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A relação jurídica de consumo:

conceito e interpretação

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27/06/2007 às 00:00
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4. FORNECEDOR

            Fornecedor, segundo a definição legal (CDC 3º), "é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços". Assim, não se exige que o fornecedor tenha personalidade jurídica, e nem mesmo capacidade civil. Em suma, fornecedor é todo e qualquer participante do ciclo produtivo-distributivo. [50]

            A definição que nos é dada pela lei não exclui nenhum tipo de pessoa jurídica, seja sociedade empresarial, com ou sem fins lucrativos, fundações públicas ou privadas, sociedades de economia mista, empresas públicas, órgãos da Administração direta, etc.. [51]

            Atente-se que nem todo fornecedor é empresário. Assim, o art. 966, parágrafo único, do CC, exclui o profissional liberal do conceito de empresário, mas não há dúvidas de que ele é tratado como fornecedor pelo CDC, ainda que mereça tratamento diferenciado (art. 14, 4º, do CDC). As sociedades simples (CC 981 e 982) não são empresárias, mas isso não lhes afasta da incidência do CDC. Também o Estado, ostensivamente quando atua como agente econômico ou prestando serviços públicos mediante remuneração direta [52], está abrangido pelo conceito de fornecedor. [53]

            Filomeno enquadra na definição de fornecedor todos que "propiciem a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, de maneira a atender às necessidades dos consumidores, sendo despiciendo indagar-se a que título." [54]

            Para Cláudia Lima Marques [55], o que caracteriza o fornecedor de produtos é o desenvolvimento de atividades tipicamente profissionais. Já quanto ao prestador de serviços, basta que a atividade seja habitual ou reiterada, não se exigindo que o prestador seja "profissional" da área.

            Já as entidades associativas e os condomínios em edificações, diz Filomeno [56], não podem ser considerados fornecedores em face de seus associados e condôminos, pois "seu fim ou objetivo social é deliberado pelos próprios interessados, em última análise, sejam representados ou não por intermédio de conselhos deliberativos, ou então mediante participação direta em assembléias gerais que, como se sabe, são os órgãos deliberativos soberanos nas chamadas ‘sociedades contingentes’". Porém, se a entidade associativa tiver como fim precípuo a prestação de serviços, cobrando mensalidade ou algum outro tipo de contribuição, deve ser considerada fornecedora desses serviços. [57]

            4.1 Elementos característicos do fornecedor

            4.1.1 Atividade econômica

            Por atividade se entende o "conjunto de atos ordenados em função de um determinado objetivo (...), devendo ser avaliada de forma autônoma em relação aos atos singulares de que é composta"; de onde se concluí não bastar a prática de atos isolados para que se caracterize a figura do fornecedor. "Qualquer ato singular deve poder ser reconduzido a uma atividade para ser considerado ato de fornecimento e submeter-se às normas do CDC". [58]

            Ainda, pela análise do dispositivo legal que define quem pode ser considerado fornecedor, temos que não bastará o exercício de qualquer atividade, mas sim de uma atividade econômica.

            4.1.2 Profissionalismo

            Outrossim, tal atividade econômica deve ser desenvolvida com profissionalismo, i.e., com regularidade, objetivo de satisfação de necessidade alheia, e o propósito de obter um ganho. [59]

            A regularidade consiste no exercício constante e estável da atividade, de modo que, como ressalta Flávia Püschel [60], não são considerados profissionais aqueles que exercem atividade econômica "acidentalmente e cuja organização exaure sua função no cumprimento do próprio ato para o qual foi criada". Porém, é importante ressaltar que não se exige a habitualidade da atividade – i.e., que seja ininterrupta – para que se configure uma relação de consumo; a atividade comercial sazonal ou eventual não obsta a incidência das regras do CDC. De acordo com Rizzatto Nunes, a atividade que ocorra com certa regularidade, ainda que não de forma contínua, com o objetivo de auferir lucros, basta para que se configure a relação de consumo. [61]

            É indispensável que o desenvolvimento da atividade econômica seja voltado para a satisfação de necessidade alheia, pouco importando se para poucos ou para muitos, não sendo possível a caracterização de profissionalismo na pessoa que produz exclusivamente para a satisfação de necessidade pessoal.

            Quanto ao último elemento, a obtenção de ganho, há divergência doutrinária.

            Para alguns – como Giuseppe Ferri e Tullio Ascarelli [62] – deverá haver finalidade de obtenção de lucro, de incremento no patrimônio, de modo que as entidades que desenvolvem atividades sem fins lucrativos não seriam consideradas fornecedoras.

