O direito, a ética e a felicidade
A felicidade perfeita não pode ser conseguida neste mundo. Dadas as condições carnais que limitam o exercício da nossa inteligência, só podemos conhecer o Poder Infinito por analogia com as coisas sensíveis.
A vida humana encerra toda uma hierarquia de fins múltiplos e variados, que derivam das situações concretas em que se exerce a atividade do homem. Os seres ordenam-se para seu fim último por intermédio de seus fins próximos. Na vida terrena dos homens encontra-se uma infinita variedade de finalidades particulares, que modificarão imensamente as diversas carreiras humanas, organizando-as todas para o mesmo fim último, térreo e supraterrâneo.
O que importa é que sempre fique a salvo a relação obrigatória ao fim último absoluto, ou, como diz Tomás de Aquino (1221-1274), ... si secundum illos fines servetur debita relatio voluntatis in finem ultimum – II Sent., dist. 38, q. I a.1).
As diversas finalidades da existência humana devem estar enformadas pela reta vontade, que lhes confere sua orientação para o sumo bem. Se a perfeição e o fim último de nossa natureza consistem na contemplação da Mente Cósmica após a vida terrestre, o fim e a felicidade desta mesma vida só podem consistir no amor do Ser Superior e na aquisição da virtude que geram a alegria da boa consciência.
Trata-se de tender para um objeto que ainda não possuímos. A perfeição neste mundo consistirá em nos pormos em estado de conhecer essa Presença Infinita tão perfeitamente quanto possível. E a esse estado chegamos pela virtude.
Os bens finitos (materiais, corporais, espirituais) destinam-se a ajudar o homem a cumprir do melhor modo possível sua existência na terra, isto é, servem para ajudá-lo a adquirir e praticar a virtude. São pois desejáveis e úteis à felicidade na terra, à medida que estiverem ordenados ao sumo bem e ao fim último do homem, que é contemplar a Divindade.
Essa, aliás, era justamente a solução que Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, X, dava ao problema da felicidade. Mas como ele não pensava numa vida sobreterrestre, prescindindo de Deus e da vida futura, não chegava a consignar ao homem uma felicidade perfeita.
A verdadeira ética, valendo-se das luzes devidas à revelação cristã, substitui o simples eudemonismo peripatético por um finalismo subjetivo e propõe uma filosofia moral que dá satisfação a todas as justas exigências das outras teorias morais.
Na verdadeira ética o pensamento aristotélico racional acha-se profundamente transformado. O bem moral é obrigatório, por exprimir uma ordem de direito querida pelo criador e legislador de nossa natureza. A perfeição e a felicidade devem ser acessíveis a todos e requerem a imortalidade da alma e as sanções da vida futura. A perfeição humana consiste em aproximar-se do Altíssimo, fim e objetivo do homem, pela prática das virtudes morais.
A verdadeira ética inclui tudo o que há de justo nas diversas teorias morais. Reconhece que a razão tem o direito e a obrigação de determinar o dever, mas também se acautela de condenar o sentimento. Exige que os sentimentos colaborem na vida moral e que, hierarquizados pela razão, recebam as satisfações que lhes são devidas.
A verdadeira ética ensina que a felicidade é o aspecto subjetivo da nossa perfeição realizada e deve realmente ser o fruto de nossa atividade moral. O prazer, sendo simplesmente meio, e não fim, deve subordinar-se aos fins últimos da vida moral.
A verdadeira ética salvaguarda a autonomia do agente moral, ao precisar que a lei não é uma imposição arbitrária vinda de fora, mas sim a própria lei de sua natureza, tal como o Infinito a criou.
O direito e a moralidade objetiva
Os atos humanos revelam-se à nossa consciência como morais, afetados de uma propriedade que os faz bons ou maus.
Existem o bem e o mal. Os atos humanos são bons ou maus, à medida que orientem ou não para o fim último da natureza.
É nessa ordem essencialmente objetiva que se pode falar de bem e de mal no domínio do agir, exatamente como se diz que as coisas são boas e más. Como diz Tomás de Aquino (1221-1274), de bono et malo in actionibus oportet loqui sicut de bono et malo in rebus – (S. th. I-II 18, 1).
Qual a norma da moralidade objetiva? O bem e o mal definir-se-ão pela conveniência desse ato com o fim último do homem. Sendo ele um ente racional e livre, a norma imediata do bem e do mal está no acordo ou desacordo dos atos morais com a razão humana.
Há objetos em si mesmos bons ou maus, consoante são proporcionados à obtenção do fim último do homem. E é a conveniência ou proporção que definirão o bem honesto na sua essência objetiva.
