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Direito e literatura:

Lima Barreto e o problema da verdade no Homem que sabia javanês

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3.O Problema da Verdade no Homem que Sabia Javanês

A literatura de Lima Barreto enceta preocupação perene com a solidariedade humana; trata-se de idéia base que cimentou todo seu caminho como autor, na opinião de especialista (cf. SEVCENKO, 2003, p. 220). Nesse sentido:

"O primeiro sintoma da autenticidade dessa convicção é o sentimento misto de desprezo e náusea que o autor votava a toda e qualquer atitude, emoção, símbolo, objeto ou pessoa que pudesse significar uma ameaça para a identificação profunda entre todos os seres humanos. Assim era com a concorrência, as rivalidades, as hostilidades, os animais ferozes, os galos de briga, os esportes violentos, a guerra, os motins e levantes, qualquer forma de conflito e violência enfim. Era obsedante a sua revolta contra a ‘filosofia da força’, pretensamente inspirada em Nietzsche (...) (SEVCENKO, cit., p. 221).

Parece que Lima Barreto pretendia alcançar equilíbrio nas relações humanas, que deveriam ser marcadas pela franqueza e pela honestidade; não haveria espaço para chicanas. De tal modo, inconcebível o triunfo que decorreria de uma mentira. O Homem que Sabia Javanês é, nesse sentido, denúncia contra bacharelismo que não tinha limites para que se alcançasse posição social de relevo. É ainda de Nicolau Sevcenko a passagem que segue:

"Simultânea à preocupação da solidariedade, havia no autor o anseio de uma estabilidade fundamental de todas as coisas, que neutralizasse toda forma de concorrência entre os homens e reorientasse as energias daí tiradas no sentido de um convívio mais íntimo, profundo e simpático com a natureza, seus frutos e seus filhos." (SEVCENKO, cit., loc. cit.).

O truque usado por Castelo rompe com concorrência natural que deveria reger as relações humanas. A denúncia reflete a vida de Lima Barreto e, nos termos de estudiosa de nossa literatura:

" Afonso Henriques de Lima Barreto (1883-1922) nasce e morre no Rio de Janeiro: e sua existência é (em tríptico com as vidas de Cruz e Sousa, negro, e Machado de Assis, mulato dissimulado) aquela mesma, atribulada e complexada, do homem de cor numa sociedade não racista, mas classista: e em que, não por acaso, a cor coincide amiúde com a classe. Machado de Assis reagia com a epilepsia e a integração, Lima Barreto com o alcoolismo e o protesto socialista. Seu mundo não é o alto-burguês de Machado de Assis, mas o pequeno-burguês e proletário das suas personagens gogolianas: escrivães, empregadinhos, gente de bairros suburbanos em época de serenatas e tragédias de periferia. E cada página escrita transpira à autobiografia: a história transposta do mestiço que foi Lima Barreto, filho de um tipógrafo e de uma professora primária, órgão de mãe aos sete anos, protegido pelo padrinho, o visconde de Ouro Preto (...) hóspede com o pai, que aí trabalha como guarda e depois levará consigo a lembrança alucinante vida afora, alcoólatra precoce e, por sua vez, hóspede intermitente de manicômios. Mas também intelectual empenhado como poucos e, culturalmente preparado pela leitura dos grandes romances franceses e russos para a adesão entusiasta à Revolução de Outubro". (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 441).

O relato do Homem que Sabia Javanês é autobiográfico na medida em que o autor se vê como quem quer que tenha sido prejudicado com os meios que Castelo usou para alcançar o cargo público que detinha. Não se trata de autobiografia, no sentido de que Lima Barreto se retrataria em Castelo, evidentemente. O conto é autobiográfico, bem entendido, porquanto Lima Barreto se via como membro de qualquer sociedade que desprezasse a meritocracia, em favor do apadrinhamento. Assim:

"Afonso Henriques de Lima Barreto retratou-se impiedosamente nas obras que realizou. Não somente a si mesmo, como a toda a humanidade, captando o que há de essencial na alma humana: o amor. Por mais contraditório que pareça falar de tal sentimento, uma vez que o escritor não o tratou diretamente na obra e, muito menos, em vida. Demonstra, ao contrário, que sempre esteve longe de tal sentimento. Mas é justamente da negação que vem a confirmação". (NOLASCO-FREIRE, 2005, p. 123).

A verdade que substancializa o pensamento de Castelo, denunciada por Lima Barreto, previa relatividade que nos remete a aforismo de Nietzsche:

"O conhecimento só pode admitir como motivos o prazer e o desprazer, o proveitoso e o nocivo: mas como se arrumarão esses motivos com o senso da verdade? Pois eles também se ligam a erros (na medida em que, como foi dito, a inclinação e a aversão, e suas injustas medições, determinam essencialmente nosso prazer e desprazer. Toda a vida humana está profundamente embebida na inverdade: o indivíduo não pode retirá-la de tal poço sem irritar-se com seu passado por profundas razões, sem achar descabidos os seus motivos presentes, como os da honra, e sem opor zombaria e desdém às paixões que impelem ao futuro e a uma felicidade neste". (NIETZSCHE, 2001, p. 40).

