar o exercício do cargos nos seguintes órgãos:
I – em órgãos federais relacionados com as missões das forças auxiliares;
II – na Casa Militar do Palácio do Governo;
III – nas Assessorias Militares;
IV – no Gabinete do Presidente ou do Vice-Presidente da República;
V – estabelecimentos de Ensino das Forças Armadas ou de outras Corporações Policiais Militares, no país ou no Exterior, como instrutor ou aluno;
VI – outras corporações policiais militares, durante o período passado à disposição;
VII – em função de Subdelegado de Polícia e no Departamento Estadual de Trânsito.
VIII – em órgãos internacionais, quando em missão de paz.
(...)
Art. 81 – O policial militar da ativa será agregado e considerado para todos efeitos legais, como serviço ativo, quando:
(...)
VI – for posto à disposição de Secretaria de Estado ou outro órgão desta Unidade da Federação, de outro Estado ou Território para exercer função de natureza civil, exceto na hipótese prevista no inciso VII do §1º do art. 18 desta Lei"
– grifamos as partes que nos interessam.Percebe-se, pois, que, pelo texto da vergastada lei, passam a ser consideradas funções policiais militares ou de interesse policial militar, o exercício de funções em subdelegacias de polícia, no Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN) e em órgãos internacionais, quando em Missão de Paz, não incindindo, para os ocupantes destas funções, a vedação constitucional prevista para os militares agregados, isto é, tais militares não serão considerados "agregados", podendo ser promovidos tanto por antigüidade quanto por merecimento, malgrado só permita a constituição que sejam promovidos por antigüidade.
Observe-se, não obstante, que a própria lei vergastada reconhece que as funções de subdelegado de polícia e no Departamento Estadual de Trânsito são de natureza civil, nos termos do seu art. 81, inc. IV.
Conforme será comprovado, a referida norma estadual viola, sem receio de equívoco, frontalmente a Constituição Federal, padecendo, por conseguinte, de insanável vício material de inconstitucionalidade, haja vista a sua desarmonia com o disposto no art. 142, §3º, inc. III, da CF/88, com a redação dada pela Emenda Constitucional 18/1998, originariamente situado no art. 42, §4º, bem como por violação a cláusula do devido processo legal, em seu sentido substantivo (razoabilidade), prevista no art. 5º, inc. LV, da CF/88. É o que se demonstrará.
2. Os Fundamentos Jurídicos do Pedido
"Admitir a interpretação de que o legislador pode a seu livre alvedrio legislar sem limites, seria pôr abaixo todo o edifício jurídico e ignorar, por inteiro, a eficácia e majestade dos princípios constitucionais. A Constituição estaria despedaçada pelo arbítrio do legislador" Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional. Malheiros, São Paulo, 1993 p. 354)
A inconstitucionalidade de uma norma, de acordo com os ensinamentos da melhor doutrina, pode ocorrer tanto pela violação substancial de preceitos da Lei Fundamental quanto pela não observância de aspectos técnicos no procedimento de formação da norma (inconstitucionalidade formal).
Como explica o emérito GILMAR FERREIRA MENDES,
"costuma-se proceder à distinção entre inconstitucionalidade material e formal, tendo em vista a origem do defeito que macula o ato questionado. Os vícios formais afetam o ato normativo singularmente considerado, independentemente de seu conteúdo, referindo-se, fundamentalmente, aos pressupostos e procedimentos relativos à sua formação. Os vícios materiais dizem respeito ao próprio conteúdo do ato, originando-se de um conflito com princípios estabelecidos na Constituição" (Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. Saraiva, São Paulo, 1990, p. 28).
A Lei Estadual 5.751/95 padece forçosamente de vício material de inconstitucionalidade, haja vista a sua total incompatibilidade com o disposto no art. 142, §3º, inc. III, da CF/88. Vejamos.
