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As principais inconstitucionalidades do impeachment de 2016

30/08/2023 às 07:12
Leia nesta página:

O duplo juízo de admissibilidade do processo de impeachment e o fatiamento do julgamento de suas penas atentam contra a Constituição Federal.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Senado Federal. Impeachment. Devido processo legal. Crimes de responsabilidade.


“Quando os homens são éticos, as leis são desnecessárias; quando os homens são corruptos, as leis são inúteis.” Thomas Jefferson


Desde o impeachment da ex-presidente Dilma Vana Rousseff em 2016, ficaram vários questionamentos sobre os limites da interpretação constitucional.

Naquela assentada, ficou definido, com base em decisão do presidente do colegiado no Senado Federal, o ministro do Supremo Tribunal Federal Enrique Ricardo Lewandowski, que o julgamento das penas de perda do cargo e de inabilitação para o exercício das funções públicas por 8 anos anos seria realizada de forma separada.1

Nada obstante, a Constituição da República é muita clara no particular, conforme dispõe seu artigo 52, parágrafo único, verbis:

Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. (g. n.)

Portanto, decretada a perda do cargo, igualmente, também deveria haver a inabilitação para o exercício de funções públicas, mas não foi o que ocorreu.

Nesse sentido, segundo o dicionário online de português, a preposição com tem como sinônimos junto, juntamente, simultaneamente, e não separadamente.2

Destarte, o equívoco do Senado no julgamento foi não só fazer uma manipulação inconstitucional, mas subverter as regras da norma culta da língua portuguesa.

Aliás, além de receber diversas e justas críticas doutrinárias, também houve censura por parte do colega da Suprema Corte, curiosamente, o ministro Gilmar Ferreira Mendes.3 4

Portanto, conforme demonstraremos, foi algo que até hoje não desceu na garganta da doutrina constitucionalista.

Quando ao ponto, o Advogado da União Marcelo Novelino assentou que5

A condenação, proferida por dois terços dos do Senado, limitar-se-á à votos perda do cargo e inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis (CF, art. 52, parágrafo único). A despeito da clareza do dispositivo quanto à cumulatividade das penas ("perda do cargo e inabilitação") a serem aplicadas em caso de condenação, ao julgar o crime de responsabilidade praticado por Dilma Roussef o Senado, de forma inusitada, votou as duas sanções separadamente, condenando-a à perda do cargo, mas mantendo seus direitos políticos. A constitucionalidade do fatiamento da votação não foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal. (g. n.)

De outro vértice, voltando ao texto da Constituição Federal, prescreve seu artigo 86, caput,

Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

Ora, de uma calma leitura, é possível inferir que após a autorização da Câmara dos Deputados, o chefe do Poder Executivo Federal será, e não poderá, ser submetido a julgamento no Senado Federal nos crimes de responsabilidade, também conhecidas como infrações político-administrativas.

Inclusive, referido entendimento atende a uma interpretação sistemática, haja vista que o Congresso Nacional, conquanto composto de duas casas, representa um único poder, que é o Legislativo, consoante o artigo 44 da Lei Maior.6.

Nesse diapasão, conforme ensina o Ministro do STF Alexandre de Moraes:7

O processo dos crimes de responsabilidade e dos comuns cometidos pelo Presidente da República divide-se em duas partes: juízo de admissibilidade do processo e processo e julgamento. O processo de responsabilidade inicia-se na Câmara dos Deputados para declarar a procedência ou improcedência da acusação. Se declarada procedente, far-se-á julgamento pelo Senado Federal. A Constituição Federal preceitua que admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Senado Federal nos crimes de responsabilidade. Ora, a admissibilidade da acusação feita pela Câmara dos Deputados, autorizando a abertura do processo, vincula o Senado Federal no sentido de instaurar-se o devido processo legal para apuração de crime de responsabilidade, impedindo-lhe, neste momento inicial, qualquer discricionariedade política. (g. n.)

Nada obstante, o Tribunal Constitucional, ao apreciar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 3788, deixou assentado que

Apresentada denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, compete à Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo (art. 51, I, da CF/1988). A Câmara exerce, assim, um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para o prosseguimento da denúncia. Ao Senado compete, privativamente, processar e julgar o Presidente (art. 52, I), locução que abrange a realização de um juízo inicial de instauração ou não do processo, isto é, de recebimento ou não da denúncia autorizada pela Câmara. (g. n.)