A moralidade é objeto de um juízo e depende da razão, a quem pertence julgar. E essa razão é a regra próxima da moralidade objetiva, enquanto apta para apreender cada ato na sua qualidade moral.
Esse juízo, ditame da razão, é a decisão (juízo prático) que diz o que é preciso fazer ou não fazer em função do que a razão conhece como bom ou mal.
Vejamos o silogismo "Deve-se dar a cada um o que lhe é devido; ora, este livro pertence a Pedro, que me emprestou; logo, devo restituir-lhe". A conclusão exprime o último juízo prático moral, que ordena (ou proíbe) a ação em função do bem ou do mal e constitui a consciência moral, que é um ato e não uma faculdade.
A moralidade objetiva é formada por elementos que podem ou não estar em relação de conformidade com a lei moral.
O objeto moral é a coisa que o ato realiza diretamente por si mesmo, enquanto essa coisa é conhecida em concordância ou não com a lei moral. A esmola, por exemplo, ao aliviar os necessitados, é uma coisa moralmente boa.
Fonte primeira da moralidade, a ação recebe sua forma de seu objeto, tal como o movimento do seu termo, razão por que é primeiramente do seu objeto que o ato humano tira a sua moralidade.
Circunstâncias são os elementos acidentais do ato. São relativas à condição particular do sujeito do ato (quis), à natureza do objeto (quid), ao lugar da ação (ubi), aos meios empregados (quibus auxiliis), ao fim secundário (cur), ao comportamento interior ou exterior do agente (quomodo) e ao fim e à duração do ato (quando).
Puros acidentes, as circunstâncias não são capazes de especificar um ato moral. Mas têm razão do objeto e por isso especificam o ato e podem mudar-lhe a natureza. De acordo com o caso, são agravantes (CP art. 61), como roubar um pobre, ou atenuantes (CP art. 65), como roubar para dar de comer a filhos na miséria.
Não consideramos o fim intrínseco do ato exterior (finis operis), mas o fim que o sujeito persegue interiormente por sua intenção (finis operantis). Esse propósito pode ser diferente do fim objetivo: assim se pode dar esmola não para aliviar os pobres (fim objetivo da esmola e o que lhe confere o seu ser moral), mas por pura ostentação.
É por isso que um ato concreto só será bom se for conforme à regra da moralidade (bonum ex integra causa). Pelo fato de ser mau um dos elementos, o próprio ato torna-se moralmente mau (malum ex quocumque defectu).
O direito e a moralidade subjetiva
A consciência moral, como regra imediata e universal de procedimento, é que determina, para cada um em particular, a qualidade moral de seus atos.
Trata-se de um juízo prático pelo qual decidimos o que devemos fazer ou não fazer. É a apreciação da nossa própria conduta: obriga-nos ou nos desobriga, escusa-nos ou nos acusa.
Pode ser verdadeira ou errônea, quando formule um juízo conforme ou contrário à verdade. Reta, se julgar de acordo com suas luzes e só procurar o bem, ou má, se se inspirar nas paixões ou nos interesses, em vez da verdade e do bem.
Certa, provável ou duvidosa, segundo o juízo formulado, pode também ser razoável e perfeita, se a consciência se modelar somente em boas intenções e julgar consoante a verdade.
Para seguir a regra subjetiva imediata da moralidade, devemos agir sempre com consciência reta, isto é, com bons propósitos e com inteira boa-fé. Por isso é que nunca se deve agir contra a consciência reta, mesmo se ela de fato for errônea, pensando que tal é o dever.
Assim é que um ato materialmente mau, praticado por obediência ao juízo de uma consciência errônea, mas certa da sua licitude, não é uma falta moral, pois o objeto, ainda que materialmente mau, foi amado e querido como moralmente bom.
Mas se a consciência está incerta relativamente à qualidade moral de um ato, este ato não é permitido, por ser injusto agir moralmente no caso. Se a dúvida persistir, há que se formar a consciência, ou seja, chegar ao menos a uma certeza indireta e prática, para tomar o partido mais sensato.
É o probabilismo ou ter uma probabilidade séria. Se há dúvida quanto à existência ou à aplicação da lei, é como se a lei não existisse. A pessoa é livre para agir num sentido ou noutro.
Pode ser legítimo ou errôneo opor a teoria moral à prática. Todo o modo moral de agir deve ser razoável e determinado por um juízo da razão prática, em conformidade com os princípios do dever.
O ofício da consciência moral é conformar o modo de viver ao princípio que ela considera urgente e prevalente, em razão do bem essencial do indivíduo ou do interesse maior do bem comum da sociedade.
