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A progressão de regime na Lei nº 11.464/07

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26/06/2007 às 00:00
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4- ELEMENTOS PARA EXAME

Conforme referi no tópico supra, a Lei nº 10.792/03 alterou diversos artigos da LEP. Interessa-nos mais de perto as alterações operadas no artigo 112 da LEP. Na redação anterior do dispositivo, era requisito da concessão da progressão de regime a apresentação de parecer pela Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, realizado pela EOC, quando fosse o caso. A nova redação dispensa estes instrumentos, contentando-se com o apenado "ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento."

No caso do Rio Grande do Sul, o Regulamento Disciplinar Carcerário, aprovado pela Portaria nº 014/04 da SJS-RS, estabelece, no artigo 15, que a manifestação da administração carcerária deverá conter manifestação formal, sucinta e individual de, pelo menos, três dos seguintes servidores com atuação no estabelecimento penal em que se encontrar recolhido o apenado: a) Presidente ou membro do Conselho Disciplinar; b) Responsável pela Atividade de Segurança e Disciplina; c) Responsável pela Atividade Laboral; d) Responsável pela Atividade de Ensino; e) Assistente Social, sendo que "se as características individuais do preso indicarem que a concessão do benefício pleiteado poderá gerar reflexos nocivos a ele ou à sociedade, o Diretor/Administrador poderá juntar ao documento referido no "caput" deste artigo, avaliação psicológica e/ou psiquiátrica como subsídio à decisão judicial. Nesta avaliação, poderão ser referidas a prognose de reincidência e grau de adesão do apenado ao Programa Individualizador previsto no artigo sexto da Lei 7.210/84, com as modificações inseridas pela Lei 10.792/03."

Já "nos casos de apenados por delitos hediondos, ou equiparados, tais como: tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, ou com histórico de fugas, ou com envolvimento em formação de quadrilha, todos cujas penas sejam superiores a 10 anos, em regime fechado, ou ainda apenados condenados a penas superiores a 20 anos, independentemente do delito, em regime fechado, o atestado do Diretor/Administrador, haverá de ser homologado por Comissão da Secretaria da Justiça e da Segurança, presidida pelo Secretário, por maioria de votos." [13]

A conformação conferida pela portaria ao menos amplia o conteúdo do relatório carcerário, fazendo com que seja mais do que um mero atestado de bom comportamento. Todavia, têm sido comuns decisões que consideram suficiente a mera atestação de comportamento suficiente.

Ora, com a devida venia daqueles que esposam semelhante posicionamento, não me parece que um mero atestado de conduta seja instrumento para aquilatar o mérito de concessão de progressão de regime. O comportamento do apenado reflete um conjunto de motivações que não estará necessariamente presente na situação do novo regime, especialmente quando considerada a progressão do regime fechado para o semi-aberto, pois este último já contempla benefícios como a saída temporária e o serviço externo, recolocando o apenado em contato com o meio social.

Deveras, o fato de o apenado comportar-se de forma satisfatória no cárcere, onde está sujeito a regras e condicionantes especiais, não significa que o fará fora dele.

A bem da verdade, análise alguma poderá asseverar, com precisão, se o apenado irá ou não reincidir ou se irá comportar-se de acordo com a lei. A rigor, a multiplicidade de motivações para o delito é virtualmente impossível de ser compilada e normalmente não é única. Assim sendo, não há como saber se os fatores de motivação ao delito, ou melhor, de não-motivação ao comportamento esperado, estarão ou não presentes no futuro. Esta constatação não invalida, porém, a necessidade de que sejam utilizados todos os mecanismos possíveis de aferição e análise, pois está em jogo a segurança social.

Felizmente, a jurisprudência do TJRS tem se inclinado a não abrir mão dos exames, ao menos nos casos de delitos hediondos e equiparados, considerando ser necessário que "o Magistrado apóie a concessão em elementos amplos como a avaliação social e psicológica, previstas no artigo 15 do RDP." [14]

Sendo elaborados por profissionais habilitados, tais apontamentos fornecem valioso subsídio para análise não só do merecimento do apenado, como da prognose de delinqüir. A título de curiosidade, dos processos de execução em relação aos quais tive contato após o julgamento do STF antes mencionado, somente três apresentaram prognose favorável. Nos demais, esmagadora maioria, múltiplos aspectos foram elencados de forma desfavorável ao apenado, Dentre muitos exemplos, podem ser citados a completa falta de consciência acerca do cometimento de uma infração, tendo o apenado "justificado" seu ato; a ausência de qualquer suporte familiar e a falta absoluta de perspectivas na vida fora do cárcere. Um dos apenados, em situação inusitada, ao ser entrevistado afirmou que acreditava que o trabalho "era perda de tempo". Como disse, o apenado, enquanto cidadão (e ele não perde esta condição), é livre para tomar como corretos os valores que bem lhe aprouver. Deve arcar, contudo, com as conseqüências de suas escolhas.

Se seus valores expressados não correspondem aos que a lei considera "corretos", abre ele ensanchas a que ilações sejam tomadas em linha de conta a partir da postura que assumiu, eventualmente em prejuízo seu.

