6. Direito, Moral e Teorias dos Círculos
Não obstante a referida confusão conceitual inicial, problema percebido desde a Antiguidade Clássica (REALE, 2002, p. 53), fato é que a relação existente entre o Direito e a moral é, contemporaneamente, um dos temas mais controvertidos na seara da Filosofia do Direito, conforme reconhecido, inclusive, pelo insigne REALE:
Encontramo-nos, agora, diante de um dos problemas mais difíceis e também dos mais belos da Filosofia Jurídica, o da diferença entre a Moral e o Direito [...]. Nesta matéria devemos lembrar-nos de que a verdade, muitas vezes, consiste em distinguir as coisas, sem separá-las [...].
Muitas são as teorias sobre as relações entre o Direito e a Moral, mas é possível limitarmo-nos a alguns pontos de referência essenciais, inclusive pelo papel que desempenharam no processo histórico. (REALE, 2002, p. 41)
Objetivando estabelecer o modo como se opera a relação existente entre o Direito e a moral, cumpre destacar e analisar as Teoria dos Círculos Concêntricos (JEREMY BENTHAM), dos Círculos Secantes (CLAUDE DU PASQUIER), dos Círculos Independentes (HANS KELSEN) e do Mínimo Ético (GEORG JELLINEK).
6.1. Teoria dos Círculos Concêntricos
Trata-se de teoria formulada por JEREMY BENTHAM (1748-1832), segundo a qual a Ordem Jurídica encontra-se totalmente incluída no campo da moral, afirmação da qual se extraem duas conclusões imediatas: a) o campo da moral afigura-se mais amplo que o do Direito; b) o Direito subordina-se por completo à moral.
Segundo as premissas de tal teoria, todas as normas jurídicas são igualmente morais, o que não corresponde à realidade, mormente se considerarmos a existência de normas jurídicas imorais (isto é, contrárias à moral) e amorais (ou seja, indiferentes ao campo da moral, cujo conteúdo normativo nada possui de positivo ou negativo). Esquematicamente, tal perspectiva teórica pode ser representada por dois círculos concêntricos, sendo o maior pertencente à moral.
6.2. Teoria dos Círculos Secantes
Desenvolvida por CLAUDE DU PASQUIER, a teoria em epígrafe assevera que o Direito e a moral possuem uma área comum e, ao mesmo tempo, um espaço particular e independente (inerente a cada um). Segundo afirma VENOSA (2006, p. 187-188), a teoria ora examinada, ao abandonar a figura dos círculos concêntricos, concebendo o fenômeno do Direito e da moral como dois círculos secantes, isto é, moral e Direito podem ter áreas comuns, mais ou menos amplas, mas não coincidem ou se identificam, traduz-se, incontestavelmente, no arcabouço teórico que mais se aproxima da realidade, posto que muitas normas jurídicas são também normas morais; da mesma forma, conforme assinala VENOSA, há normas jurídicas que vão além dos princípios morais e outras que se posicionam aquém, cabendo recordar, neste aspecto, o tradicional brocardo: nem tudo que é justo é honesto.
Trata-se, por conseguinte, da teoria mais adequada no que se refere ao esclarecimento da relação que permeia os aludidos campos, posto que, indiscutivelmente, há regras do Direito que não possuem qualquer relação com a moral (e, da mesma forma, existem regras morais que nenhuma afinidade guardam com o Direito). Como exemplo, cite-se a norma (contida no Código de Trânsito Brasileiro Lei nº 9.503/97) que impõe o tráfego de veículos pela direita. Refletindo a respeito das premissas estabelecidas pela teoria em questão, é de se questionar: qual seria o conteúdo moral de tal regra? A toda evidência, não se identifica, na referida regra de trânsito, qualquer aspecto de natureza moral, o que demonstra o acerto da Teoria dos Círculos Secantes, retratada conforme o esquema abaixo.
