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Liquidação de consórcios:

responsabilidade do Banco Central e desconsideração da personalidade jurídica

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Ação civil coletiva visando a reconhecer a responsabilidade do Banco Central pela lesão a consumidores, em face da liquidação extrajudicial de duas grandes empresas de consórcio, bem como a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar os bens dos sócios e de uma empresa integrante do mesmo grupo econômico e familiar dos consórcios.

EXMO. SR. JUIZ FEDERAL DA VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE MINAS GERAIS.

            ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DO CONSUMIDOR - ABRASCON, entidade civil de direito privado, inscrita no CNPJ sob o nº 04.196.797/0001-03, com endereço nesta Capital à Rua Elói Mendes, nº 45, Bairro Sagrada Família, Cep 31.030-110, vem, à presença de V.Exª., para, com fulcro nos artigos 1º, II; 2º, 3º, 5º, "caput"; 11, 12, da Lei 7.347, de 24.07.85, que disciplina a Ação Civil Pública, e, ainda com fundamento nos artigos 6º, VI; 81, parágrafo único e incisos I e II; 82, I; 83, 84, "caput" e parágrafos 3º e 4º; 90 e 91 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11.09.90), propor a presente AÇÃO CIVIL COLETIVA com pedido de tutela antecipada, visando a tutela preventiva de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, em face de UNIAUTO ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIOS LTDA – EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL, empresa inscrita no CNPJ sob o n. 21.334.974, situada na Rua Rio de Janeiro, n. 1.462, Bairro de Lourdes, nesta Capital, CONSÓRCIO NACIONAL LIDERAUTO LTDA – EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL, empresa inscrita no CNPJ sob o n. 65.144.404, situada na Rua Rio de Janeiro, n. 1.462, Bairro de Lourdes, nesta Capital, RIVADÁVIA SALVADOR DE AGUIAR, brasileiro, divorciado, empresário, inscrito no CPF sob o n. 109.399.976-49, residente e domiciliado nesta Capital na Rua Rogério Fajardo, n. 160, apt. 1302, Bairro Mangabeiras, GERALDO SALVADOR DE AGUIAR, brasileiro, casado, empresário, inscrito no CPF sob o n. 091.270.466-72, residente e domiciliado na rua Bernardo Guimarães, n. 83, apartamento n. 1402, Bairro Funcionários, nesta Capital, NILZA DE LOURDES AGUIAR CAMPOS, brasileira, viúva, empresária, inscrita no CPF sob o n. 991.406.756-53, residente e domiciliada na Rua Alameda dos Coqueiros, n. 40, Pampulha, nesta Capital, ESPÓLIO DE ARILDO PEREIRA CAMPOS, representado por sua inventariante NILZA DE LOURDES AGUIAR CAMPOS, já qualificada nos autos, UNIÃO PATRIMONIAL LTDA, no endereço da Rua Aimorés, n. 1856, Bairro Lourdes nesta Capital e BANCO CENTRAL DO BRASIL, situado na Av. Álvares Cabral, n. 1605, nesta Capital, tudo de conformidade com os fundamentos fáticos e jurídicos a seguir aduzidos:


DA AÇÃO CIVIL COLETIVA DISCIPLINADA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

            O instituto da ação civil coletiva, disciplinada pelo Código de Defesa do Consumidor e supletivamente pela Lei 7.347/85, é vocacionado à tutela do consumidor em sua dimensão coletiva, podendo ser utilizado como instrumento para proteger tanto interesses difusos como coletivos, e mesmo os denominados individuais homogêneos.

            Insta ressaltar que, no regime estatuído pelo Código de Defesa do Consumidor, são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos dos consumidores (art. 83). Se a Lei 7.347/85 restringia a ação civil pública à defesa de interesses difusos e coletivos, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 90, inova ao possibilitar a tutela coletiva de interesses individuais, quando decorrentes de origem comum, evitando com isso o ajuizamento de milhares de ações, proporcionando economia de tempo e dinheiro para as partes e para o Poder Judiciário.

            A classificação de um direito ou interesse como difuso, coletivo ou individual homogêneo está intimamente relacionada ao tipo de pretensão jurisdicional pleiteada, sendo possível, e mesmo comum, encontrar, em uma mesma ação, pedidos relativos a mais de uma espécie de interesse.

