O Governo do Estado de São Paulo enviou à Assembléia Legislativa Projeto de lei prevendo o incentivo fiscal do ICMS, consistente na concessão de crédito de 30% do valor do imposto a favor do adquirente da mercadoria que exigir a nota fiscal tradicional ou a nota fiscal eletrônica.
O valor desse crédito poderá ser utilizado para pagamento do IPVA, créditos em conta corrente, em caderneta de poupança, em cartão de crédito, ou ser transferido a terceiros, pessoas físicas ou jurídicas.
Impressionante como uma coisa ruim se espalha rapidamente. Esse projeto legislativo estadual é uma versão que causa menos mal do que a Lei Municipal nº 14.097, de 9/10/2005, que instituiu a nota fiscal eletrônica e, ao mesmo tempo, concedeu ao tomador de serviços um crédito fiscal que varia de 5% a 30% do valor do ISS consignado na nota fiscal eletrônica. Esse crédito fiscal é destinado ao abatimento de até 50% do valor do IPTU relativo ao imóvel indicado pelo interessado. Procurou-se, por via sub-reptícia, atingir os contribuintes representados por sociedades de profissionais liberais, não obrigados, legalmente, à adoção da nota fiscal, porque tributados por alíquotas fixas, na forma da lei de regência nacional do ISS, forçando-os a aderir ao programa de nota fiscal eletrônica. Dentro da política de que ‘o fim justifica o meio’, fomenta-se a animosidade entre prestador de serviço e seu cliente efetivo ou em potencial, negando e contrariando um dos fundamentos do Direito, que é exatamente o de reger a sociedade em harmonia, nunca promover discórdias.
Ao menos o projeto legislativo do Estado de São Paulo não afasta do mercado de concorrência os prestadores de serviços que não utilizam notas fiscais eletrônicas, como o faz a lei paulistana.
Não é crível como podem os poderes públicos regredir à década de 60, quando vigorava o chamado ‘Talão da Fortuna’, consistente na entrega de notas fiscais à Secretaria da Fazenda para trocá-las por cupões de prêmios, sorteados mensalmente, como forma de combater a sonegação mediante utilização dos consumidores.
Um país recordista mundial em termos de imposição tributária deveria aparelhar melhor seus órgãos fiscalizadores e arrecadatórios como, aliás, determina a Constituição Federal em seu art. 37, XXII, elegendo as administrações tributárias dos entes federativos como atividades essenciais ao funcionamento do Estado, prescrevendo reserva de recursos financeiros prioritários para a realização de suas atividades.
Mas não: os governantes sucateiam os órgãos administrativos tributários e, para compensar a ineficiência desses órgãos, conseguem aprovação de projetos legislativos cada vez mais truculentos contra os indefesos contribuintes, de um lado; e, de outro lado, instituem incentivos fiscais, transformando os mesmos contribuintes em agentes fiscais auxiliares para utilizar meios de coerção indireta contra outros contribuintes. Parece que a promiscuidade entre as relações de direito privado e as de direito público está sendo aos poucos institucionalizada por conta de incautos tecnocratas que não têm a visão global das coisas. Só conseguem ver o que está muito bem próximo de sua face.
Ora, esses incentivos exigem procedimentos burocráticos de ambos os sujeitos da relação tributária, principalmente para o fisco, encarecendo o custo da máquina administrativa.
Outrossim, incentivos assim concedidos violentam os princípios orçamentários. Deduções do IPTU e IPVA acarretam a arrecadação desses tributos em montantes menores do que aqueles estimados na lei orçamentária anual, com base em critérios legais e objetivos previstos na lei de regência. A concessão do valor do incentivo em dinheiro, por sua vez, acaba criando uma despesa imprevista na lei orçamentária, com grave violação do princípio constitucional da fixação de despesas.
Como se vê, a própria Administração arma um mecanismo de total descontrole orçamentário, à medida em que receita menor ou despesa maior depende exclusivamente da vontade de cada consumidor, sobre a qual o poder público não tem como exercer o controle direto.
Por isso, a Lei de Responsabilidade Fiscal prescreve que a instituição, previsão e efetiva arrecadação de tributos constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal (art. 11). Qualquer concessão ou ampliação de benefício fiscal existente deverá ser acompanhada de estimativa de impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, além de atender aos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias e estar acompanhada de medidas de compensação, por meio de aumento das receitas, proveniente de elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo (art. 14).
Como se vê, não há como reduzir receita deste ou daquele imposto sem compensação mediante aumento de outros tributos. A razão é simples! A supressão parcial de receita não implica, nem pode implicar, supressão de despesa na mesma proporção. As necessidades públicas existem e elas devem ser satisfeitas com os recursos previstos na lei orçamentária anual.
Nem a lei municipal retromencionada nem o projeto legislativo sob comento atendem aos requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal. Esses instrumentos normativos configuram atos de improbidade legislativa.
No caso do ICMS, há ainda o agravante de abrir, indiretamente, mais uma frente na ‘Guerra Tributária’ que tem tomado grande parte do precioso tempo do STF.
O Projeto de Reforma Tributária em discussão preconiza o fim dessa ‘Guerra Tributária’ instituindo a tributação do ICMS no Estado de destino. Porém, o Estado de São Paulo, que, curiosamente, concordou com essa alteração constitucional, está para abrir uma nova frente de confronto com outros Estados, ainda que com propósitos outros.
Mas a constatação mais grave que exsurge de ambos esses instrumentos normativos é que a carga tributária legal do Município de São Paulo e do Estado de São Paulo está além das necessidades dos gastos públicos. Do contrário, o Município e o Estado de São Pauloo não poderiam estar abrindo mão de 30% do produtos de arrecadação do ISS e do ICMS, respectivamente. Significa, por exemplo, que o ICMS poderia ser reduzido para 12,6% em vez de 18%. Se o Estado tiver vocação e vontade política de aparelhar a Administração Tributária com recursos materiais e pessoais para aperfeiçoar e tornar eficaz as atividades de fiscalização e de arrecadação, conseguirá obter o mesmo resultado final do que está conseguindo obter com a atual alíquota de 18%.