6.3. Teoria dos Círculos Independentes
HANS KELSEN (1881-1973), autor da Teoria Pura do Direito, diferentemente das concepções defendidas por JEREMY BENTHAM (Teoria dos Círculos Concêntricos) e por CLAUDE DU PASQUIER (Teoria dos Círculos Secantes), entendia que nenhum ponto de contato haveria entre o Direito e a moral, tratando-se, pois, de dois sistemas completamente independentes entre si (Teoria dos Círculos Independentes). Para o festejado jurista, a norma jurídica seria o único elemento essencial ao Direito, cuja validade não dependeria de conteúdos morais.
A Teoria dos Círculos Independentes, retratada através do gráfico anterior, reflete algumas conclusões firmadas por KELSEN na sua monumental obra, a Teoria Pura do Direito, cujas ideias principais, no que se refere ao tema vertente, foram assim sintetizadas por SGARBI:
a) A teoria pura do direito consiste no projeto de KELSEN de levar o conhecimento jurídico ao patamar de conhecimento científico;
b) A teoria pura do direito é uma teoria pura do direito e, não, do direito puro. KELSEN distingue o campo da política, cuja tarefa é valorar e produzir normas, do campo da ciência do direito, cujo propósito é o de elaborar um conhecimento que explique o fenômeno normativo, de modo controlado, tornando, assim, possível a predição de possíveis ocorrências normativas futuras;
c) Problemático, contudo, é que o objeto da ciência jurídica, como estrutura de dever, não se diferencia, em essência, das estruturas de dever da moral e da religião. Por conta disso, KELSEN estabelece três pontos de delimitação das normas jurídicas: elas são instrumentos de motivação indireta, respaldadas na força monopolizada pelo Estado, e pertencentes ao mundo da cultura, ao mundo da vontade e contingência humanas; [...]
i) Não cabe à teoria pura do direito dizer o que é o justo. A justiça ou a injustiça das normas cabe ser avaliada pelos destinatários, pelos juízes, e pelos atores partícipes das mobilizações políticas. Cumpre à teoria pura do direito apenas fornecer instrumental para a descrição das normas produzidas nas ordens jurídicas. A teoria pura não prescreve, ela não diz, ao homem, como ele deve pautar o seu destino; [...]. (SGARBI, 2007, p. 27-28)
6.4. Teoria do Mínimo Ético
Coube a GEORG JELLINEK (1851-1911), jurista alemão do final do século XIX e começo do século XX, o desenvolvimento da Teoria do Mínimo Ético, segundo a qual o Direito representa o mínimo de preceitos morais necessários ao bem-estar da sociedade. Como nem todos os membros da coletividade desejam cumprir espontaneamente as regras morais, surge a necessidade de se estabelecer elementos de coerção, capazes de assegurar um regramento ético mínimo, produzindo a essência da normatização jurídica. Neste sentido, a lição de REALE:
A teoria do mínimo ético consiste em dizer que o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver. Como nem todos podem ou querem realizar de maneira espontânea as obrigações morais, é indispensável armar de força certos preceitos éticos, para que a sociedade não soçobre. A Moral, em regra, dizem os adeptos dessa doutrina, é cumprida de maneira espontânea, mas como as violações são inevitáveis, indispensável que se impeça, com mais vigor e rigor, a transgressão dos dispositivos que a comunidade considerar indispensável à paz social.
