Capa da publicação Indiciamento sem aviso viola direito ao silêncio
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Indiciamento sub-reptício: (i)legalidade

Resumo:

- O indiciamento é um ato formal de imputação de autoria de um crime, realizado pelo delegado de polícia após análise técnico-jurídica do fato.
- O indiciamento sub-reptício é uma espécie de indiciamento ilegal, que ocorre quando uma pessoa é indiciada sem estar ciente de sua real condição na investigação preliminar.
- O direito ao silêncio e à não autoincriminação são garantias fundamentais, previstas na Constituição, que devem ser respeitadas desde o primeiro momento da abordagem policial.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Pode o delegado indiciar quem depôs como testemunha? O indiciamento sub-reptício afronta o direito ao silêncio e torna o ato policial nulo.

O ato de indiciamento pode ser conceituado como ato de imputação formal, materializado pelo delegado de polícia natural, mediante juízo de cognição devidamente fundamentado, pelo qual a autoridade policial aponta o indivíduo como suposto autor de um crime.

A Lei nº 12.830/2013 traz dispositivo específico, porém sucinto, no art. 2º, § 6º:

§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, a materialidade e suas circunstâncias.

De acordo com o professor Francisco Sannini, trata-se do ato formal, de atribuição exclusiva da autoridade de Polícia Judiciária, que, ao longo da investigação, forma seu livre convencimento no sentido de que há indícios suficientes de que um suspeito tenha praticado determinado crime.

Neste artigo, a perspectiva é explanar sobre o indiciamento sub-reptício, espécie de indiciamento ilegal, como se demonstrará adiante.

Fazendo uma analogia ao interrogatório policial sub-reptício, tem-se aquele em que a autoridade policial, ou o agente público, colhe o interrogatório do suposto autor do fato sem adverti-lo sobre o direito ao silêncio.

O princípio da não autoincriminação está previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e em tratados internacionais. Por esse princípio, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, sendo vedada a autoincriminação.

Tal garantia encontra respaldo na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, 2, “g”) e na Constituição Federal (art. 5º, LXIII):

Artigo 8º – Garantias judiciais

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Art. 5º, LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

De acordo com o Supremo Tribunal Federal, no momento da abordagem policial, do cumprimento de mandado de busca e apreensão ou em situação de flagrante, deve a autoridade policial ou o agente público informar o suspeito, de imediato, sobre o direito ao silêncio — não apenas no interrogatório formal em sede policial. Nesse sentido:

Houve violação do direito ao silêncio e à não autoincriminação na realização desse interrogatório travestido de entrevista.

Não se assegurou ao investigado o direito à prévia consulta a seu advogado. Além disso, ele não foi comunicado sobre seu direito ao silêncio e de não produzir provas contra si mesmo.

STF, 2ª Turma, Rcl 33711/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11/6/2019 (Info 944).

Para a Corte, houve uma espécie de interrogatório forçado, violando o entendimento firmado no julgamento das ADPFs 395 e 444.

O dever de informar o direito ao silêncio, portanto, deve ser observado desde o primeiro momento da abordagem.

A denominação “interrogatório sub-reptício” não é nova:

“(...) 3. Ilicitude decorrente – quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso, ou da falta de prova idônea de seu assentimento à gravação ambiental – de constituir, dita ‘conversa informal’, modalidade de ‘interrogatório’ sub-reptício, o qual – além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (CPP, art. 6º, V) –, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio.”

(STF, HC 80949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14/12/2001 – Informativo nº 250).

Transpondo o raciocínio ao tema do indiciamento, a autoridade policial deve utilizar apenas meios legais para promover o ato, pois a imputação formal não é mero instrumento burocrático: traz efeitos sociais, práticos e jurídicos.

O ato de indiciamento não pode ser um ato de surpresa, visto que o indivíduo não é mero objeto de investigação, mas sujeito de direitos no âmbito da investigação preliminar.

Assim, deve o delegado de polícia dar conhecimento prévio ao eventual ato de indiciamento e assegurar a cada sujeito processual o exercício pleno de sua condição no cenário investigativo.

