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Direito e literatura: Montesquieu, Swift e Lima Barreto.

Misantropia jurídica nas Cartas Persas, nas Viagens de Gulliver e na República dos Bruzundangas

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Os três autores, tão distantes e diferentes, resmungavam em torno de instituições mal engendradas, corruptas, imprestáveis e enganadoras, que qualificam esta misantropia jurídica em face do nosso entorno normativo.

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Sumário: Introdução e Limites da Investigação. 1. Montesquieu e as Cartas Persas. 2. Jonathan Swift e as Viagens de Gullive. 3. Lima Barreto e a República dos Bruzundangas. Referências Bibliográficas

" No cabe duda que una das principales funciones del poder simbólico consiste básicamente en su capacidad para connotar y denotar, es decir, asociar o evocar e indicar y remitir, sistemas de signos que constelan en renovados universos de sentido, socializados a través de imágenes y gestos recognoscibles."

José Calvo, La Justicia como Relato, p. 40.


1.Introdução e Limites da Investigação

Obras de ficção abordam realidades e criticam instituições por meio da imaginação topográfica e da descrição de lugares, viajantes e costumes. Captura-se a realidade, satiriza-se a política, exprime-se o que realmente se pensa, sem muitos rodeios. Recusa-se a moral, a política e o direito vigentes, de modo sardônico. Propõe-se mundo novo a partir de escombros do mundo em que vivemos. Qualifica-se atrevimento inusitado, disfarçado sob prosa ficcional. Há tradição nesse sentido, e reporto-me às Cartas Persas de Montesquieu e às Viagens de Gulliver, de Swift. Esta última obra teria fortemente impressionado Lima Barreto, e há relações entre a República dos Bruzundangas e os mundos imaginários do criador de Gulliver. São estes os temas centrais do presente ensaio.

Parte-se de fragmentos literários; é que "enquanto a literatura libera os possíveis, o direito codifica a realidade, a institui por uma rede de qualificações convencionadas, a encerra num sistema de obrigações e interdições" (OST, 2004, p. 13). Resgatam-se contadores de estórias, donos de arte que marcharia para um fim, na impressão do filósofo da melancolia (cf. BENJAMIN, 1985, p. 83). Pode-se creditar a autores de ficção o papel de reformadores do direito (cf. WAGGONER, 1934, p. 107). Montesquieu motejou da França pré-revolucionária, na qual o rei contava com conselheiro quase adolescente e com amante octogenária. Swift demonstrou o ridículo das pendengas entre liberais e conservadores, imaginando conflito entre defensores de sapatos de saltos altos que enfrentavam os partidários do uso de sapatos de saltos baixos. Lima Barreto denunciou as políticas do Barão do Rio Branco, fazendo-o na figura do imaginário Visconde de Pancombe.

Faz-se sumária leitura das Cartas Persas, indicando modelo de crítica ao entorno pré-revolucionário francês. Em seguida, apresentam-se os lances principais das Viagens de Gulliver, evidenciando-se sátira que nos reporta ao memorável Juvenal, embora este último achasse perigoso meter-se com os vivos, e por isso satirizava mais aos mortos (cf. PARATORE, s.d., p. 761). Por fim, em ambiente nacional, colabora-se no resgate do pensamento de Lima Barreto, destemido escritor que denunciou injustiças sempre que as viu. E as via com muita freqüência. Dentro de jogo de signos e de renovados universos de sentido, tal como nos propõe José Calvo, o presente ensaio alavanca tentativa de captar nos textos aqui estudados manifestações muito nítidas de misantropia jurídica, em esforço de colaboração no sentido de se aproximar direito e literatura.