Assim sendo, o Direito não é algo diverso da Moral, mas é uma parte desta, armada de garantias específicas. A teoria do mínimo ético pode ser reproduzida através da imagem de dois círculos concêntricos, sendo o círculo maior o da Moral, e o círculo menor o do Direito. Haveria, portanto, um campo de ação comum a ambos, sendo o Direito envolvido pela Moral. Poderíamos dizer, de acordo com essa imagem, que tudo o que é jurídico é moral, mas nem tudo o que é moral e jurídico. (REALE, 2002, p. 42)
Nota-se, pois, que, à luz desta teoria, o Direito encontra-se totalmente incluído no campo da moral, concepção teórica que pode ser traduzida também pela mesma ideia de círculos concêntricos, sendo o maior correspondente à moral, e o menor inerente ao Direito. Depreende-se, ainda, que tal teoria acaba por concluir, equivocadamente, que todas as normas jurídicas são igualmente morais, sendo certo que, destas, apenas as mais relevantes são alçadas, pelo Estado, à condição de normas de Direito. A fim de demonstrar o equívoco ao qual a Teoria do Mínimo Ético conduz, cumpre reconhecer a existência de normas jurídicas imorais (isto é, contrárias à moral) e amorais (ou seja, indiferentes ao campo da moral, cujo conteúdo normativo nada possui de positivo ou negativo). Na mesma linha de raciocínio, REALE, criticando a conclusão a que chega JELLINEK, explica que fora da Moral existe o imoral, mas existe também o que é apenas amoral, ou indiferente à Moral, asseverando, pois, que:
Há, pois, que distinguir um campo de Direito que, se não é imoral, é pelo menos amoral, o que induz a representar o Direito e a Moral como dois círculos secantes. Podemos dizer que dessas duas representações de dois círculos concêntricos e de dois círculos secantes, a primeira corresponde à concepção ideal, e a segunda, à concepção real, ou pragmática, das relações entre o Direito e a Moral. (REALE, 2002, p. 41-42)
NADER afirma que, através do emprego da expressão mínimo ético, pretende-se assinalar que o Direito deve conter apenas o mínimo de conteúdo moral, indispensável ao equilíbrio das forças sociais, em oposição ao pensamento do máximo ético:
Se o Direito não tem por finalidade o aperfeiçoamento do homem, mas a segurança social, não deve ser uma cópia do amplo campo da Moral; não deve preocupar-se em trasladar para os códigos todo o continente ético. Diante da vastidão do território jurídico, não se pode dizer que o mínimo ético não seja expressivo. Basta que se consulte o Código Penal para certificar-se de que o mencionado bem-estar da coletividade exige uma complexidade normativa. A não adoção dessa teoria, assim interpretada, implicaria a acolhida do máximo ético, pelo qual o Direito deveria ampliar a sua missão, para reger, de uma forma direta e mais penetrante, a problemática social. (NADER, 2017, p. 43-44)
Citado por VENOSA (2006, p. 187), PAULO HAMILTON SIQUEIRA JR. aduz que, nos termos da teoria do mínimo ético, o Direito representaria um mínimo moral declarado obrigatório para sobreviver como tal, vale dizer, seria o instrumento de força para o cumprimento de certos princípios éticos, do que se infere que o Direito não se traduz em algo diverso da moral, mas, sim, uma parte desta, dotada de garantias específicas, uma vez que, segundo os defensores de tal concepção teórica, nem todos os membros da sociedade estão dispostos a realizar de maneira espontânea as obrigações morais.
Conclusão
Malgrado a proeminência ostentada pelo Direito, forçoso reconhecer que a complexidade da vida em sociedade, geradora de incontáveis conflitos, não poderia mesmo lhe conferir a exclusividade do controle social. Tendo em vista as peculiaridades das diversas relações sociais cotidianamente estabelecidas pelos indivíduos, outros mecanismos assumem parte desta tarefa, posto que se apenas o Direito, com suas características próprias, entre as quais se destaca o poder de coerção, existisse com tal finalidade, as relações sociais restariam simplesmente travadas.
Conforme sintetizado por BETIOLI (2008, p. 8-9), o Direito não objetiva promover o aperfeiçoamento interior do homem; tal tarefa, afirma o citado autor, interessa ao campo da moral. Da mesma forma, não pretende preparar o ser humano para uma vida supraterrena, ligada a Deus, finalidade buscada pela religião. O campo de atuação do Direito, destarte, consiste em disciplinar tão somente os fatos sociais considerados mais relevantes para o convívio social, regulamentando, assim, apenas as denominadas relações de conflitos, conforme explicado acima por NADER.
Desta feita, a regulamentação e a organização sociais podem e devem ser levadas a efeito por meio de outros instrumentos, tais como a religião e a moral, restando conclusiva a importância a eles conferida, os quais, juntamente com o Direito, mas cada um a seu modo, possuem o mesmo propósito: viabilizar e condicionar a vivência do homem na sociedade.
Referências Bibliográficas
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