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Conflitos modernos, Direito e relações internacionais

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30/06/2007 às 00:00
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Relações Internacionais

Minha análise dos conflitos modernos sob a ótica das relações internacionais está fundada em algumas premissas quase que unânimes entre os estudiosos das relações internacionais como WALTZ, KEOHANE, FONSECA JR, NYE e KENNEDY: a) os efeitos negativos do unilateralismo norte-americano sobre o sistema político e de direito; b) as mudanças da natureza das ameaças à paz e segurança internacionais consistente em "novas ameaças"; c) essas "novas ameaças" estão centradas em atores transnacionais vinculados a crimes internacionais como o terrorismo, o narcotráfico e o crime organizado; d) os efeitos extraterritoriais dos conflitos armados intraestados; e) os conflitos oriundos da implementação dos direitos humanos relacionados ao comércio internacional e ao direito ao desenvolvimento e; f) as ameaças e riscos ambientais de ordem global. Consideradas essas premissas, a questão que proponho é se elas conduzem ao enfraquecimento do modelo estatal, do Estado nação e, secundariamente, se conduzem ao fortalecimento do Estado mercado de BOBBITT.

Não acredito no desaparecimento do Estado, por inúmeras razões que por hora não cabe discutir, mas acredito na adaptação da funções do Estado para atendimento de suas demandas internas. Se os Estados Unidos caminham para o modelo de mercado, o Brasil, parece-me, caminha para uma versão socialista do welfare state. As adaptações são evidentes. A "guerra de prevenção" defendida pela Doutrina Bush e, principalmente seu exercício no Afeganistão contra o regime Talebã (não contra o Estado) evidencia a vulnerabilidade e instabilidade política do sistema e, consequentemente, dos Estados. Quem estaria a salvo do alcance global militar dos Estados Unidos? Certa vez com um colega de turma nas aulas do professor Braz Araújo, um alto-oficial da Marinha de Guerra do Brasil, discutia a hipótese dos Estados Unidos poderem (e apenas "poderem", terem capacidade de realização de um objetivo) desembarcar na praia de Copacabana quando bem entenderem. Pode parecer um grande devaneio acadêmico, mas a resposta afirmativa evidente para ambos reflete uma grande fraqueza não só do Estado brasileiro, mas de qualquer outro Estado do planeta, pois Copacabana poderia ser qualquer outro local entre os países em desenvolvimento. Um exercício para esse nosso estudo: apliquemo-lo à OMC e ao campo, mais uma vez, dos direitos humanos, e ao desenvolvimento sustentável.

O sistema multilateral da OMC, por exemplo, está ameaçado pela resistência dos Estados Unidos em cumprir as regras de comércio entabuladas pela Organização e pelos acordos bilaterais que vêm firmando com Estados em desenvolvimento usando de sua influência e poder políticos e de barganha, afinal são os maiores traders do mundo. Por que Myanmar insiste em apoiar os Estados Unidos em todos os fóruns de debates nos diversos organismos multilaterais? Myanmar não deseja ter sobre sua cabeça uma ameaça de Copacabana, mas ter da maior potência do mundo todas as benesses possíveis, nem que seja, segundo uma argumentação jurídica de absurdo, a simples segurança de não intervenção (já que a ingerência sob a veste da influência e orientação política é inerente ao processo).

Isso acontecia no período da Guerra Fria? O bipolarismo daquele período conferia certo grau de estabilidade ao sistema 23, mesmo sob o riscos da corrida armamentista e da "mutual assured destruction – MAD" inerente às armas nucleares. A medida da efetividade na Guerra Fria foi a medida da política (a medida do possível). O cenário daquele período em relação ao atual (pós Guerra Fria) pode ser caracterizado da seguinte forma: a) o bipolarismo garantia mais establidade que o sistema multilateral; b) a influência da corrida armamentista sobre o Conselho de Segurança e a agenda internacional; c) a descolonização e construção de novos princípios de independência e soberania, que tiveram berço na Assembléia Geral das Nações Unidas, são hoje compartilhadas pelo Conselho de Segurança em matéria no esforço de construção da paz (peace-building); d) a politização de categorias jurídicas criadas no período da Guerra Fria, como aquelas afetas aos direitos humanos. Resultado de um processo evolutivo, estes cenários essencialmente políticos permitiram a especialização do direito internacional, notadamente no campo dos direitos humanos, de refugiados, do desarmamento, do meio ambiente e do comércio internacional. Essa especialização, como disse, em parte conduziu à ineficácia do direito internacional (instrumentalização sem efeitos) por motivos políticos (seletividade).

Houve também mudanças fundamentais no conteúdo político do conceito de segurança provocadas pela interação com circunstâncias históricas e novas percepções políticas (estratégias). Há que se considerar, ainda, mudanças na natureza e extensão dos conflitos (novas percepções): da guerra armada à guerra comercial; dos conflitos interestados para os intraestados, aliados ao terrorismo internacional, ao crime organizado (narcotráfico e outros). Finalmente, se os Estados não conseguem responder eficazmente à dinâmica dos mercados e das "novas ameaças", também as Nações Unidas continuam a sofrer de uma crise de identidade calcada principalmente no unilateralismo norte-americano, que coloca em xeque a efetividade da Organização para assuntos de segurança, relegando-lhe assuntos "menores" como a questão da pobreza, da fome, da exclusão econômica, cultural e tecnológica, sem perceber que assinam uma bomba relógio.