2) Montesquieu e as Cartas Persas

Começo com o Barão de Montesquieu, Charles Louis de Secondat, o famoso presidente do parlamento de Bordeaux, crítico do absolutismo, da religiosidade exacerbada e da Igreja Católica. Montesquieu nutria profundo respeito pelas instituições inglesas, especialmente pela liberdade civil que se gozava na Inglaterra. Montesquieu contribuiu para a fixação de Paris como centro da cultura européia, bem como colaborou para a garantia do papel exercido pela língua francesa na história da cultura, ajudando para que esta língua se tornasse o idioma franco da intelectualidade do século XVIII (cf. GAY, 1995, p. 11). As Cartas Persas foram publicadas em 1721 (cf. TARNAS, 1993, p. 457). Uso o texto de uma tradução, "isto é, um compromisso sempre possível mas sempre imperfeito entre dois idiomas" (DERRIDA, 2007, p. 7).

Nos últimos anos do reinado de Luís XIV, e nos primeiros anos da Regência, dois persas, Rica e Usbek, trocavam inúmeras cartas com correspondentes na Pérsia (hoje Irã), ao longo de animada viagem pela Europa pré-revolução francesa. . O conteúdo das epístolas revela crítica corrosiva à França dos Bourbon, numa época de literatos suscetíveis e pedantes, de damas libertinas e jogadoras (cf. MAURO BARRETO, Introdução, in MONTESQUIEU, 1960, p. 11). Cartas suscitam substrato importantíssimo para a tentativa de compreensão do momento em que foram escritas, e nessa qualidade substancializam documentos primários (cf. FERGUSSON, 1984). No caso das Cartas Persas tem-se elemento ficcional, porém indicativo seguro da época e lugar que o Barão de Montesquieu se propunha a criticar.

Traço irônico é explicitado logo na primeira carta: "Somos Rica e eu talvez os primeiros persas que, levados da sede de aprender, saímos do nosso país, abandonando as doçuras de uma vida sossegada para afadigar-nos em busca a sabedoria" (MONTESQUIEU, cit., p. 31). Enquanto Rica viaja, um eunuco guarda as mulheres de Usbek; este último refere-se àquele primeiro como "o guarda fiel das mais formosas mulheres da Pérsia" (MONTESQUIEU, cit., p. 32). É impressionante o relato do eunuco, que do serralho (harém) insiste que ainda detém certo poder; a ambição é relegada à condição de paixão (MONTESQUIEU, cit., p. 41). Paris foi descrita pelos persas, isto é, bem entendido, o próprio Montesquieu dava conta da capital dos franceses:

"Estamos em Paris há um mês, e sempre em contínuo movimento. (...) Tão grande é Paris (...) e tão altas são altas são as casas, que se dissera serem astrólogos todos os moradores. Bem avalias que uma cidade edificada nos ares, com seis ou sete casas umas em cima das outras, está sobremaneira povoada, e qual seja a confusão quando todos saem à rua. Talvez não acredites: há um mês que aqui estou e inda não vi ninguém andar. Ninguém se aproveita mais da máquina do corpo que os franceses, que correm e voam: fa-los-iam cair em delírio as lentas carruagens da Ásia e o passo mesurado dos nossos camelos (...) não posso tolerar são as cotoveladas que me dão regular e periodicamente (...)" (MONTESQUIEU, cit., p. 64).

O rei foi apresentado de modo zombeteiro, desafiando-se imagem que soberanos franceses insistiam em difundir, especialmente, no caso de Luís XIV. Consta que houve intenso trabalho para a construção da imagem pública de Luís XIV, especialmente mediante ampla produção iconográfica, a exemplo do mármore trabalhado por Gilles Guérin, que talha um Luís XIV todo poderoso derrotando a fronda (cf. BURKE, 1994, p. 50). O Luís XIV das Cartas Persas é uma outra figura, despida de todo aquele construído que o elevou à categoria de rei-sol:

" O mais poderoso príncipe da Europa é o rei da França. Não possui minas de ouro como o seu vizinho o rei da Espanha; é, porém, mais rico do que ele, porque tira sua riqueza da vaidade da riqueza de seus súditos, mais inesgotável do que as minas. Viram-no empreender ou sustentar grandes guerras sem outros fundos que a venda de títulos honoríficos, e por um prodígio do orgulho humano, eram pagos os seus exércitos, fortificadas as suas praças e equipadas as suas esquadras. Além disso, este rei é um grande mágico, que manda até na inteligência dos seus vassalos, fazendo-os pensar como ele quer. Se há um milhão de escudos no seu tesouro, e tem necessidade de dois, persuade-os de que um vale tanto quanto dois, e acreditando-lhe. Se tem que sustentar uma guerra difícil, e está sem dinheiro,mete-lhes em cabeça que um pedaço de papel é dinheiro, e imediatamente se convencem disso. Chega a tal ponto, que lhes faz crer que os cura de toda casta de males com tocá-los, tanto é a força e o poderio que tem nos ânimos". (MONTESQUIEU, cit., p. 65).

O motejo ganhava modo superlativo quando Montesquieu fazia Usbek observar que o rei possuía caráter prenhe de contradições. Entre outras, e como já observado, os viajantes imaginários riram do fato de que o rei contava com"(...) um ministro de dezoito anos e uma amante de oitenta" (MONTESQUIEU, cit., p. 85). Os jardins do palácio real eram magníficos, havia mais estátuas na área do jardim do que habitantes em cidade populosa... (cf. MONTESQUIEU, cit., loc.cit.). Autoridades eclesiásticas não foram poupadas. Montesquieu referiu-se ao papa de modo também sarcástico:

"Não te espantes com o que digo deste príncipe, que outro mágico há maior do que ele, o qual manda tanto no seu espírito quanto ele nos demais. Chama-se este mágico o papa: ora faz-lhe crer que três são um; ora, que o pão que comemos não é pão, nem é vinho o vinho que bebemos, e outras mil coisas deste jaez". (MONTESQUIEU, cit., loc.cit.).

A crítica à Igreja é encontrada em várias outras seções do livro. O anticlericalismo é traço característico no pensamento iluminista. Dito de autoria incerta fazia que se pensasse que a felicidade reinaria na face da Terra quando se enforcasse o último rei nas tripas do último padre. E exemplifico com mais uma estocada de Montesquieu, que também atacava diretamente o dirigente maior da Igreja Católica:

"O chefe dos cristãos é o papa, velho ídolo a quem, meramente por costume, queimam incensos. Fazia-se temer outrora até dos príncipes, pois os depunha com tanta facilidade, como os nossos magníficos sultões depõem os reis de Irimeta e Geórgia. Mas agora ninguém o teme. Diz-se se sucessor de um dos primeiros cristãos, que há nome S. Pedro, é certo que a herança é pingue; pois possui imensos tesouros e é senhor de um dilatado país". (MONTESQUIEU, cit., pp. 73-74).

Montesquieu alcançou vários pontos da estrutura eclesiástica, e a crítica aos bispos também era contundente. O conjunto deve ser compreendido, do ponto de vista de uma historiografia pretensamente marxista, em estruturação ideológica que se prestava a papel importante na luta de classes, não obstante a figura circunstancial de estamento, e a oposição da burguesia à nobreza e ao clero:

"Os bispos são uns príncipes da lei que lhe estão subordinados, e sob sua autoridade desempenham dois cargos muito diferentes. Quando estão congelados, fazem, como ele, artigos de fé; mas, quando estão separados, quase não têm outra função que dispensar do cumprimento da lei. Porque hás de saber que está a religião cristã cheia de preceitos mui dificultosos de praticar; e tendo visto que era mais fácil ter bispos que dispensem de suas obrigações do que cumpri-las em benefício da pública utilidade, tomaram o primeiro alvitre (...) Os bispos não fazem artigos de fé, por moto próprio, e há uma infinidade de doutores, os mais deles jesuítas, que levantam mil novas questões acerca da religião; deixam-nos discutir muito tempo e dura a guerra até que uma decisão venha pôr-lhe termo. Por isso posso assegurar-te que nunca houve reino em que tenha havido tantas guerras civis como o de Cristo". (MONTESQUIEU, cit., p. 74).