            Segundo o jurista Nelson Nery Júnior, "a pedra de toque do método classificatório é o tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a competente ação judicial. Da ocorrência de um mesmo fato, podem originar-se pretensões difusas, coletivas e individuais."(Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Forense Universitária, 1992, p. 621)

            A importância das ações coletivas deve ser aferida em face da ordem constitucional vigente que incrementou, de forma considerável, o arsenal de instrumentos jurídico-processuais aptos a propiciarem a tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Evita-se, dessa forma, a pulverização de litígios similares e, ao mesmo tempo, assegura uma maior efetividade ao respeito dos direitos positivados na legislação pátria.

            A preocupação com a eficácia dos direitos contemplados no direito positivo parece ser a nota característica que se depreende do microcosmo normativo consubstanciado no Código de Defesa do Consumidor. Inicialmente, mitigou-se a autoridade do princípio do pacta sunt servanda nas relações de consumo, estipulou-se normas de caráter cogente e inderrogável, estabeleceu-se remédios para viabilizar o equilíbrio processual (inversão do ônus da prova, v.g.), admitiu-se a vulnerabilidade jurídica do consumidor, acolheu-se a teoria do risco e, por fim, contemplou-se instrumentos processuais valiosos para o atendimento das diretrizes da política nacional de relações de consumo.

            Portanto, não há como se olvidar que o Codex Consumerista constitui-se como norma protetiva, de ordem pública, caráter social, dotada de sólido estofo constitucional e cujas prescrições são inderrogáveis.

            Caracteriza-se na verdade o Diploma Consumerista como norma mista, uma vez que não abarca em seu bojo apenas normas substantivas, apresentando, outrossim, normas processuais que procuram fornecer os meios adequados para a aplicação justa da vontade da lei. Os capítulos do CDC, dedicados à defesa do consumidor em juízo, são, indubitavemente, uns dos mais pródigos em inovações, haja vista a previsão de mecanismos facilitadores para a postulação judicial dos direitos titularizados pelos consumidores. Eis que o tratamento normativo conferido às ações coletivas ganha um destaque especial, já que, com o advento do Diploma Consumerista, admitiu-se a defesa coletiva dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, nos moldes da class actio norte-americana.

            A ação ora manejada se revela, nesse particular, um remédio hábil para minimizar a incerteza jurídica que se instalou com a questão vertente, solucionando, através do mecanismo da eficácia erga omnes, todas as situações fáticas que se enquadrem no possível decisum a ser proferido.

            Por fim, ressalte-se que, somente por intermédio de ações desse jaez, é que se pode assegurar uma proteção efetiva aos direitos vulnerados no âmbito de uma sociedade de consumo de massa, já que muitos são os obstáculos existentes para que o consumidor tenha acesso à Justiça.

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            Além da delonga para a distribuição da tutela jurisdicional, os custos elevados de uma contenda judicial acabam por excluir grande parte dos consumidores lesados, obrigando-os a se resignarem ante as muralhas erigidas para adentrarem nas vias judiciárias.


DA LEGITIMIDADE DA ENTIDADE AUTORA

            A entidade autora, qualificada no preâmbulo desta exordial, encontra-se legalmente legitimada para propor a presente ação civil coletiva, conforme se infere da análise do art. 5º da Lei de Ação Civil Pública, alterada pelos arts. 110 a 117 do Código de Defesa do Consumidor e do disposto no art. 82, IV e § 1º da Lei nº 8.078/90.

            Assim sendo, as entidades de defesa do consumidor foram equiparadas ao Ministério Público, adquirindo legitimidade para postular a tutela judicial protetora dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores. Nesse sentido, dispõe o art. 82 do Código de Defesa do Consumidor:

            "Art. 82 - Para os fins do art. 100, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

            (...)

            IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização assemblear. (grifos nossos)


DA SITUAÇÃO FÁTICA

            A presente ação civil coletiva visa a proteger a coletividade dos consumidores lesados pela paralisação das atividades dos consórcios UNIAUTO e LIDERAUTO, tendo em vista recente liquidação extrajudicial decretada pelo Banco Central do Brasil, com base na Lei n. 6.024 de 1974. Mais de 12,5 mil pessoas em todo Brasil, sobretudo no Estado de Minas Gerais, foram surpreendidas com a notícia de que o investimento feito para a aquisição de uma carta de crédito através da adesão a um grupo de consórcio foi em vão, eis que a situação financeira debilitada destas empresas não autoriza qualquer possibilidade real de recuperação dos valores despendidos.

            Os grandes veículos de comunicação têm noticiado o desespero de pessoas que investiram importâncias até mesmo superiores a 30 mil reais, e agora estão às voltas com a ameaça de perderem tudo que pagaram. Enquanto isso, os sócios e administradores das rés desfrutam de uma vida nababesca, deixando os consumidores à sua própria sorte.

            Causa especial indignação o fato de que os acontecimentos que resultaram na liquidação extrajudicial das indigitadas instituições financeiras não podem ser atribuídos a fenômenos macroeconômicos ou qualquer evento de força maior, mas sim à gestão fraudulenta adotada pelos administradores e sócios diretores destas empresas, lançando-as à bancarrota e juntamente com elas milhares de consorciados incautos que acreditavam ter feito um bom negócio.

            Não é de hoje que os brasileiros presenciam escândalos que envolvem recursos da economia popular. A facilidade com que essas empresas atuam no mercado financeiro, à revelia inclusive da fiscalização do Banco Central, favorece a ação maliciosa de pessoas que administram irresponsável e fraudulentamente dinheiro alheio.

            A verdade que veio à tona após a publicação do decreto de liquidação extrajudicial das empresas de consórcio foi no sentido de que, desde 1996, as atividades das mesmas estavam sendo objeto de investigação por parte do Banco Central, embora muitos consumidores não tenham sido devidamente informados a respeito da gravidade dos problemas que foram detectados pela autarquia. Não foram poucas as pessoas que procuraram o BACEN para se informar a respeito da idoneidade dessas empresas e receberam a resposta de que inexistiam quaisquer óbices para a adesão a um determinado grupo de consórcio disponibilizado por elas.

            A imprensa tem noticiado amplamente que o patrimônio negativo da UNIAUTO e LIDERAUTO torna remota a esperança dos consumidores serem ressarcidos em face dos valores desembolados, até mesmo considerando a lista de credores privilegiados. Os consorciados figuram como credores quirografários, ou seja, os últimos a receberem qualquer valor por força do rateio a se operar com a alienação dos bens das empresas em liquidação extrajudicial.

            A solução que se vislumbra é a desconsideração da personalidade jurídica das empresas para atingir o patrimônio dos sócios e gerentes, em razão da ocorrência de fatos que se enquadram nos permissivos legais. Vale destacar que o prejuízo causado aos consumidores supera a cifra de R$ 19,9 milhões.

            Os réus Geraldo Salvador Aguiar e Rivadávia Salvador Aguiar figuravam como controladores do consórcio UNIAUTO. Já o Consórcio LIDERAUTO tinha como controlador ARILDO PEREIRA CAMPOS até 1999 (cunhado do réu Rivadávia), quando este faleceu, passando a empresa a ser controlada por NILZA DE LOURDES AGUIAR CAMPOS (irmã de Rivadávia).


A MÁ ADMINISTRAÇÃO E GESTÃO FRAUDULENTA PRATICADAS PELOS ADMINISTRADORES DA LIDERAUTO E UNIAUTO – PRESSUPOSTOS PARA A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

            O Banco Central do Brasil, desde o ano de 1996, já havia detectado inúmeras irregularidades cometidas pelos sócios Rivadávia Salvador de Aguiar e Geraldo Salvador de Aguiar na administração da Uniauto Administradora de Consórcios Ltda, quais sejam, contemplação de consorciados cujos CPFs não constavam do cadastro de pessoas físicas da Secretaria da Receita Federal; adiantamentos a fornecedor sem resguardar interesses dos grupos; contabilidade em desacordo com a legislação. Essas conclusões constam do relatório final datado de 11 de novembro de 1997 (processo administrativo n. 9600608616), tendo sido encaminhado expediente para o Ministério Público Federal para a adoção das medidas penais cabíveis.

