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A aplicação do princípio da insignificância no roubo é possível?

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O presente estudo tem como objetivo estabelecer o alcance do chamado princípio da insignificância em relação aos chamados crimes complexos, especialmente o roubo, analisando ainda conceitos basilares da Ciência Penal.

Quando o Estado separou-se formal e materialmente da igreja, afastando entre si as idéias de crime e pecado, avançou-se consideravelmente ao que hoje conhecemos como Direito Penal do Fato. E o maior fruto deste movimento foi criado, em 1906, por Ernest von Beling: o tipo penal. Se inicialmente ele abrangia as idéias que hoje conhecemos como o conteúdo do delito, a culpabilidade, a antijuridicidade e a materialidade do fato penal, o próprio Beling se encarregou, em um segundo momento, de restringir o "Tatbestand", que passou a ser a mera previsão dos elementos descritivos do crime, desprovido de valoração. [01]

Desde a edição do Die Lehre vom Verbrechen, passando pelas escolas neokantistas e finalistas, o tipo penal vem agregando diversos valores que transcenderam a simples disposição fática violadora de determinado bem da vida. Com o fim da Segunda Grande Guerra, o mundo se apercebeu de que a lei não prescinde de teleologia social e humana, idéia esta que ecoou, inclusive, no seio da comunidade jurídico-penal.

Nascia a idéia da tipicidade material, que vem dar sentido à fria letra penal. Para que o fato seja considerado penalmente típico, não basta o seu etiquetamento ao dispositivo legalmente enquadrável: a norma vai além, buscando não só tutelar os bens jurídicos penalmente relevantes, e que estão previstos no tipo, como também se esses bens jurídicos foram efetivamente lesados.

Em outras palavras, o fato natural, para ser qualificado como típico, há de não só estar previsto em lei como delito, mas ainda se revelar como fato lesivo ao bem jurídico tutelado, no caso concreto. E justamente dentro da tipicidade material que surge o chamado princípio da insignificância. [02]

Criado por Claus Roxin, tal princípio veio complementar uma criação de Hans Welzel, a qual chamou de princípio da adequação social. O criador da escola finalista dizia que, em dadas situações, uma conduta socialmente aceita e adequada não seria considerada ilícita, ainda que a lei, aparentemente, proíba tal conduta. Como princípio geral de hermenêutica [03], os tipos e conceitos neles empregados devem ser entendidos na totalidade social, e não somente em um sentido causal-exterior. Para Welzel, a função metódica da adequação social "consiste em recortar das palavras formais dos tipos, aqueles acontecimentos da vida que materialmente a eles não pertencem, e em que, com isso, se consegue que o tipo seja realmente uma tipificação do injusto penal". [04]

Pelo princípio da insignificância, reconhecido como regra auxiliar de interpretação, o direito penal só vai até onde necessário para a proteção do bem jurídico. O fato pode até ser açambarcado pelos demais ramos do direito (civil, administrativo, empresarial etc), mas não será objeto de apreciação pelo direito penal.

O princípio da insignificância é amplamente aceito na doutrina brasileira, não sendo nenhuma novidade a sua aplicação pelos Tribunais Pátrios. [05]

Entretanto, a jurisprudência sempre foi avessa à aplicação do princípio da insignificância em crimes praticados com violência ou grave ameaça, como é o caso do roubo. A propósito, vale destacar dois recentes julgados do STF. O primeiro, RE-AgR 454394 / MG, julgado em 02/03/2007, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, é categórico: "1. Princípio da insignificância e crime de roubo É da jurisprudência do Supremo Tribunal que o princípio da insignificância não se aplica ao delito de roubo (v.g. AI 557.972, 2ª T., 07.03.03, Ellen Gracie, DJ 31.03.06)" (negritamos). O segundo, AI-AgR 557972 / MG, julgado em 07/03/2006, relatado pela Min. Ellen Gracie, vai além e explicita: "Inaplicável o princípio da insignificância ao delito de roubo (art. 157, CP), por se tratar de crime complexo, no qual o tipo penal tem como elemento constitutivo o fato de que a subtração de coisa móvel alheia ocorra "mediante grave ameaça ou violência a pessoa", a demonstrar que visa proteger não só o patrimônio, mas também a integridade pessoal". [06]

Não obstante respeitável fundamentação do Excelso Pretório, entendemos que o princípio da insignificância pode, sim, ser aplicado ao delito de roubo, dentro do mesmo raciocínio utilizado neste último julgado, porém com conclusão diversa. Senão vejamos.

Como bem dito, o crime de roubo pode ser classificado como delito complexo. Segundo MESTIERI [07], no crime complexo "o tipo é cumprido mediante a lesão típica e necessária de dois ou mais bens jurídicos protegidos". A ação é única, "sendo um só, também, o tipo cumprido, apesar da presença, na fattispecie, de ‘elementos constitutivos que por si mesmos constituem crimes’". [08]

MIRABETE, mais específico, chama a atenção para duas espécies de crimes complexos. Assim, "são complexos os crimes que encerram dois ou mais tipos em uma única descrição legal (crime complexo em sentido estrito) ou os que, em uma figura típica, abrangem um tipo simples, acrescido de fatos ou circunstâncias que, em si, não são típicos (crime complexo em sentido amplo)". [09] E como exemplo de crime complexo em sentido estrito, o saudoso mestre paulista cita o roubo, "que nada mais é que a reunião de um crime de furto (art. 155) e de ameaça (art. 147) ou lesão (art. 129), ofendendo o patrimônio e a liberdade psíquica da vítima ou sua integridade corporal". [10]

Ou seja, mais do que atingir dois bens jurídicos protegidos pela norma penal, o crime de roubo se perfaz, em tese, com a ocorrência de dois tipos penais: furto (lesão ao patrimônio), e um segundo tipo, que pode ser constrangimento ilegal ou ameaça (lesão à liberdade individual) ou lesão corporal (lesão à integridade física).