2.2. A Possibilidade da Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Presente Caso
"Norma jurídica não se confunde com meros textos normativos. Estes são apenas os suportes físicos. Antes do contato do sujeito cognoscente não temos normas jurídicas, e sim, meros enunciados lingüísticos esparramados pelo papel. Enunciados postados em silêncio. Em estado de dicionário. Aguardando que alguém lhes dê sentido. E enunciados, conforme a observação de Lenio Luiz Streck, plurívocos, pois não há uma correspondência biunívoca entre a disposição normativa (texto) e a norma jurídica (significação)" Gabriel Ivo, in A Incidência da Norma Jurídica – o cerco da linguagem.
A Emenda Constitucional 18, de 5 de fevereiro de 1998, alterou profundamente o regime constitucional dos militares.
Entre estas alterações, houve a transposição do art. 42, §4º, da Constituição Federal de 1988, para o art. 142, §3º, inc. III, que, em sua redação original, prescrevia:
"§4º O militar da ativa que aceitar cargo, emprego ou função pública temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antigüidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a inatividade".
Embora tenha havido esta alteração no texto constitucional, a norma supra transcrita ainda continua em vigor, mas em outro local, a saber, no art. 142, §3º, inc. III, ora reproduzido:
"art. 142.........
§3º...............:
(...)
III – o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antigüidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não transferido para a reserva, nos termos da lei".
Importa ressaltar que este dispositivo aplica-se aos Policiais Militares dos Estados, por força do art. 42, §1º, in verbis:
"art. 42. §1ºAplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, §8; do art. 40, §3º; e do art. 142, §§2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, §3º, inc. X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos Governadores" - grifamos.
Através de uma análise sistemática do novel texto constitucional, vislumbra-se, sem muitas dificuldades, que não houve a revogação do art. 42, §4º, da CF/88, vale dizer, somente houve uma modificação topográfica de sua situação no ordenamento jurídico-constitucional: antes era prevista no art. 42, §4º; agora, no art. 142, §3º, inc. III.
A norma jurídica contida, originariamente, no texto enunciado no art. 42, §4º, da CF/88, não deixou de existir, em face da Emenda Constitucional nº 18/1998. Ao contrário, sua formulação permanece viva no sistema constitucional, apenas com uma diversa localização topográfica.
J.J. GOMES CANOTILHO já fazia a adequada distinção entre formulação da norma e a norma propriamente dita. Eis as brilhantes palavras do constitucionalista português:
"deve distinguir-se entre enunciado (formulação, disposição) da norma e norma. A formulação da norma é qualquer enunciado que faz parte de um texto normativo (de uma fonte de direito). Norma é o sentido ou significado adscrito a qualquer disposição (ou a um fragmento de disposição, combinação de disposições, combinações de fragmentos de disposições). Disposição é parte de um texto ainda a interpretar; norma é a parte de um texto interpretado". (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Livraria Almedina, Coimbra, 1998, pp. 1075/1076).
Houve, no caso em comento, tão somente uma alteração do lugar (aspecto topográfico) da formulação da norma, primariamente contida no art. 42, §4º. A norma propriamente dita, ou seja, a significação adstrita à disposição constitucional, não foi, em nada, modificada.
Feitas essas considerações, afasta-se, de logo, a incidência da jurisprudência desta Suprema Corte, no sentido de que revogada a norma constitucional que fundamenta a Ação Direta de Inconstitucionalidade, fica prejudicado o seu julgamento, dada a perda do objeto da ação. No caso, a norma constitucional não foi revogada (houve mera transposição física, topográfica).
Da mesma forma, não se aplica à espécie o entendimento pretoriano segundo o qual não é possível o controle concentrado para saber se uma norma editada antes de uma emenda constitucional foi ou não por ela recepcionada. Ou seja, a Emenda Constitucional nº 18 apenas reproduziu, no art. 142, §3º, inc. III, a norma prevista originariamente no art. 42, §4º da CF/88.
Em outras palavras: tendo em vista a reprodução do dispositivo antes previsto no art. 42, §4º, pela Emenda Constitucional 18/1998, desta feita no art. 142, §3º, inc. III, mostra-se perfeitamente adequado e possível o controle de constitucionalidade, por via de ação, da Lei Estadual 5.751/1995, uma vez que o fundamento de (in)validade da norma estadual vergastada restou substancialmente inalterado.