            Causa espanto o fato de que estas irregularidades apontadas pelo BACEN tiveram início no ano de 1995, não sendo possível conceber que estas instituições financeiras continuaram funcionando no mercado como se idôneas fossem com a chancela do Banco Central. A principal ilicitude apurada foi a fraude cometida pelos administradores do UNIAUTO em razão de contemplações feitas em favor de consorciados cujos CPFs foram forjados. O BACEN apurou que 90 (noventa) dos automóveis entregues à empresa MAXIMA VEÍCULOS LTDA até a data de 26.01.96, 42 (quarenta e dois) referiam-se a cotas pertencentes a consorciados com CPF falsos. Os administradores da empresa também lesaram os consorciados quando, através de meios fraudulentos, concederam adiantamentos em favor da MAXIMA VEÍCULOS LTDA, no total de R$ 4.500.00,00, visando na verdade capitalizá-la com dinheiro alheio. Citem-se as conclusões da representação do BACEN encaminhada ao MPF:

            "Assim, ficou evidenciado que, de um total de 152 (cento e cinquenta e duas) cotas, pelo menos 139 (cento e trinta e nove) referiam-se a cotas a contemplar ou mesmo contempladas mas que não tinham vinculação com os adiantamentos de recursos concedidos à Concessionária, configurando a operação, na realidade, empréstimo de recursos à Máxima Veículos, irregularidade esta, em tese, passível de enquadramento no art. 5 da Lei n. 7492 de 1986."

            O prejuízo causado aos grupos de consórcios em razão destas manobras ilícitas superou a cifra de 2 milhões de reais no ano de 1996, considerando tão-somente os rendimentos que o numerário repassado para a empresa MÁXIMA poderia proporcionar caso continuasse aplicado no mercado financeiro. A verdade é que os administradores da UNIAUTO, de forma inescrupulosa e à revelia da legislação que rege o sistema financeiro nacional, injetaram recursos na combalida empresa MÁXIMA VEÍCULOS, cuja falência veio a ser decretada em 26.05.97 pela 2a Vara de Falências e Concordatas de Belo Horizonte-MG. A dívida que a empresa falida apresentava na época era de exatamente R$ 4.399.371,61 em relação à UNIAUTO, que apresentou uma proposta junto ao Banco Central para o pagamento da dívida de titularidade da empresa MÁXIMA, tendo em vista os adiantamentos ilícitos realizados e também as contemplações irregulares feitas com o escopo de encobrir a transferência ilegal de recursos. Não obstante as garantias fornecidas pela empresa UNIÃO PATRIMONIAL LTDA, holding do grupo, o Banco Central reconheceu que a proposta feita pela não seria capaz de repor os recursos indevidamente desviados dos Grupos, razão pela qual ofereceu representação perante o Ministério Público Federal (MPF) para a adoção das providências cabíveis.

            Note-se que este relatório foi encaminhado ao BACEN ainda em 1997, sendo que, naquela época, a UNIAUTO já estava impedida formalmente de constituir novos grupos, situação que posteriormente veio a se modificar. A ação penal proposta no ano de 2000 pelo MPF foi distribuída para a 4a Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais. O julgamento da ação ocorreu em 8 de fevereiro de 2002, conforme sentença prolatada pelo Juiz Federal Substituto Jorge Gustavo Serra de Macedo Costa, tendo sido os réus Geraldo Salvador de Aguiar e Rivadávia Salvador de Aguiar condenados por crime contra o sistema financeiro, qual seja gestão fraudulenta, tipificado no art. 4o da Lei n. 7.492 de 1996. O douto magistrado invocou como razão de decidir a representação da fiscalização do Banco Central, concluindo:

            "Reunidos todos esses aspectos, reveladores da conduta e intenção dos acusados, tenho que restou demonstrada a prática de gestão fraudulenta, realizada através dos sucessivos atos de administração que tinham por objetivo nítido fraudar a fiscalização, camuflando a operação irregular e temerária aos interesses da empresa.

            (...)

            A ação dos acusados, pois, subsume-se, a meu ver, ao tipo penal descrito no art. 4, caput, da Lei n. 7.496 de 1986.