Nessa senda, tendo em conta o julgado proferido pelo STF na ADPF nº 378, o professor Pedro Lenza enfatiza que é o Senado Federal que admite ou não a acusação contra o Presidente da República. A Câmara dos Deputados simplesmente autoriza o procedimento a se desenvolver. 9

Posteriormente, o professor Lenza arremata com sua discordância ao posicionamento adotado pelos representantes dos Estados, no seguinte sentido:10

Com o máximo respeito, não concordamos com essa forma de julgamento fatiada! Conforme sustentamos, a condenação pelo crime de responsabilidade implicará a imposição de duas penas autônomas: a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública por 8 anos, sendo esta última não mais acessória. Dizer que não é assessória não significa, em nosso entender, determinar o fatiamento do modo de votação. A literalidade da Constituição é implacável ao afirmar, no parágrafo único do art. 52, que a condenação limita-se à perda do cargo COM inabilitação por 8 anos para o exercício de função pública. Nesse sentido, também, a regra contida no caput do art. 68 da Lei n. 1.079/50. (g. n.)

Outrossim, conforme escreve a professora Nathalia Massom, para o leitor que deseja mais informações referentes ao esdrúxulo entendimento firmado pelo Senado Federal, sugiro que acompanhe o desenvolvimento do tema a seguir, e destaca:11

Conclusão: em nossa percepção, a pena de perda do cargo e a pena de inabilitação são autônomas, todavia, são igualmente cumulativas, vale dizer, não são penas alternativas. Parece-nos, pois, que foi equivocada a autorização dada pelo então Presidente do STF (Min. Ricardo Lewandowski) para a votação ser feita em duas etapas. Nada indica, todavia, que o STF vá intervir (pois já foi acionado) para modificar tal entendimento. Lembremos que em 20 de outubro de 2016 o Min. Teori Zavascki não concedeu a liminar no MS 34.441 MC/DF. (g. n.)

Ademais, nas penas de Eduardo dos Santos, em relação a possibilidade de fatiamento do julgamento das sanções aplicadas em caso de condenação por crimes de responsabilidade12,

Ocorre que, ao referir-se às penas por crimes de responsabilidade, a Constituição é clara em dizer que a condenação é à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis. Ou seja, nos termos constitucionais não é possível fazer esse fatiamento das sanções, pois, em que pese elas sejam principais e autônomas, elas são claramente cumulativas . Ademais, esse foi o entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MS 21.689, impetrado por ocasião do julgamento do impeachment do ex-Presidente Fernando Collor, no qual afirmou que em sistemas constitucionais anteriores era possível a aplicação separada das penas (como na Constituição de 1891), mas que no sistema constitucional de 1988 isso não é possível, de modo que ambas as penas deverão ser aplicadas em razão da condenação. Nada obstante, o Supremo Tribunal Federal ao ser chamado a decidir essa questão, no MS 34.441, impetrado por ocasião do julgamento do impeachment do ex-Presidente Dilma Rousseff, decidiu não decidir (como fez por diversas oportunidades ao longo desse impeachment), não enfrentando o caso, negando o pedido liminar e não colocando o julgamento do mérito em pauta em tempo hábil. (g. n.)

Portanto, podemos observar que a doutrina especializada é unânime em não ratificar o entendimento adotado pelo juízo natural do processo de impeachment.

Aliás, não podemos olvidar que houve violação ao princípio da igualdade, haja vista que o julgamento da ex-Presidente Dilma foi diferente do quanto decidido no julgamento do ex-Presidente Fernando Collor de Mello.

Além disso, a recusa do Supremo em apreciar o mérito do Mandado de Segurança nº 34.44113, conforme salientado por Eduardo dos Santos, não deixa de ser uma cumplicidade com a violência perpetrada contra a Lei Suprema.

Oportunamente, trazemos à baila entendimento externado pelo ministro Luís Roberto Barroso ao tratar sobre a mutação constitucional em sua obra. Eis os seus escritos14:

Como intuitivo, a mutação constitucional tem limites, e se ultrapassá-los estará violando o poder constituinte e, em última análise, a soberania popular. É certo que as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, libertam-se da vontade subjetiva que as criou. Passam a ter, assim, uma existência objetiva, que permite sua comunicação com os novos tempos e as novas realidades. Mas essa capacidade de adaptação não pode desvirtuar o espírito da Constituição. Por assim ser, a mutação constitucional há de estancar diante de dois limites: a) as possibilidades semânticas do relato da norma, vale dizer, os sentidos possíveis do texto que está sendo interpretado ou afetado; e b) a preservação dos princípios fundamentais que dão identidade àquela específica Constituição. Se o sentido novo que se quer dar não couber no texto, será necessária a convocação do poder constituinte reformador. E se não couber nos princípios fundamentais, será preciso tirar do estado de latência o poder constituinte originário. As mutações que contrariem a Constituição podem certamente ocorrer, gerando mutações inconstitucionais. Em um cenário de normalidade institucional, deverão ser rejeitadas pelos Poderes competentes e pela sociedade. Se assim não ocorrer, cria-se uma situação anômala, em que o fato se sobrepõe ao Direito. A persistência de tal disfunção identificará a falta de normatividade da Constituição, uma usurpação de poder ou um quadro revolucionário. A inconstitucionalidade, tendencialmente, deverá resolver-se, seja por sua superação, seja por sua conversão em Direito vigente. (g. n.)