No caso específico daquele que acredita ser o trabalho "perda de tempo", legitima concluir que não irá sequer procurar uma ocupação lícita. Como tem de prover seu sustento, e talvez de sua família, certamente irá buscar alternativas. Se estas se encontram fora do trabalho lícito, não é preciso muito raciocínio para concluir que, cedo ou tarde, irá se lançar, provavelmente, na senda do delito. A lógica indica isso.

Desta forma, o certo é que, estando em voga a defesa social (certos ou errados os valores jurídicos), deve o julgador valer-se de todos os mecanismos possíveis para concluir por uma prognose de comportamento do apenado. Se concede benefício com base apenas em atestado de conduta, sua decisão afigura-se temerária e deve ser corrigida.


5- SITUAÇÕES POSSÍVEIS

Com o advento da nova lei, algumas situações se tornam possíveis, demandando soluções diversas. A primeira delas contempla os apenados que sofreram condenação por fato anterior ao advento da nova lei. A solução a ser aplicada, a priori, parece bastante simples. Basta considerar o caráter da lei e as regras de direito intertemporal.

Neste caso, resta induvidoso que a nova lei ostenta caráter de direito material, e, portanto, pode retroagir, na forma dos artigos 5º, inciso LX (contrario sensu) e 2º, parágrafo único, do CP. Ocorre que tem sido defendida uma exegese que torna o problema um tanto mais complexo.

Tal posicionamento parte da premissa de que a vedação (por inconstitucionalidade) do regime integral fechado, reconhecida pela jurisprudência a partir do leading case do STF, é que deve servir de paradigma para se aferir a maior gravosidade ou não da Lei nº 11.464/07.

A partir desta visão, todos os condenados por fatos anteriores à nova lei podem invocar o lapso de tempo de 1/6 par a progressão e não os 2/5 ou 3/5 da nova lei. Em síntese, deve ser contraposto ao texto da nova lei o entendimento jurisprudencial acerca da vedação (que dá pela inconstitucionalidade), antes minoritário e que acabou por prevalecer.

Ingressamos aqui na tormentosa questão dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Claro que aqui estamos abstraindo o fato de a decisão do STF ter sido tomada em controle difuso. Tivesse sido tomada em controle concentrado, duas alternativas seriam trazidas à lume. Considerada a tradicional doutrina da nulidade, todo e qualquer efeito da Lei nº 8.072/90 no tocante à vedação de progressão de regime deveria ser expungido do mundo jurídico, porque "quod nullus est, nullu efectu producit". Assim fosse, dúvida alguma haveria acerca do fato de que aos apenados anteriores à nova lei, deveria ser aplicado o lapso de 1/6, pois a nova lei seria mais gravosa. Considerada, por outro lado, a teoria da anulabilidade, ou seu contraponto, a teoria da presunção de validade dos atos normativos, cujo corolário é a declaração com efeitos ex nunc, então a situação daqueles que foram condenados anteriormente à lei deveria considerar a vedação absoluta de progressão, o seja, a nova lei é mais favorável, e, portanto, aplicável. [15]

Mas a decisão do STF foi tomada em controle difuso, o que implica dizer que não tem efeitos erga omnes. Ora, se a decisão não tem efeitos erga omnes, tollitur quaestio, valendo a situação legal anterior, ou seja, a vedação absoluta, de forma que a nova lei é mais benéfica, devendo ser aplicada. Sintetizando, para efeito de verificação de ser a lei nova mais benéfica ou não, deve ser tomada a situação legal anterior em face da nova, e não a interpretação jurisprudencial anterior (que era monoritária até o julgamento do STF) em contraponto do texto da nova lei.

A segunda situação tem em mira os apenados que tiveram concedida a progressão anteriormente à nova lei. Duas variantes podem ocorrer, conforme tenha ou não a decisão transitado em julgado. Se a decisão já havia transitado em julgado, obviamente que deve ser aplicada a fração de 1/6. Se não transitou, mais duas situações podem ocorrer. Na primeira, a decisão foi impugnada através de recurso ao qual não foi agregado efeito suspensivo. Na segunda, foi agregado efeito suspensivo ao agravo em execução por força de mandado de segurança ou medida cautelar (ver tópico supra).

Se o recurso de agravo em execução não teve concedido efeito suspensivo, deve ser tomada a situação materializada pela decisão, ou seja, o apenado teve concedida a progressão de regime antes da nova lei, e deve ter aplicado o patamar de 1/6. Se foi concedido efeito suspensivo, vale a situação anterior à concessão da decisão, ou seja, há a contraposição da vedação legal absoluta (e não do posicionamento jurisprudencial que declara inconstitucional a vedação) e a nova lei que permite a progressão com 2/5 e 3/5 ao apenado, sendo a nova lei, por mais benéfica, aplicável.

Na terceira situação, temos os condenados por fatos ocorridos após a nova lei. A estes se aplica a nova lei integralmente, seja por ser mais benéfica, seja pela circunstância de o fato ter sido cometido já sob sua égide.