            Como anota MANOEL PEDRO PIMENTEL:

            ‘Por gestão fraudulenta deve entender-se todo ato de direção, administração ou gerência, voluntariamente consciente que traduza manobras ilícitas, em emprego de fraudes, ardis e empregos.’ (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Ed.Revista dos Tribunais, 1987, página 49)

            Desse modo, o delito para restar configurado exige que as atividades de gestão (administração) estejam cunhadas de malícia, ardis, fraudes e manobras que se colocam contra a probidade inerente às atividades financeiras que, a despeito de praticadas por particulares, na sua essência, são tuteladas pelo Estado, tendo em vista que este visa preservar o alicerce e solidez de todo um sistema, cujo abalo pode provocar sérios e graves prejuízos para a sociedade."

            Em razão do exame dos fatos narrados, pode-se inferir a plena aplicabilidade do disposto no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, que trata do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, in verbis:

            "Art. 28. O Juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração."

            Muitos chegaram a defender a tese de que a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica alijaria a autonomia da pessoa jurídica. Contudo, o que prevalece hoje é a noção de que a pessoa jurídica deve atender ao fim para o qual foi concebida, não podendo jamais servir como obstáculo ao justo ressarcimento das pessoas lesadas. Nos casos em que houver a demonstração de fraude, abuso de direito, infração à lei etc., afasta-se a autonomia patrimonial da pessoa jurídica até que se obtenha a total satisfação do dano sofrido pelo consumidor.

            Para a aplicação deste importante instrumento jurídico, que visa a proteger os interesses da parte vulnerável em uma relação de consumo, é importante que o consumidor tenha sido prejudicado, em face de atos ilícitos ou até mesmo em razão do encerramento das atividades de uma empresa em decorrência de má administração. Estes pressupostos encontram-se materializados na espécie, já que restou sobejamente demonstrado nos autos que os réus pessoas físicas fazem parte de um mesmo grupo familiar que conduziu à bancarrota os dois consórcios, seja em razão da prática de crimes tipificados como gestão fraudulenta, seja em face de má gestão.

            Não se pode, contudo, banalizar a aplicação da teoria da disregard doctrine, porquanto consiste em uma excepcionalidade estabelecida no Código de Defesa do Consumidor e em outros diplomas legais específicos, quando restam presentes situações verossímeis que evidenciem a burla, o abuso de direito, a desídia e má administração, não se admitindo que a personalidade jurídica da empresa sirva como escudo para obstaculizar o ressarcimento dos prejuízos dos consumidores, razão pela qual o patrimônio pessoal dos administradores, gerentes e sócios respondem pelos danos causados.

            Como bem anota ZELMO DENARI em comentário ao "CÓDIGO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR", Forense Universitária, 2ª edição, pág.130: "O art. 28 reproduz todas as hipóteses materiais de incidência que fundamentam a aplicação da ´disregard doctrine´ às pessoas jurídicas, a saber: o abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito e violação dos estatutos ou contrato social. O dispositivo protege amplamente o consumidor, assegurando-lhe livre acesso aos bens patrimoniais dos administradores sempre que o direito subjetivo de crédito resultar de quaisquer das práticas abusivas elencadas no dispositivo".

            Este é também o entendimento da jurisprudência:

            PROCESSUAL CIVIL E DIREITO COMERCIAL – FALÊNCIA – EXTENSÃO DOS EFEITOS – COMPROVAÇÃO DE FRAUDE – APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA – RECURSO ESPECIAL – DECISÃO QUE DECRETA A QUEBRA – NATUREZA JURÍDICA – NECESSIDADE DE IMEDIATO PROCESSAMENTO DO ESPECIAL – EXCEÇÃO À REGRA DO ART. 542, § 3º DO CPC - DISSÍDIO PRETORIANO NÃO DEMONSTRADO.

            (...)

            III – Provada a existência de fraude, é inteiramente aplicável a Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica a fim de resguardar os interesses dos credores prejudicados.

            IV - Recurso especial não conhecido.