Um indivíduo investigado ou suspeito deve ser ouvido na condição de interrogado, podendo valer-se do direito ao silêncio, como forma de defesa negativa.

Caso o indivíduo figure como vítima, deve ser ouvido na condição de declarante; se faltar com a verdade, poderá responder pelos crimes de falsa comunicação de crime (art. 340, CP) ou denunciação caluniosa (art. 339, CP), a depender do caso concreto.

Já a testemunha em sede policial tem o dever de dizer a verdade, sob pena do crime de falso testemunho (art. 342, CP).

Cada sujeito da investigação, portanto, possui denominação técnica e consequências jurídicas distintas.

Partindo dessa perspectiva, imagine-se que o delegado de polícia, ao presidir uma investigação, determine a oitiva de uma pessoa na condição de testemunha, advertindo-a do dever de falar a verdade sob pena de crime de falso testemunho.

Ao final da diligência, o delegado se convence da existência de indícios de autoria ou participação no crime investigado.

Pergunta-se: seria possível o indiciamento dessa pessoa, ouvida como testemunha?

A resposta só pode ser negativa, pois isso configuraria indiciamento sub-reptício. A testemunha, embora obrigada a dizer a verdade, tem, segundo entendimento do STF, o direito de silenciar quando o testemunho puder incriminá-la. Logo, não deveria ter sido advertida quanto ao dever de veracidade, e sim quanto ao direito de não se autoincriminar.

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COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - PRIVILÉGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO - DIREITO QUE ASSISTE A QUALQUER INDICIADO OU TESTEMUNHA - IMPOSSIBILIDADE DE O PODER PÚBLICO IMPOR MEDIDAS RESTRITIVAS A QUEM EXERCE, REGULARMENTE, ESSA PRERROGATIVA - PEDIDO DE HABEAS CORPUS DEFERIDO . - O privilégio contra a auto-incriminação - que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito - traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. (...). Precedentes.

(STF, HC 79812/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, j. 8/11/2000, DJ 16/2/2001, ementa vol. 2019-01, p. 196)

Nessa hipótese, deve a autoridade policial interromper o depoimento da eventual testemunha, ouvi-la como investigada, adverti-la do direito ao silêncio e, se convencida da autoria, proceder ao indiciamento.

Conforme ensina Paulo Rangel:

"Não deve a autoridade policial intimar a testemunha para prestar depoimento nessa qualidade e depois do ato em si, indiciá-la por entender que ela tem participação nos fatos apurados. Se a testemunha é intimada, ela tem que prestar compromisso de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, nos termos do art. 203 do CPP. Logo, não pode, após seu depoimento, ser indiciada como suspeita de crime. Tal procedimento fere de morte a regra inserta no Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, II, g)."

No mesmo sentido, Aury Lopes Jr. adverte:

“Entre eles, o principal é saber em que qualidade declara, evitando-se, assim, o grave inconveniente de comparecer como testemunha quando, na verdade, deveria fazê-lo na qualidade de suspeito que está na iminência de ser indiciado.”

O ato de indiciamento não pode ser ato de surpresa ou mero procedimento burocrático, pois carrega efeitos negativos, como o lançamento do nome do investigado em assentamentos criminais.

Dessa forma, considera-se indiciamento sub-reptício todo aquele em que a pessoa é indiciada após a colheita de informações em desconformidade com sua condição real na investigação preliminar.

É evidente que, se alguém é ouvido como testemunha, não pode ser indiciado ao final do depoimento, sem que lhe seja assegurada a condição de investigado ou suspeito, sob pena de nulidade e violação ao princípio constitucional da não autoincriminação.

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Sobre o autor
Tiago Baltazar Ferreira Dantas

Delegado de Polícia Civil no Estado do Paraná, Pós-graduado em Penal e Processo Penal pela Faculdade Estácio de Sá, Pós-graduado em Direito Público, Pós graduado em Gestão de Segurança Pública pela Escola Superior de Polícia Civil do Estado do Paraná/PR, Graduado em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA) no Estado do Rio de Janeiro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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