A decisão da consciência, que às vezes escolhe transgredir uma lei moral para salvar uma lei superior, só é justa e prudente quando tomada em concordância aos princípios que regulem o comportamento moral em semelhantes casos. Como diz Tomás de Aquino (1221-1274), conscientia (...) nominat ipsum actum, qui est applicatio cuiuscumque habitus vel cuiuscumque notitiae ad aliquem actum particularem (Ver. 17, 1; cf. II Dist. 24, 2 a. 4; S.th. I 79, 13; I-II 19, 5).
O valor da consciência moral é distinto do valor do senso moral, que é sentimento imediato e absoluto da lei reguladora do conhecimento e da ação prática.
O senso moral é cada vez mais sujeito à ignorância e ao erro, à proporção que desce dos preceitos secundários da lei natural às aplicações desses preceitos e às conclusões remotas que deles derivam.
Por carecer de luzes, a consciência moral é falível por falta de retidão moral. Mas ela nem sempre se engana. Quando é errônea, pode ser corrigida pela reflexão, pelo estudo ou pelos conselhos das pessoas prudentes. Sobretudo, ela se aperfeiçoa pela prática do bem e acaba por funcionar retamente com uma espécie de espontaneidade que é a marca própria da virtude da prudência.
O direito e a consciência
A norma suprema da moralidade faz-se ouvir dentro do homem por uma faculdade própria, que é a consciência. É ela que profere no íntimo do homem um juízo sobre o seu comportamento.
Conhecemos nossos próprios sentimentos e atos, sabemos que estamos sentindo ou fazendo alguma coisa. Essa presença do sujeito em si mesmo, sem referência a alguma regra de conduta, é o que se chama de consciência psicológica.
Mas quando conhecemos o modo como se relacionam nossos sentimentos e atos com o fim supremo da vida humana, esses atos serão moralmente lícitos ou ilícitos e nos são mostrados pela consciência moral.
Esse sinal que distingue entre o bem e o mal e tende a levar cada qual a praticar o bem e evitar o mal é um julgamento prático profundo pela inteligência sobre a honestidade ou desonestidade de cada um dos nossos atos. Todo o homem, por mais primitivo e rude que seja, possui uma consciência moral e uma consciência psicológica.
O testemunho da consciência, anterior a determinado ato, que manda ou proíbe, é a consciência antecedente. Se posterior a tal ato, aprovando ou desaprovando, é a consciência conseqüente.
A consciência moral é algo congênito, que começa a falar desde que a criança chegue ao uso da razão. O criminoso, às vezes, gostaria de extingui-la ou sufocá-la, porque ela remorde dolorosamente à sua revelia. É a voz do Ser Superior no íntimo de cada indivíduo que vem atingir cada ser humano, a fim de o executar na terra.
Todos os povos, mesmo os mais primitivos, reconheceram a existência da consciência moral. A filosofia greco-romana desenvolveu a noção. Ovídio (45 a.C.-17 d. C.) e Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) têm belas palavras a esse respeito.
"Pratica o bem; evita o mal." A criança não percebe muito bem o que é o bem e o que é o mal. Aos poucos, a consciência vai-se enriquecendo e educando, mediante o estudo e a experiência da vida. O adulto já percebe que consiste em agir não só por estrita obrigação, mas também por generosidade e magnanimidade.
Nos casos concretos, a consciência se coloca entre o nosso objetivo da moralidade, válida para todos os homens, e as circunstâncias precisas em que se acha o sujeito. Procede então a um raciocínio, no qual entra a virtude da prudência. Virtude suprema para Epicuro (341-270 a.C.), para Tomás de Aquino (1221-1274) ela é a reta razão de agir (recta ratio agibilium – S. th. I-II 57, 4; II-II 47, 5 arg. 3).
A prudência leva em conta os meios necessários para atingir determinado fim, avaliando a oportunidade de tais ou tais gestos ou atividades. Pode moderar a audácia indevida como sacudir o desânimo. Às vezes, ela leva a um ditame da consciência aparentemente desconcertante, mas sábia.
Segundo o raciocínio "É preciso fazer o bem e evitar o mal", restituir ao dono os valores por ele confiados é um bem
. No caso concreto, a pessoa que me confiou seu revólver é um doente. Quere-o de volta para matar a si ou a outrem. Por conseguinte, aqui e agora, é preciso não devolver a arma a mim confiada em depósito.Na rua, duas pessoas diante de um sinal (semáforo) amarelo podem tomar atitudes opostas: há quem atravesse para aproveitar a última oportunidade de passar, para não perder um encontro marcado, e há quem não atravesse, lembrando-se de experiência anterior infeliz. Ambas podem ter sido prudentes, pois a situação com que se deparavam era complexa.