            (STJ. RESP 211619/SP. DJ DATA:23/04/2001 PG:00160. Relator(a) Min. EDUARDO RIBEIRO (1015) Rel. p/ Acórdão Min. WALDEMAR ZVEITER)

            RESPONSABILIDADE CIVIL. NAUFRÁGIO DA EMBARCAÇÃO "BATEAU MOUCHE IV". ILEGITIMIDADE DE PARTE PASSIVA "AD CAUSAM". SÓCIOS. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA´. DANOS MATERIAIS. PENSIONAMENTO DECORRENTE DO FALECIMENTO DE MENOR QUE NÃO TRABALHAVA.

            (...)

            Acolhimento da teoria da "desconsideração da personalidade jurídica". O Juiz pode julgar ineficaz a personificação societária, sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros.

            (STJ. RESP 158051/RJ. DJ DATA:12/04/1999 PG:00159. Relator(a) Min. BARROS MONTEIRO)

            SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA - CHEQUE SEM FUNDOS - DESCONSIDERACAO DA PERSONALIDADE JURIDICA - SOCIO DIRIGENTE - RESPONSABILIDADE SOLIDARIA E ILIMITADA - ART. 10 DO DECRETO 3708/10 –

            A emissão de cheque sem provisão de fundos, por sócio-gerente majoritário de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, constitui ato ilícito e fraudulento a provocar a incidência do art. 10 do Decreto 3708/10 e a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade mercantil, a fim de permitir que seu dirigente responda solidaria e ilimitadamente pela divida, notadamente quando a empresa não possuir bens suficientes para solvê-la. –

            A disregard doctrine, de origem anglo-saxonica, é o instrumento de que se vale o direito para coibir que a personalidade jurídica seja usada como anteparo para a fraude e para a pratica de atos ilícitos, violadores do bom ordenamento jurídico.

            Se o estado reconhece personificação as sociedades mercantis, através da ficção da personalidade jurídica, segundo as regras normativas, pode determinar os limites para essa concessão, bem como retirar-lhe a eficácia, ainda que temporariamente, a fim de viabilizar a fiel observância das normas legais.

            (TAMG AI 219258-9. RJTAMG 64/79)

            Ante essas premissas, é inquestionável que a desconsideração da personalidade jurídica é medida perfeitamente enquadrável no caso em tela, já que a gestão fraudulenta, a violação à lei e o abuso de direito praticados pelos sócios e diretores estão mais do que patenteados, em razão das conclusões exaradas pelo Banco Central, pelo Ministério Público Federal e, finalmente, em face do entendimento esposado pelo Juiz Federal Substituto da 4a Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. Por outro lado, sobretudo em relação aos outros sócios não incriminados pelo BACEN e pela Justiça, há de se invocar o pressuposto que autoriza a incidência deste instituto para a hipótese de má administração, mesmo que não tenha havido fraude ou abuso de direito. Nesse aspecto, a lição de Flávia Lefèvre Guimarães merece ser transcrita:

            "Vale notar que nesta hipótese a desconsideração da pessoa jurídica acontece independentemente de se configurar fraude ou abuso de direito, o que, mais uma vez, represente inovação no que tange a disregard doctrine. Fábio Ulhoa Coelho ensina que ‘não se deve esquecer das hipóteses em que a desconsideração da autonomia da pessoa jurídica prescinde da ocorrência da fraude ou de abuso de direito. Somente diante do texto expresso de lei poderá o juiz ignorar a autonomia da pessoa jurídica, sem indagar da sua utilização com fraude ou abuso de direito.’" (Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código do Consumidor. P. 72)

            Os elementos trazidos aos autos são suficientes para deixar bem claro que os administradores das instituições em liquidação extrajudicial atuaram de forma desidiosa e incompetente, conduzindo as empresas a um estado financeiro caótico. O exemplo emblemático das transferências fraudulentas de recursos para a empresa MÁXIMA, bem como tantos outros que culminaram no decreto de liquidação extrajudicial, são robustos o bastante para autorizar a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

Sobre os autores
Daniel Diniz Manucci

advogado em Minas Gerais

Roberto C. Santos

advogado em Belo Horizonte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANUCCI, Daniel Diniz; SANTOS, Roberto C.. Liquidação de consórcios:: responsabilidade do Banco Central e desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16505. Acesso em: 23 dez. 2024.

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