2.3. A Incompatibilidade da Lei Estadual 5751/1995 com o Texto Constitucional
"É preciso respeitar, de modo incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional. Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e das Nações. Todos os atos estatuais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica – dos Tribunais especialmente – porque são írritos, nulos e desvertidos de qualquer validade" (Min. Celso de Mello, na ADIn nº 263.7600/DF – DJU 16.04.93, Seção I, p. 6.429).
Vislumbra-se, sem muita dificuldade, a manifesta inconstitucionalidade material da malsinada Lei Estadual, tendo em vista a expressa disposição contida no art. 142, §3º, inc. III, da CF/88.
A citada norma constitucional trata, na verdade, da situação dos militares agregados.
A agregação é "o ato de retirar o oficial da escala numérica do corpo ou quadro a que pertente, para efeito de não preencher vaga, embora permanecendo na ativa" (Dicionário Jurídico. Ed. Forense Universitária, 1990, p. 321). Em outras palavras: agregação é a "situação na qual o militar da ativa deixa de ocupar vaga na escala hierárquica de seu Corpo, Quadro, Arma ou Serviço, nela permanecendo sem número." - Antônio Pereira Duarte in Direito Administrativo Militar, p.199.
Dessa forma, a agregação, em seu conceito jurídico-militar, é um instituto, de matriz constitucional, que regula, temporariamente, a situação do militar da ativa que esteja ocupando função estranha aos quadros de sua corporação.
Diz-se que a matriz do instituto é a Constituição, porquanto é possível extrair do enunciado previsto no art. 142, §3º, inc. III, seu conteúdo e significado.
Com efeito, pela leitura do texto constitucional, o militar da ativa que tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antigüidade.
A regra é cogente e bastante clara: estando o militar agregado, em razão de ocupar função pública civil temporária, ficará agregado, não podendo ser promovido senão por antigüidade (nunca por merecimento).
Como explica Joilson Fernandes de Gouveia:
"infere-se que a agregação é uma situação temporária em que o militar ou PM da ativa não poderá exceder aos dois anos no exercício de cargo estranho(cargo, emprego ou função civil) ao da carreira e, enquanto estiver nesta situação, só poderá ser promovido por antigüidade, jamais por merecimento. É fato inconteste que o PM agregado só deverá ser promovido por antigüidade. Dúvidas não há!" (in AGREGAÇÃO não se presta à PROMOÇÃO, JURID – Publicações Eletrônicas, disponível On-Line: http://www.jurid.com.br).
Portanto, nesta hipótese, aceitando o militar cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que se trate de Administração Indireta, ficará agregado ao respectivo quadro, e, durante o período de agregação, que não poderá ir além de dois anos, sua promoção só poderá ser por antigüidade.
A Lei Estadual 5751/1995, ora impugnada, equiparou a função de Subdelegado de Polícia e no Dentran/Al, bem como em órgãos internacionais, quando em função de paz, à função policial militar, permitindo, por conseguinte, aos ocupantes destas funções (que são, efetivamente, civis), a promoção por antigüidade e por merecimento.
Não é difícil visualizar que a norma estadual fraudou a Constituição. A burla, no caso, foi bastante sutil: em face da proibição constitucional de impossibilitar aos ocupantes de funções públicas civis a promoção por merecimento, excluiu-se deste conceito (de função pública civil) as funções públicas que bem aprouveram ao legislador. A função de Subdelegado, que sempre foi – e sempre será – de natureza civil, passou, num passe de mágica do legislador, a ser considerada militar. As funções exercidas no Detran, que sempre foram – e sempre serão – de natureza civil, passaram a ser consideradas militares. A função em órgãos internacionais, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, que é um ministério civil, passou, graças à criatividade do legislador, a ser considerada militar.
Ao alterar o conceito constitucional de função pública civil, equiparando uma série de funções públicas civis à função pública militar, o legislador violou diretamente a norma constitucional. É o que se demonstrará no próximo tópico.