Pelo exposto, sequer caberia mutação constitucional na hipótese do julgamento do impeachment, já que esbarra frontalmente nas possibilidades semânticas do texto dos artigos 52, parágrafo único, e 86, caput, da Lex Legum.

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De resto, como salientado pelo professor Luis Roberto Barroso, a alteração deveria ter sido rejeitada pelos poderes competentes, no caso o STF e o Senado.

Além de tudo, segundo o princípio da interpretação conforme a Constituição, "O intérprete não pode contrariar o texto literal, razão pela qual, se o texto diz “não”, o intérprete não pode dizer “sim”. O intérprete deve manter a vontade do legislador" (Cristian Patric de Sousa Santos, Direito Constitucional, Editora CP IURIS, 2022).

Finalmente, entendemos que, além da afronta ao texto constitucional no fatiamento da votação das penas do impedimento, o refazimento do juízo de admissibilidade no Senado Federal violou o princípio constitucional da eficiência, haja vista os enormes custos econômicos que circundam um processo por crime de responsabilidade no âmbito federal.

Concluindo, a melhor opção, se não respeitar a decisão da Câmara dos Deputados, seria concentrar todo o recebimento e julgamento do processo de impeachment no Senado Federal, o que geraria menos custos e dispêndio de tempo, reformando-se a Constituição no particular, via emenda.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 26ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 8ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2020.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 36ª ed. São Paulo: Atlas, 2020.

NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional.16ª ed. - Salvador: JusPodivm, 2021.

SANTOS, Eduardo dos. Direito constitucional sistematizado. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.


Notas

  1. Impeachment de Dilma Rousseff marca ano de 2016 no Congresso e no Brasil. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/12/28/impeachment-de-dilma-rousseff-marca-ano-de-2016-no-congresso-e-no-brasil Acesso em: 14/9/2022.

  2. Disponível em: https://www.dicio.com.br/com/#:~:text=Significado%20de%20Com,determinado%20modo%3A%20falar%20com%20eloqu%C3%AAncia. Acesso em: 14/9/2022.

  3. "Tropeço foi fatiar votação do impeachment", diz Gilmar Mendes em resposta a Lewandowski. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2016/09/tropeco-foi-fatiar-votacao-do-impeachment-diz-gilmar-mendes-em-resposta-a-lewandowski-7611471.html Acesso em: 14/9/2022.

  4. Colocamos aqui a expressão curiosamente, porque o próprio ministro Gilmar Mendes já defendeu a mutação do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, eis que ao Senado caberia apenas a função de dar publicidade a decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade (Reclamação nº 4.355-5/AC.)

  5. Curso de direito constitucional. 16ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2021, pág. 744.

  6. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

  7. Direito Constitucional. 36ª Ed. - São Paulo: Atlas, 2020, pág. 947.

  8. AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. PROCESSO DE IMPEACHMENT. DEFINIÇÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RITO PREVISTO NA LEI Nº 1.079/1950. ADOÇÃO, COMO LINHA GERAL, DAS MESMAS REGRAS SEGUIDAS EM 1992. CABIMENTO DA AÇÃO E CONCESSÃO PARCIAL DE MEDIDAS CAUTELARES. CONVERSÃO EM JULGAMENTO DEFINITIVO.

  9. Direito Constitucional. 26ª ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022, pág. 1317.

  10. Op. cit., pág. 1323.

  11. Manual de direito constitucional. 8ª ed. - Salvador: Juspodivm, 2020, pág. 1.183.

  12. Direito constitucional sistematizado. Indaiatuba: Foco, 2021, pág. 1294.

  13. CONSTITUCIONAL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO INTERNO NO MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO DE AGRAVO QUE TEM POR OBJETIVO DESCONSTITUIR A DECISÃO QUE JULGOU PREJUDICADO O PRIMEIRO RECURSO. ENCERRAMENTO DO MANDATO PARA O QUAL FOI ELEITA A EX-PRESIDENTE. PERDA SUPERVENIENTE DE OBJETO. RECURSO DE AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

  14. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2020, pág. 146.

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Sobre o autor
Celso Bruno Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. As principais inconstitucionalidades do impeachment de 2016. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7364, 30 ago. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100153. Acesso em: 28 abr. 2024.

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