            Porém, prevalece que basta ter "por objetivo buscar o reembolso dos fatores de produção empregados ou evitar perdas e gastos, sem procurar o incremento patrimonial propriamente dito." [63] Entender de outro modo poderia fomentar a concorrência desleal entre entidades sem fins lucrativos – sujeitas, à princípio, à responsabilidade subjetiva, e ressalvada a aplicação dos arts. 927, parágrafo único e 931, do CC – e as com finalidade lucrativa, que, tendo que incluir no custo de sua operação o ônus de responder objetivamente aos danos que der causa, não conseguiria competir com os preços da primeira. [64]

            "

Além disso, o objetivo de ganho deve referir-se à atividade em si, e não aos atos singulares, ou seja, não há necessidade de que cada ato singular seja praticado com o objetivo de obter ganho. O fornecedor é responsável, por exemplo, por produtos distribuídos gratuitamente como amostra, pois, embora não haja remuneração por tais amostras, tal distribuição gratuita faz parte do exercício da atividade econômica profissional do fornecedor." [65]

            4.1.3 Autonomia

            Por fim, para que se caracterize determinado ente como fornecedor, é preciso que exerça sua atividade econômica de forma autônoma, i.e., não-subordinada. A definição de atividade autônoma é obtida como contraposição de atividade subordinada: desenvolvida na dependência de outrem e cujos resultados se referem a bens alheios ou a serviços depois fornecidos por outrem. [66] Assim, aquele que exerce atividade na qualidade de empregado de outrem, não é fornecedor, mas está inserido na cadeia produtiva, e, portanto, é fornecedor, aquele que desenvolve suas atividades

            4.2 Espécies de fornecedor

            Estabelecida a amplitude do conceito de fornecedor (art. 3º), cabe agora traçar eventuais diferenças entre os diversos participantes da cadeia produtiva-distributiva. A princípio, todos são tratados de forma uniforme ao longo do Código, e referidos sob a denominação comum de fornecedor. Há uma exceção, porém: na seção que trata da ‘responsabilidade por fato do produto ou serviço’ (arts. 12-14), a lei dá tratamento específico e diferenciado para o produtor [67], o comerciante, e o prestador de serviços.

            4.2.1 Produtor final e produtor de matéria prima ou parte componente

            De acordo com as etapas da produção, é possível identificar três espécies de produto: a matéria-prima (materiais e substâncias destinados à fabricação de produtos), a parte componente (que se destina à incorporação a um produto final), e o produto final (pronto para servir ao uso a que se destina). [68]

            Um mesmo produto pode, dependendo das circunstâncias, estar enquadrado em qualquer uma dessas categorias, dependendo, sobretudo, de uma análise da função do produto e do modo como é oferecido no mercado.

            Perante o consumidor tal distinção não apresenta relevância prática nas questões relativas ao vício do produto, em razão da responsabilidade solidária imposta pela lei (CDC, art. 18). Mas quando adentramos no tema da responsabilidade pelo fato do produto mostra-se de grande importância, uma vez que, de acordo com Flavia Püschel [69], "cada produtor responde pelos defeitos surgidos durante o seu próprio processo de produção ou em fases anteriores", de modo que o "produtor final responde pelos defeitos da parte componente, bem como pelos defeitos da matéria-prima empregada na produção da parte componente (...), assim como por aqueles resultantes diretamente de sua própria atividade."

            4.2.2 Produtor real, presumido e aparente

            Produtor real é aquele que participa de maneira autônoma no processo de produção de um bem, contribuindo em qualquer medida "para a confecção de um produto apto para a distribuição, seja de um produto final, seja de uma parte componente, seja de uma matéria-prima." [70]

            Produtor presumido é o importador. Tal ficção legal existe como concretização do postulado que determinada a facilitação da defesa do consumidor em juízo, evitando que ele tenha que buscar a reparação em face do produtor real estrangeiro.

            Produtor aparente é aquele que simplesmente apõe ao produto o seu nome ou marca, de modo a ocultar a indicação do produtor real do produto, criando a aparência de ter ele mesmo produzido o bem. Ainda que não tenha efetivamente participado da produção, o produtor aparente é tratado como se tivesse em razão da situação de aparência criada para o consumidor. Atente-se, porém, que não fica excluída a eventual responsabilidade do produtor real. [71]

            4.2.3 Comerciante

            Comerciante, na definição de Flavia Püschel [72], é todo sujeito que distribui produtos no âmbito de sua atividade profissional, sem exercer ele próprio atividade de produção.

            Para diferenciar a atividade produtiva da mera distribuição, deve ser levada em conta "a influência da atividade em questão sobre a configuração e qualidades essenciais do produto". Assim, se há "influência sobre a estrutura ou qualidades essenciais do bem, trata-se de atividade de produção. Existindo, ao contrário, apenas uma manipulação insignificante, trata-se de atividade de simples distribuição" [73].

            O tratamento dado pelo CDC ao comerciante é diferente dos demais fornecedores. Enquanto a responsabilidade pelo vício do produto é solidária de todos os participantes da cadeia produtivo-distributiva, o comerciante somente é responsabilizado pelo fato do produto direta e isoladamente quando houver má-conservação do produto, ou ainda, de forma subsidiária, quando o produtor final [74] do produto não for suficientemente identificado, impedindo que o consumidor acione diretamente o produtor real.