Bibliografia

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Notas

01 L. Oppenheim, em seu Tratado de Derecho Internacional Publico (Barcelona: Bosch, 1966), notório internacionalista, utilizava o termo "guerra" e, consequentemente, "direito dos conflitos armados" para identificar o ramo do direito internacional que cuida dos conflitos interetatais: "La guerra es uma contenda entre dos o más Estados mediante sus fuerzas armadas, com objecto de vencer a la outra parte e imponerle aquellas condiciones de paz que estime el vencedor" (op. cit., p. 208). Atualmente, como preferem por exemplo SHAW (SHAW, Malcolm N. "International Law". 4ª ed. Cambridge: Grotius Publications-Cambridge University Press, 1997), RIDRUEJO (VELASCO, Manuel Diez. "Instituciones de Derecho Internacional Publico", 12ª ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1999) e DINH, DAILLIER e PELLET (DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. "Droit International Public". 6ª ed. Paris: L.G.D.J, 1999), prefere-seo termo "direito dos conflitos armados", apenas para citar renomandos internacionalistas que representam o sistema de "common law" (britânico, norte-americano) e de "civil law" (francês e ibérico).

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02 As "novas ameaças" são assim referidas por BOBBITT (BOBBITT, Philip. "A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações". Rio de Janeiro: Campus, 2003), IKENBERRY (IKENBERRY, G. John. "A ambição imperial", in Política Externa, vol. 11, dezembro, janeiro e fevereiro de 2002/2003), ambos referindo-se à "The National Security Strategy of the United States of America", de setembro de 2002, conhecida como Doutrina Bush, da guerra de prevenção contra a ameaça do terrorismo.

03 BOBBITT, op. cit., Prólogo.

04 Id.

05 BOBBITT, op. cit.

06 HUNTINGTON, Samuel P. "O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial". Tradução de M.H.C. Côrtes. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

07 BOBBITT, op. cit.

08 BOBBITT, op. cit.

09 BOBBIO tem uma visão diferenciada na Teoria Geral da Política. Não crê em governos bons ou maus, mas em governabilidade e não-governabilidade. No sentido que empregamos do "bom e mal" é distinto, é aquele utilizado para se referir, na doutrina de segurança dos Estados Unidos (Bush, 2001), a países que abrigam, fomentam ou exercem atividades terroristas, como o Irã, Iraque, Coréia do Norte e Líbia que estão na "lista negra". (BOBBIO, Norberto. "Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos". 4ª tiragem. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Revisão: Cláudia Perrone-Moisés. Rio de Janeiro: Campus, 2000)

10 Recordo-me desta tese e de tê-la conhecido nos escritos de Gelson Fonseca Jr., mas não pude encontrar a fonte para citá-lo devida e merecidamente.

11 HELD, David. "Democracy and the Global Order: from the Modern State to Cosmopolitan Governance". Stanford: Stanford University Press, 1996.

12 Essa a tese do "direito cosmopolita democrático" de HELD (Id.)

13 WIGHT, Martin. "A Política do Poder". Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002; e também LAFER. Celso. "As novas dimensões do desarmamento: os regimes de controle das armas de destruição em massa e as perspectivas para eliminação das armas de destruição em massa". In "O Brasil e as Novas Dimensões da Segurança Internacional", DUPAS, Gilberto; VIGEVANI, Tullo. Orgs. São Paulo: Alfa-Omega, 1999.

14 FALK, Richard Anderson. "International jurisdiction: horizontal and vertical conceptions of legal order", in Temple Law Quaterly, 1959, vol. 32.

15 LAFER, Celso. "Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos. Reflexões sobre uma experiência diplomática". São Paulo: Paz e Terra, 1999,

16 WIGHT, op. cit.

17 Como uma consequência do direito cosmopolita democrático, cujo locus situa entre o direito interno e o direito internacional. Na tese de HELD, há uma flexibilização da soberania à medida que o Estado passa a fazer parte de um sistema de centros autônomos, mas interligados de poder, ao lado de entidades subnacionais, comunidades transnacionais e organizações não-governamentais. Em resumo, a tese de HELD é a antítese do paradigma norte-americano! É dever ser, e não o que é. Irrealidade e utopia. A democracia exercida desta forma importaria na "anulação" (preferimos esse termo ao eufemista "flexibilização") do mais importante dístico do Estado: a soberania política. Somente num cenário como este, horizontalizado e ideal, poder-se-ia considerar a existência de um sistema de Estados desarmados, correndo o risco do aprofundamento da anarquia e, consequentemente, da própria extinção do Estado. (HELD, op. cit.)

18 BOBBITT, op. cit.

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Sobre o autor
Rodrigo Fernandes More

advogado, professor em São Paulo,mestre e doutor em direito internacional pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORE, Rodrigo Fernandes. Conflitos modernos, Direito e relações internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1459, 30 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10048. Acesso em: 9 mai. 2024.

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