Mencionou-se a Inquisição e o costume de se presumir a culpa de todos os acusados. Na Europa se acreditava que os homens seríamos maus por natureza... (cf. MONTESQUIEU, cit., p. 75). A crítica contra o modelo tributário fora também muito sutil. Observou o suposto autor da carta que "tão caro está o vinho em Paris com os impostos com que o gravam, que parece têm intuito de obrigar a que executem os preceitos do divino Alcorão, que veda este licor". (MONTESQUIEU, cit., p. 79). Em linhas gerais, Montesquieu insistia que necessidades reais de contribuintes não poderiam ser exploradas em nome de necessidades imaginárias de governantes (cf. ADAMS, 2001, p. 283). Montesquieu mostra-nos que os viajantes zombavam dos costumes europeus, do modo de vida e, em especial, há excerto referente às mulheres, de autoria atribuía a Usbek, e endereçado a Roxana, que ficara na Pérsia:

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"Se te houvesses criado neste país, não terias ficado tão perturbada. Aqui as mulheres perderam todo recato; apresentam-se aos homens com a cara descoberta, como se quisessem solicitar a sua própria derrota; seguem-nos com os olhos; vêem-nos nas mesquitas, nos passeios e nas próprias casas, e não conhecem o uso de se servirem de eunucos. Em vez da nobre candura e do pudor amável que reina entre vós, vê-se nelas um brutal despejo, a que não é possível a gente acostumar-se". (MONTESQUIEU, cit., p. 69).

Os viajantes persas perceberam a luta de classes, anunciando-se agudo conflito que conduziria à Revolução Francesa. Nesse sentido, os persas de Montesquieu captavam o que de mais grave se vivia na França, então um vulcão quase pronto para entrar em erupção. Para os viajantes imaginários:

"Em França há três espécies de estados: a Igreja, a espada e a toga. Cada um deles dedica um soberano desprezo aos outros dois; e assim, tal que devera ser desprezado por ser um parvo, muitas vezes só o é por ser togado. Até os mais ínfimos artífices contendem acerca da excelência da arte que escolheram; cada um se sobrepõe ao que abraçou outra profissão, segundo a idéia que para si formou da superioridade da sua". (MONTESQUIEU, cit., p. 92).

Montesquieu criticou sociedade francesa de seu tempo, especialmente alguns grupos da nobreza, que se fechavam nos salões, que abrigavam discussões intermináveis, onde desfilavam figuras extremamente vaidosas:

"Por toda a parte vejo homens que sem cessar falam de si mesmos; as conversações deles são um espelho que sempre retrata a sua impertinente cara. Falam das mais pequenas coisas que lhe sucederam, e querem que a eficácia com que as pintam, as engrandeça aos olhos alheios; tudo fizeram eles, tudo viram, tudo disseram e tudo pensaram; são modelo universal, matéria inesgotável de comparações, inextinguível fonte de exemplos. Oh, que desenxabida coisa é o louvor que recai no lugar donde parte!". (MONTESQUIEU, cit., p. 104).

O papel satírico que as Cartas Persas desempenharam indicam a misantropia de seu autor para com o modelo normativo que então se vivia, e que era centrado no Estado, deixando-se de lado qualquer outra tentativa de cogitar de entorno jurídico que possibilitasse avanço efetivo para quem eventualmente precisasse da atuação estatal, em favor dos mais humildes.