Poder-se-ia argumentar que Castelo não causou mal a ninguém, e que até fora importante no resgate histórico do velho Barão, que morreu acreditando ter cumprido a promessa de traduzir o livro que lhe servia de amuleto. Ter-se-ia como suporte teórico uma compreensão de gradualização da verdade, e a questão fora mais uma vez abordada pelo ceticismo de Nietzsche:

" Pretensos graus de verdade. – Um dos mais freqüentes erros de raciocínio é este: se alguém é verdadeiro e sincero conosco, então ele diz a verdade. Assim a criança acredita nos julgamentos de seus pais, o cristão nas afirmações dos fundadores da Igreja. De igual maneira, não se quer admitir que tudo o que os homens defenderam com o sacrifício da felicidade e da vida, em séculos passados, eram apenas erros: talvez se diga que eram estágios da verdade. Mas no fundo as pessoas acham que, se alguém acreditou honestamente em algo e lutou e morreu por sua crença, seria bastante injusto se apenas um erro o tivesse animado. Tal acontecimento parece contradizer a justiça eterna: eis porque o coração dos homens sensíveis sempre decreta, em oposição a sua cabeça, que entre as ações morais e as percepções intelectuais deve necessariamente existir uma ligação. Infelizmente não é assim: pois não há justiça". (NIETZSCHE, cit., p. 56).

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E complementava o filósofo alemão, suspeitando de qualquer forma de verdade, assunto que será retomado pelo chamado pensamento pós-moderno, especialmente na crítica que se opõe às chamadas grandes narrativas:

"A mentira. – Por que, na vida cotidiana, os homens normalmente dizem a verdade? – Não porque um deus tenha proibido a mentira, certamente. Mas, em primeiro lugar, porque é mais cômodo; pois a mentira exige invenção, dissimulação e memória (...)" (NIETZSCHE, cit., loc.cit.).

Castelo teve grande trabalho em sustentar a mentira. Quando indagado a respeito de onde aprendeu javanês, inventpu um pai marinheiro que passara pela Bahia. Teria de se lembrar freqüentemente da urdidura que tramou, correndo o risco de ser desmascarado, o que poderia ter acontecido com a necessidade de intérprete para o marinheiro preso no Rio de Janeiro, não fosse a autoridade diplomática holandesa. Retomando-se o problema colocado alguns parágrafos acima, deve-se afirmar que há prejuízos causados por Castelo. A vaga de cônsul fora preenchida por um estelionatário da cultura. Suposta harmonia, idilicamente imaginada por Lima Barreto fora rompida. Na impressão de seu mais importante biógrafo,

"Na sua aparente humildade, não era homem para se dobrar a ninguém. O orgulho doía-lhe mais que o estômago. E assim, as oportunidades que apareciam não foram aproveitadas, por inteiro, contribuindo apenas, a cada malogro, para aumentar-lhe o sentimento de revolta, que foi nele, por assim dizer, inato." (ASSIS BARBOSA, 1988, p. 131).

Ao denunciar o homem que sabia javanês Lima Barreto tornava pública a revolta que vivia. Intelectual, porém com possibilidades limitadas de ascensão social, por conta das origens e da ascendência escrava, Lima Barreto fora preterido inúmeras vezes. Não conseguiu a imortalidade da Academia Brasileira de Letras. Jamais foi lembrado para posto no exterior. Mofou como amanuense em repartição pública que odiava. Enquanto isso, muitos professores de javanês atendiam congressos e representavam o país no exterior. Quando voltavam, eram recebidos com júbilo. Lima Barreto, vencido pela dipsomania, terminava seus dias num manicômio.

Se os fins justificam os meios, a premissa legitimaria a estratégia de Castelo. Se do ponto de vista kantiano, a verdade o é para quem o merece, não se saberá se o velho Barão teria direito de não ser enganado. Mas se a verdade é imperativo para convivência sadia e igualdade de chances de concorrência (Chancengleicheit), o Homem que Sabia Javanês inscreve-se no panteão nacional que plasma anti-heróis marcados pelo mau-caráter.


Referências Bibliográficas

ARISTODEMOU, Maria. Studies in Law and Literature: Directions and Concerns. 22 Anglo-American Law Review, 1993, pp. 157-193.

ASSIS BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. Belo Horizonte e São Paulo: Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

BARON, Jane B. Law, Literature, and the Problems of Interdisciplinarity. 108 Yale Law Journal, 1998, pp. 1059-1085.

BARON, Jane B. The Rhetoric of Law and Literature: A Skeptical View. 26 Cardozo Law Review, 2004, pp. 2273-2281.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques. Os Melhores Contos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiadamente Humano – um Livro para Espíritos Livres. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. Tradução de Paulo César de Sousa.

NOLASCO-FREIRE, Zélia. Lima Barreto – Imagem e Linguagem. São Paulo: Annablume, 2005.

POST, Deborah Waire. Teaching Interdisciplinarily: Law and Literature as Cultural Critique. 44 Saint Louis University Law Journal, 2000, pp. 1247-1272.

SEATON, James. Law and Literature: Works, Criticism and Theory. 11 Yale Journal of Law and the Humanities, 1999, pp. 479-507.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2004. Tradução de Pérola de Carvalho e de Alice Kyoko.

WARD, Ian. The Educative Ambition of Law and Literature. 13 Journal of Legal Studies, 1993, pp. 323-331.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e literatura:: Lima Barreto e o problema da verdade no Homem que sabia javanês. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1449, 20 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10040. Acesso em: 26 abr. 2024.

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