A literatura bíblica está cheia de exemplos ligados à consciência. Após o pecado original, nossos primeiros pais foram atordoados (Gn 3, 7-13); também Caim sentiu o remorso (Gn 4, 9-16). O rei Davi sentiu o descompasso do seu coração após ter recenseado o povo, dizendo: "Cometi um grande pecado" (2 Sm 24, 10). Nos salmos em geral manifesta-se tanto a consciência atribulada pelo pecado (Sl 6; 31; 37; 50; 101; 129; 142) como a consciência feliz pelo bom desempenho do dever (Sl 14; 16, 1-5; 40, 2-4...).
O direito, a consciência e o dever
É a consciência que profere o julgamento imediato sobre a liceidade do ato humano. Quando se apóia em princípios morais autênticos, declarando lícito ou ilícito o que é realmente tal, ela é reta ou verídica. Quando parte de falsos princípios morais tidos como genuínos ou parte de verdadeiros princípios falsamente aplicados ao caso, ela é errônea.
Por motivos de pouca monta, julgando ou receando que tal ação seja pecaminosa, a consciência escrupulosa vive em angústia quase incessante, pois vê em tudo graves deveres e perigos.
A delicada, movida por amor a Deus, tem o olho aberto até para as mais leves ocasiões de pecado, procurando zelosamente afastar-se de todas.
Diante de um dilema (agir ou não agir... agir deste ou daquele modo?), a perplexa julga haver pecado em qualquer opção, não vendo como evitar a culpa.
A relaxada julga levianamente não incorrer em pecado ou incorrer em falta leve, quando na realidade comete falta grave.
Assim como um braço engessado se atrofia, também a consciência cauterizada já quase não percebe a licitude de suas faltas, pois os seus apelos são constantemente contraditados. Vai definhando, não fala mais e deixa o seu portador em paz... de cemitério.
A farisaica sem dificuldade aprova atos gravemente ilícitos e exagera a gravidade de feitos de menor importância.
Por essa razão é que toda e qualquer pessoa tem a obrigação de empregar os meios oportunos para possuir uma consciência reta, uma vez que ela trata de assuntos de importância capital.
Igualmente, todo o homem está obrigado a observar estritamente os preceitos e as proibições de sua consciência, desde que ela seja verídica ou inculpadamente errônea.
A consciência é a norma próxima da moralidade, pois ela faz a aplicação da lei geral à situação concreta em que a pessoa se encontra. Como diz Tomás de Aquino (1221-1274), conscientia (...) est applicatio (...) ad aliquem actum particularem (Ver. 17, 1; cf. II Dist. 24, 2 a. 4; S.th. I 79, 13; I-II 19, 5).
Assim, não é lícito seguir a consciência culpadamente errônea. Antes da ação, torna-se necessário dissipar o erro da consciência, pois agir de acordo com os julgamentos errôneos dá origem a uma desordem moral.
Somente a consciência certa pode ser tomada como reta norma dos costumes, pois a dignidade humana exige que todo o homem, ao agir, proceda de acordo com as leis do respectivo agir.
O médico, ao atender aos doentes, deve proceder segundo as normas da medicina, reconhecidas por ele como certas ou válidas. Ao médico não é lícito agir sem ter certeza de que o tratamento recomendado ao paciente é moralmente útil e adequado.
A certeza que se requer, ao falar em consciência "firme", não é a certeza matemática, mas a moral, que exclui toda a dúvida razoável ou todo o motivo sério de duvidar, embora não exclua um leve receio de erro. Assim, é moralmente certo que a mãe não dê veneno ao seu filho ou que um amigo fiel não engane seu amigo.
A palavra syneidesis=consciência (1Sm 25,31; Sb 17,10 +; 1Cor 4,4) exprime, nas cartas paulinas, valores propriamente cristãos. Quaisquer sejam as normas exteriores, o comportamento do homem depende apenas do julgamento dele (At 23,1; 24,16; Rm 2,14-15; 9,1; 13,5; 2Cor 1, 12), mas esse julgamento está sujeito ao julgamento de Deus (1Cor 8,7-12; 10, 25-29; 2Cor 4,2 e 1Pd 2,19). A consciência é boa e pura se inspirada pela fé e pelo amor (1Tm 1,5.19 etc.; 1Pd 3, 16-21) e purificada pelo sangue de Cristo (Hb 9, 14; 10,22).