3) Jonathan Swift e as Viagens de Gulliver

Prossigo com Swift. Jonathan Swift publicou Viagens de Gulliver em 1726. Swift nasceu na Irlanda. Exerceu o ministério religioso como pastor protestante. Ao fim da vida, teria sofrido de mal de Alzheimer. Viagens de Gulliver protagoniza paródia aos livros de viagem, tão em voga no início do século XVIII. Lemuel Gulliver era médico inglês, cirurgião em navios comerciais, que após naufrágios e demais peripécias aportou em lugares estranhos. A imaginação topográfica de Swift não tinha limites. São quatro grandes viagens que compõem o livro. Na primeira delas Gulliver contava com 39 anos. Os nomes dos lugares por onde passou indicam mistérios insuspeitos: Lilliput, Brobdingnag, Laputa, Balnivarbi, Glubbdubdrid, Luggnagg, Houyhnmland, bem como paragens mais reais, a exemplo do Japão, da Holanda e de Portugal.

A primeira aventura tem início quando Gulliver acorda após um naufrágio. Ele se vê enlaçado por pequeníssimas cordas. Está em Lilliput. Os habitantes da região são minúsculos; o cirurgião inglês vê-se como um gigante. Tenta a primeira fuga, porém incomoda-se com imensidão de pequenas flechas. Os lilliputianos, homens em miniatura, atacam o herói misantropo de Swift. Na medida em que ganhava a confiança daquelas estranhíssimas e pequenas figuras, Gulliver percebeu costumes estranhos. Políticos buscavam apoio popular e para tal pulavam cordas (cf. SWIFT, s.d., p. 50). A imagem é expressiva, a movimentação de cordas confirma mudanças recorrentes de opinião. Gulliver mostrou-se fiel ao imperador, a quem jurou fidelidade. Crescia seu bom relacionamento com os lilliputianos.

Ao longo da narrativa Gulliver observava o modo de vida de Lilliput. Percebia que temas constitucionais eram discutidos com virulência. Havia dois grupos hermenêuticos em disputa: os tramecksan odiavam os slamescksan. Aqueles primeiros defendiam o uso de sapatos com saltos altos, estes últimos sustentavam que a constituição determinava que se usassem saltos baixos (cf. SWIFT, cit., p. 36). A antinomia evidencia paródia aos whigs e tories ingleses, isto é, liberais e conservadores. Os ministros do imperador usavam saltos baixos. A população em geral preferia os saltos altos. Discutia-se muito também a propósito de como deveriam ser quebrados os ovos. Costumes ancestrais exigiam que se quebrassem os ovos por baixo, pela parte mais larga. Imperadores mais recentes desafiavam as tradições e insistiam que os ovos deveriam ser quebrados pela parte menor, isto é, por cima. Ao que consta, havia gente que preferia morrer a quebrar os ovos por cima...

O modelo jurídico chamou a atenção de Gulliver. Se acusados conseguissem provar inocência, acusadores seriam condenados à morte. Crimes contra o Estado eram punidos de modo extremamente severo. Fraudes eram punidas mais draconianamente do que roubos. A ingratidão era um dos mais sérios crimes. Empregos eram obtidos menos em função das habilidades do candidato do que em decorrência das qualidades morais que apresentasse (cf. SWIFT, cit., p. 48). A percepção de justiça, tal como reproduzida nos tribunais de Lilliput, era representada por seis olhos, uma bolsa de ouro (aberta) em uma imaginária mão direita, e uma espada na mão esquerda; mostrava-se maior disposição em se recompensar do que em punir (cf. SWIFT, cit., p. 47).

Gulliver descobriu um inimigo Bolgolam, almirante que fazia intrigas e que prejudicou o médico inglês ao vinculá-lo ao imperador de Blefuscu, ilha vizinha, rival de Lilliput. O imperador de Blefescu apoiava o grupo que defendia a quebra dos ovos pela parte de baixo. Os habitantes de Blefescu eram ameaça recorrente; acreditava-se que invadiriam Lilliput a qualquer momento. E porque Gulliver tentou apagar um incêndio, urinando na pequena fogueira, foi acusado de altíssima traição, de modo que precisou fugir para Blefescu. Um navio mercante inglês o salvou. Gulliver retornou para a Inglaterra. Encerrou-se a primeira etapa da inusitada viagem.