6- CONCLUSÕES

A eficiência da execução penal é essencial para a consecução dos objetivos da ordem jurídica. Pensar em um direito penal sem pensar em uma execução penal tem o mesmo efeito de se pensar em um direito civil sem um processo de execução, ou seja, equivale a pensar em direitos pífios e caducos, que remanescem no campo meramente formal. Se o direito penal vale pela capacidade de intimidar, de impor um comportamento pela ameaça de sanção, a execução penal se marca exatamente como a realização concreta da sanção. Se ela não é efetiva, o direito penal não é efetivo.

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De outro lado, devemos partir da premissa de que vivemos em plena liberdade, de forma que a restrição ao comportamento é exceção e somente se legitima quando em voga a proteção do direito subjetivo alheio, observada (sempre) a proporcionalidade. Portanto, falar-se em execução penal efetiva é, também, falar em um processo que resguarde os direitos e garantias fundamentais, cuja asseguração e promoção é, em última análise, a função primordial do Estado.

Apesar disso, a execução penal é tratada como um mero adendo do processo penal, recebendo atenção, sobretudo, daqueles que com ela trabalham diretamente. Descura boa parte da comunidade jurídica que a fase de execução é palco de questões fundamentais.

Exemplo desta importância, podemos verificar especificamente na questão da concessão da progressão de regime nos delitos hediondos, a qual se tornou típico incidente de execução penal, com sérias repercussões sociais.

O julgamento de um precedente pelo STF deu margem a que houvesse uma completa mudança de paradigma, ainda que a decisão somente tivesse eficácia limitada. Isso sugere uma incontestável mudança no papel desempenhado pela jurisprudência em nosso Direito, implicando a adoção genérica e tácita do precedente vinculante, ao lado das hipóteses já previstas.

Ainda em relação ao mencionado precedente, a presença de julgamentos contra legem é uma possibilidade lógica em sistemas que contemplam o controle de constitucionalidade difuso. Mas devemos estar atentos para o fato de que nosso sistema jurídico é de Direito Positivado. Disso deflui que a lei apresenta presunção de constitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade, ostenta, neste contexto, caráter de excepcionalidade, e sua motivação deve advir de uma contrariedade clara ao texto constitucional.

A vedação de progressão de regime em delitos hediondos não se apresentava em afronta clara ao texto constitucional, pois mecanismos outros há que asseguram a individualização da pena durante a execução. A mudança observada na jurisprudência do STF criou, no entanto, uma séria dificuldade de coerência, que somente poderia ser contornada pela extensão da possibilidade de progressão a todos os apenados.

Isso foi feito através da Lei nº 11.464/07, a qual, porém, prevê como requisito objetivo de cumprimento de sanção frações diversas daquela prevista no artigo 112 da LEP.

Este mesmo preceptivo teve sua redação alterada, simplificando-se a exigência em relação aos requisitos subjetivos. No caso do Rio Grande do Sul, mesmo havendo determinação que amplia os elementos a serem carreados ao parecer da administração carcerária, tem havido decisões que se contentam com simples atestação de bom comportamento. Felizmente a jurisprudência do TJRS inclinou-se pela necessidade de uma análise mais aprofundada em especial nos delitos hediondos.

Tal linha de pensamento corretamente constata que, embora os exames e pareceres fornecidos conjuntamente com a atestação de comportamento jamais possam ser absolutamente precisos acerca de uma prognose em relação ao comportamento futuro do apenado (que é o que interessa), ao menos munem o julgador de mais um elemento de convicção, não sendo prudente, tendo em mira a necessidade de preservação da segurança social (garantismo social - proibição de proteção insuficiente), que se descure de elementos de informação firmados por profissionais especializados e que somente podem ser refutados de forma fundamentada.

Com o advento da nova lei, que altera a redação da Lei nº 8.072/90, suprimindo o regime integral fechado, e feita a ressalva da necessidade de avaliação de mais do que mero atestado de comportamento carcerário, surgem as hipóteses nas quais a situação do apenado poderá ser enquadrada, tendo em linha de conta a época do fato ou a presença ou não de recurso.

Há porém, uma premissa sempre válida, materializada no fato de que o paradigma a ser considerado é o legal, de forma que, se o apenado não logrou obter por decisão judicial anteriormente à nova lei o direito de progressão, deve ser considerada, para efeito de aferição da maior ou menor gravosidade da nova lei (que tem natureza material preponderante), a vedação legal absoluta e não o entendimento jurisprudencial anterior que acabou por solidificar-se.

Mas o principal fator que em qualquer hipótese deve ser considerado é a necessidade de aferição da projeção de resultados das opções legislativas e jurisprudenciais na realidade social. O magistrado deve render-se à noção de justiça do seu tempo, à noção de justiça dos jurisdicionados, e não a convicções doutrinárias alicerçadas para outras realidades e cuja aplicação se mostre contraproducente. O legislador deve recordar que o poder do povo emana e em seu nome deve ser exercido. Em síntese, como sempre, a melhor solução jurídica se revela na soma da razão com o bom senso, permeada pela dimensão ética e pela busca de resultados práticos.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A progressão de regime na Lei nº 11.464/07. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1455, 26 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10068. Acesso em: 28 mar. 2024.

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