2.3.1. A Lei Estadual 5751/00, ao ampliar o conceito de função pública militar, desvirtuou o conceito constitucional de função pública civil para fins de agregação
Certos conceitos jurídicos há que, dada a sua hierarquia constitucional, não podem ser alterados pela lei ordinária, sob pena de subverter o princípio da supremacia da Constituição, restringindo a força vinculante inerente às normas constitucionais.
Tal foi o que ocorreu no presente caso. O legislador ordinário estadual, a despeito da clara disciplina constitucional sobre a matéria, houve por bem, numa burla manifesta à Constituição, alterar os conceitos de função pública civil e função pública militar, no intuito de excluir dos efeitos da agregação uma série de ocupantes de funções públicas civis.
"Direitos constitucionalmente pressupostos ou definidios – conforme explica GERALDO ATALIBA – não podem ser ‘redefinidos’ por lei. Admiti-lo é consentir que as demarcações constitucionais corram o risco de ter sua eficácia comprometida" (Hipótese de Incidência. 5ª ed. Malheiros, São Paulo, 1999, p. 31).
De fato, no instante em que a Constituição estabeleceu que o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antigüidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não transferido para a reserva, nos termos da lei, na forma do art. 142, §3º, inc. III, não poderia o legislador ordinário, com o objetivo de afastar certos militares da incidência desta norma, equiparar, a seu talante, algumas funções públicas civis às funções públicas militares.
Se a lei pudesse chamar de função pública militar o que, na verdade, é uma função pública civil, ruiria todo o sistema rígido inscrito na Constituição. Afirmar que o legislador é livre para estipular o que vem a ser função pública militar implica menoscabar todo o sentido do instituto constitucional da agregação, esvaziando a força normativa do Texto Constitucional, que prevê, minuciosamente, a situação dos militares agregados. Admitir isto é negar aplicação ao próprio dispositivo insculpido no art. 142, §3º, inc. III; portanto, é negar a própria Constituição.
É equivocado, por isso mesmo, o entendimento de que, para fins de agregação, função pública civil é tudo aquilo que a lei considera como tal, não sendo dado ao intérprete-aplicador desta lei discutir os critérios por ela levados em conta, ao cuidar do assunto. Na realidade, existe uma noção constitucional de função pública civil e função pública militar. A matéria gravita, pois, em torno dos conceitos constitucionais, não cabendo ao legislador ordinário, ao léu de suas veleidades, decidir o que é e o que não é função pública civil. O legislador não é livre para fixar o conceito de função pública militar, sob pena de deixar sem qualquer significação o preceito constitucional respectivo.
No caso, havendo um sentido constitucional para as expressões "função pública civil" e "função pública militar", "o legislador ordinário (federal, estadual, municipal ou distrital) não pode fugir destes arquétipos constitucionais" (CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 11ª ed. Malheiros, São Paulo, 1998, p. 411 – tratando, no caso, do conceito constitucional de renda).
Em semelhante sentido, brilhantes são as palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
"se o legislador ou o aplicador da regra pudesse delinear, a seu talante, o campo de restrições a que estão submetidos, através da redefinição das palavras constitucionais, assumiriam, destarte a função de constituintes" (apud CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 11ª ed. Malheiros, São Paulo, 1998, p. 412).
Pois bem. Certo de que o legislador não possui a discricionariedade para decidir o que é e o que não é função pública civil ou militar, vejamos se as funções de subdelegado, no Departamento Estadual de Trânsito e em órgãos internacionais, quando em missão de paz, podem ser consideradas funções públicas militares, tal como estipulou a malsinada Lei Estadual 5.751/95.
Primeiramente, vejamos a natureza jurídico-constitucional da função de subdelegado.
A função de subdelegado, por óbvio, não é uma função pública militar, nem pode ser considerada como tal, para fins de afastar os militares ocupantes desta função da incidência do instituto constitucional da agregação.
Verdadeiramente, o subdelegado é um agente da Polícia Civil do Estado, hierarquicamente inferior ao delegado de polícia de carreira.
A Constituição Federal trata da Polícia Civil no art. 144, quando estipula que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio", através, entre outros órgãos, das polícias civis (inc. IV).