Pois bem.

Topologicamente, ninguém duvida que o roubo é um crime contra o patrimônio. Dir-se-ia tratar de crime de furto, qualificado pela violência ou grave ameaça (neste momento, estamos a desconsiderar a última figura do tipo "ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência", que seria espécie de crime complexo em sentido amplo). Assim, se é crime contra o patrimônio, imprescindível se mostra a lesão patrimonial.

O problema se mostra quando o "roubo" é praticado para a subtração de bens que são extremamente insignificantes para o direito penal, com o reconhecimento de sua insignificância para a configuração do delito de furto. [11]

Se a lesão é ao patrimônio, já que tanto furto quanto roubo são crimes contra o patrimônio, não se pode, dentro do mesmo quantitativo, ter-se determinado bem insignificante para um delito e relevante para outro. Um furto ou um roubo de um boné que custe R$ 5,00 (cinco reais) será, na órbita patrimonial, relevante ou não, insignificante ou não, qualquer que seja o delito.

Ou seja, por se tratarem de crimes contra o patrimônio, se a coisa há de ser considerada insignificante pela tutela penal, pouco importa qual delito temos em tela, seja furto, seja roubo, seja extorsão, dano, apropriação indébita etc. No caso, sendo o patrimônio lesado irrelevante para o direito penal, aplica-se a insignificância, seja pelo princípio da intervenção mínima, da subsidiariedade, da fragmentariedade...

Outro argumento pode ser usado para o que aqui defendemos: qual conduta seria mais relevante, em ordem decrescente?

1.o furto de um boné que valha cinco reais?

2.o roubo do mesmo boné?

3.o constrangimento a que alguém é levado, por exemplo, despindo-se em rua movimentada, mediante violência ou grave ameaça?

Dúvida alguma temos em dizer que a conduta "3" é mais grave que a "2", que é mais grave que "1". E por que a conduta "3" (mais grave) deveria perfazer uma pena de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano em sua modalidade simples (art. 146, caput), e a conduta "2" (menos grave) seria asseverada com pena de reclusão de, no mínimo, 4 (quatro) anos (art. 157, caput)?

Este exemplo nos leva a afirmar que, em nome dos princípios da igualdade e do devido processo legal substancial, a conduta "2" deveria receber o mesmo tratamento dispensado ao delito de constrangimento ilegal.

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Assevera-se que, não obstante não se tratar de delito de roubo, uma vez que o patrimônio irrelevante não há de ser tutelado pelo direito penal, punir-se-ia o agente pelo delito remanescente: seja lesão corporal, ameaça ou constrangimento ilegal. O que não se pode, de forma alguma, é tipificar a subtração de coisa alheia móvel bagatelar mediante violência ou grave ameaça como roubo.

Não é o caso de se aplicar aquilo que se convencionou chamar de "princípio da irrelevância penal do fato". [12] É certo que a aplicação de tal princípio, na prática, é mais benéfica ao réu. Entendemos, porém, que por se tratar de crime complexo, há de se averiguar a conduta remanescente: se a mesma, isoladamente, constituir em delito, deve o agente responder; caso contrário, como seria, em tese, na última parte do caput do art. 157 do CPB, teríamos total atipicidade da conduta.

Resumindo: o crime de roubo, como leciona o Excelso Pretório, é delito complexo, que protege não só o patrimônio, mas também a integridade pessoal. O crime de roubo tutela o patrimônio e a liberdade pessoal, e não o patrimônio ou a liberdade pessoal. Desta forma, desconsiderado o patrimônio, por sua insignificância material, resta averiguar a lesão ao outro bem tutelado. Restando algum delito (v.g., constrangimento ilegal, ameaça, lesão corporal), pune-se o agente pelo remanescente. Não sendo a conduta residual asseverável, reconhece-se a atipicidade da conduta.


Notas

01 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, 1ª ed., v. II, Campinas, Ed. Millennium, 1997, p. 95

02 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Ímpetus, 2003, p. 176.

03 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 4ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 1991, p. 131.

04 WELZEL, Hans. Direito Penal. Tradução de Afonso Celso Rezende, 2ª tiragem, Campinas, Ed. Romana, 2004, p. 109.

05 ASSIS TOLEDO (op. cit.), em nota de rodapé, cita histórico julgado do STF, que entendeu descabida ação penal intentada por ‘dano de pequena valia’ em um caso de corte de folhas de palmeira (RTJ 100/157)

06 Fonte: www.stf.gov.br

07 Op. cit., p. 302

08 Op. cit.

09 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. V. 1; 22ª ed. Ed. Atlas. São Paulo. 2005. p. 135

10 Op. cit.

11 Apenas como exemplo, e para ficarmos apenas no Supremo Tribunal Federal, já se reconheceu a insignificância do furto de garrafa de vinho (HC 88393/RJ), um boné (HC 84687/MS) e até de bens subtraídos em estabelecimento militar, que totalizavam R$ 154,57 (RHC 89624/RS).

12 Por todos, GOMES, Luiz Flavio. Caso Angélica Teodoro: "roubo de um pote de manteiga" e princípio da irrelevância penal do fato. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1020, 17 abr. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8258>. Acesso em: 18 nov. 2006

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Sobre o autor
Eliezer Siqueira de Sousa Júnior

defensor público do Estado do Espírito Santo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA JÚNIOR, Eliezer Siqueira. A aplicação do princípio da insignificância no roubo é possível?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1443, 14 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10012. Acesso em: 25 dez. 2024.

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