            4.2.4 Prestador de serviços

            Prestador de serviços é aquele ator da cadeia produtiva-distributiva que presta qualquer tipo de atividade no mercado de consumo, envolvendo ou não o concomitante fornecimento de produto.

            Quando houve fornecimento de produto juntamente com a prestação de serviços, deverá ser analisada qual a atividade preponderante para que se possa dar o tratamento legislativo adequado à relação de consumo.

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            4.3 O Poder Público como fornecedor

            O Código, em seu art. 3º, diz que o fornecedor pode ser ente público ou privado, i.e., inclui-se no conceito de fornecedor o próprio Poder Público, "por si ou então por suas empresas públicas que desenvolvam atividade de produção, ou ainda as concessionárias de serviços públicos" [75].

            Em face da redação explícita da lei, não há como negar a sua incidência em relação ao Poder Público, sempre que configurados os elementos acima expostos. Já quanto ao enquadramento ou não de todas as atividades exercidas pelo Poder Público veremos mais adiante quando for debatida delimitação legal do serviço.


5. PRODUTO

            Produto, na econômica definição do CDC, "é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial" (art. 3º, §1º). Bens, por sua vez, são coisas úteis aos homens, que provocam a sua cupidez, sendo objeto de apropriação privada; assim, bens econômicos são as coisas úteis e raras, suscetíveis de apropriação. [76]

            Filomeno resume, conceituando produto como "qualquer objeto de interesse em dada relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final". [77]

            É de relevância a classificação dos bens com base em sua taxa de consumo (CDC 26): bens duráveis (bens tangíveis que normalmente sobrevivem a muitos usos), bens não duráveis (bens tangíveis que normalmente são consumidos em um ou em alguns poucos usos). [78] O simples fato de o produto não se extinguir numa única utilização não lhe retira o status de não durável – "o que caracteriza essa qualificação é sua maneira de extinção ‘enquanto’ é utilizado" [79].

            Surge a dúvida de onde classificar os produtos descartáveis, que têm essência de duráveis, mas vida útil de não-duráveis. Rizzatto Nunes [80] defende que, não havendo tratamento legislativo específico, e como o produto não-durável tem características diversas, o descartável deve receber o tratamento dispensado ao durável.

            Uma outra classificação se mostra relevante para fins de se determinar a incidência ou não da legislação consumerista: bem de insumo, e bem de custeio.

            Bem de insumo, ou de produção, é aquele "utilizado para fins de transformação e posterior transmissão"; enquanto bem de custeio, ou de consumo, é "a coisa adquirida para desenvolvimento da própria atividade, como instrumento hábil para a consecução dos fins objetivados, sem qualquer transferência para a clientela". [81] Roberto Senise Lisboa [82] entende não ser razoável a exclusão pura e simples do bem de insumo da proteção do CDC, uma vez que a lei não faz qualquer ressalva; a limitação deve ser feita somente com base na finalidade (motivo) da aquisição do produto (consumo como destinatário final), de modo que "o bem transformado para uso posterior próprio não retira do adquirente ou utente a situação jurídica de consumidor". No mesmo sentido, Rizzatto Nunes [83] defende que o CDC é aplicado nos casos em que os produtos e serviços são oferecidos no mercado de consumo para a aquisição por qualquer pessoa como destinatária final, independente do uso que o adquirente faça, para a produção ou não de outros produtos ou serviços.

            Outra classificação extremamente útil nos é trazida por Roberto Senise Lisboa [84] quanto à substituição das peças: entre produto compósito e produto essencial (não compósito). Produto compósito "é aquele resultante do justaposicionamento de peças e componentes que podem ser substituídos sem que se proporcione a sua inadequação", enquanto produto essencial "é aquele que não pode ter qualquer de seus componentes retirados ou substituídos, sob pena de comprometer a sua substância.", de modo que seus elementos são insuscetíveis de dissociação. Este "não pode ser reparado no caso de existência de vício intrínseco, cabendo ao consumidor, neste caso, a adoção das outras soluções propugnadas pelo legislador (redibição, estimação ou troca)", enquanto o produto compósito, apresentando vício em alguma peça, ao fornecedor será aberto o prazo legal para realizar os reparos necessários.

            Por fim, é relevante ressaltar que o produto (assim como o serviço) gratuito, "amostra grátis", também está regulado pelo CDC (art. 39, parágrafo único), estando sujeito a todas as suas regras.

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Sobre o autor
Marcelo Azevedo Chamone

Advogado, Especialista e Mestre em Direito, professor em cursos de pós-graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. A relação jurídica de consumo:: conceito e interpretação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1456, 27 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10069. Acesso em: 18 abr. 2024.

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