O §4º deste mesmo dispositivo, por sua vez, determina que:
"Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares" – grifamos.
Em face disso, não há como considerar – tal como feito pela lei estadual ora fulminada – a função pública de subdelegado como função pública militar. Houve, pois, violação ao dispositivo constitucional.
O mesmo ocorre com as funções exercidas por militares agregados no Departamento Estadual de Trânsito. Considerá-los ocupantes de funções públicas militares é querer fraudar o preceito constitucional que rege o instituto da agregação.
O Detran (Departamento Estadual de Trânsito) é uma entidade estadual totalmente desvinculada da Polícia Militar. As competências de cada uma dessas entidades não se confundem.
De acordo com o §5º, do art. 144, da CF/88:
"Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (...)" - grifamos.
Não há, pois, como enquadrar as funções exercidas no Detran – que é uma entidade civil – no conceito de função pública militar, vez que não é da atribuição do órgão estadual a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.
A propósito, é suma importância informar que a própria lei vergastada reconhece que as funções de subdelegado de polícia e no Departamento Estadual de Trânsito possuem a natureza civil. Contudo, estabelece a norma estadual:
"Art. 81 – O policial militar da ativa será agregado e considerado para todos efeitos legais, como serviço ativo, quando:
(...)
VI – for posto à disposição de Secretaria de Estado ou outro órgão desta Unidade da Federação, de outro Estado ou Território para exercer função de natureza civil, exceto na hipótese prevista no inciso VII do §1º do art. 18 desta Lei"
– grifamos as partes que nos interessam.Lembra-se que as situações prevista no inciso VII, do art. 18, são, justamente, a função de subdelegado de polícia e no Departamento Estadual de Trânsito.
Por último, o mesmo raciocínio aplica-se aos ocupantes de funções em órgãos internacionais, em missão de paz. Neste caso, eles ficam agregados ao Ministério das Relações Exteriores, que é um ministério civil, inteiramente autônomo do Ministério da Defesa, onde estão, na órbita federal, os militares.
Inconcebível, portanto, que a Lei Estadual 5.757/95 tenha considerado função pública militar a exercida nos órgãos internacionais.
Ao cabo do exposto, e invocando a interpretação sistemática da Constituição, dessume-se que os militares são apenas e tão somente os seguintes agentes públicos, desde que lotados nas respectivas unidades operacionais:
a) os membros das Forças Armadas, que, por força do §3º, do art. 142, da CF/88, são denominados militares;
b) os membros das Polícias Militares, que, por força do art. 42, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
c) e, por fim, os membros dos Corpos de Bombeiros Militares, que, por força do art. 42, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Fora daí, ou seja, fora do quadro organizacional destas corporações, não há como a legislação ordinária, sem qualquer coeficiente de razoabilidade, considerar funções públicas militares (apenas para burlar o conceito constitucional de agregação) aquelas funções exercidas em órgãos totalmente estranhos às corporações castrenses, como a Polícia Civil, o Detran e o Ministério das Relações Exteriores.
2.3.2. A Violação ao Devido Processo Substantivo
A ausência de razoabilidade na definição de "função pública militar" imposta pelo legislador ordinário afronta, de forma direta (e não meramente reflexa), a cláusula do devido processo legal, em seu sentido substantivo, que, graças à contribuição jurisprudencial norte-america, galgou uma conotação objetiva, servindo como parâmetro de controle da discricionariedade legislativa: viola o devido processo legal e, portanto, a Constituição, a norma legal que não for razoável.
Nesse sentido, assim se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
"O princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do due process of law. (...)Cumpre enfatizar, neste ponto, que a cláusula do devido processo legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição, e que traduz um dos fundamentos dogmáticos do princípio da proporcionalidade - deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos resvestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.
Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal" (ADIMC-1755 / DF, rel. Ministro CELSO DE MELLO) – grifos nossos.
Impõe-se, em face de tudo o que foi exposto, a imediata eliminação da Lei Estadual vergastada do ordenamento jurídico, mediante a declaração de sua inconstitucionalidade, e o conseqüente reconhecimento de sua nulidade.