De volta ao mar, Gulliver foi deixado numa praia deserta por alguns marinheiros que saíram na busca de água fresca. Descobriu que estava numa terra de gigantes, Brobdingnag. Reduzido a boneco de brinquedo pela filha de um fazendeiro arrogante, Gulliver viu-se atacado por ratos gigantes; defendeu-se com a própria espada. O fazendeiro exibiu Gulliver por todo o país, que se impressionou com o pequeno tamanho do médico inglês. A rainha comprou Gulliver e fez dele brinquedinho particular. Não obstante bem cuidado, Gulliver sentia-se humilhado com o tratamento que lhe era dispensado. Gulliver narrou orgulhosamente o modo de vida europeu, com especial deferência às ilhas inglesas e à colônia na América (cf. SWIFT, cit., p. 130). O soberano da terra dos gigantes assustava-se com a descrição das armas usadas na Europa, bem como se assustou com a crueldade com que europeus usavam destas armas. Em Brobdingnag a razão era o motivo da obediência das leis, e não a força. As leis eram sumárias, nenhum texto normativo poderia ultrapassar o número de 22 palavras, isto é, o equivalente o número de letras do alfabeto (cf. SWIFT, cit., p. 140). Textos normativos não usavam palavras desnecessárias ou de interpretação muito ampla, cada expressão deveria possuir significado unívoco (cf. SWIFT, cit., p. 140).

Na terceira das viagens, após fugir de piratas, Gulliver foi salvo pelos habitantes de Laputa. Tratava-se de ilha imensa que parecia flutuar no céu. Os habitantes da ilha cultivavam a música e a matemática. Especulavam e filosofavam o tempo todo. Somente a abstração os cativava. Levado por outros piratas para outra ilha desconhecida, Gulliver protagonizou as aventuras da quarta e última viagem. Foi levado para Houyhnhumland , onde conheceu incríveis figuras hirsutas, os yahoos. Pelo menos era esta a palavra que aquelas criaturas repetiam inúmeras vezes (cf. SWIFT, cit., p. 243). Os yahoos pareciam-se muito com seres humanos. Quando descobriram que as roupas de Gulliver poderiam ser tiradas, e quando o viram totalmente nu, concluíram que o médico inglês só poderia ser um deles...

Gulliver começou a aprender a língua de Houyhnhumland. Descobriu problemas de comunicação, na medida em que os yahoos não tinham palavras para designar conceitos como crime, poder e governo. Razão e natureza guiavam aquelas figuras. Não havia advogados, médicos ou políticos. Aceitava-se a morte, não se faziam velórios; o fim da vida era decorrência intrínseca ao viver - - nada mais natural. Ambigüidades e discussões sutis eram inexistentes. A noção de verdade e de falsidade transcendia a qualquer conceito europeu. Gulliver encontrava-se em perfeita harmonia (cf. CAMPBELL, 1997, pp. 319 e ss.). Embora decidido a nunca mais voltar para a Europa, Gulliver foi descoberto por alguns navegadores portugueses que o conduziram à Península Ibérica. Desgostoso com os homens, saudoso dos yahoos, Gulliver preferia a sociedade dos cavalos. Embora se reconciliando com a esposa, Gulliver abandonou para sempre qualquer ligação com a espécie humana (cf. CAMPBELL, cit.); era um misantropo.

Irritado com a civilização, cheio de benevolência para com o outro, defensor da educação feminina, crítico de doutores e de charlatães, da guerra e dos intelectuais (cf. CAMPBELL, cit.), Gulliver buscava utopia que se revelou nos yahoos e numa nova forma de apreender a civilização e suas leis.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito e literatura: Montesquieu, Swift e Lima Barreto.: Misantropia jurídica nas Cartas Persas, nas Viagens de Gulliver e na República dos Bruzundangas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1466, 7 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10100. Acesso em: 5 mai. 2024.

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