Compete ao Poder Judiciário — visto que abolida já a arbitrária lei de talião [1] — ordenar que repare o prejuízo aquele que lhe deu causa. Trata-se de forçosa aplicação da velha máxima do Direito Romano: “Suum cuique tribuere” (em linguagem: A cada um o seu).
I. Princípio consagrado em todas as Legislações, o dano obriga à indenização, já que somente a justa reparação pode pôr cobro à violação do direito.
Entre nós, tem o Código Civil, a esse respeito, disposição expressa: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a reparar” (art. 927).
De tanta urgência é essa obrigação, que, muita vez, até “independentemente de culpa” ela se aperfeiçoa e legitima (cf. art. 927, parág. único, do Cód. Civil).
No entanto, o dever de indenizar pressupõe, de regra, a culpa do agente. Isto mesmo entende, em termos hábeis, a jurisprudência dominante em nossos Tribunais: “Perante nosso Direito codificado não há dano sem culpa” (Rev. Tribs., vol. 48, p. 165).
Na Doutrina passa o mesmo[2].
Assim, incorre em caso da lei não só aquele que comete crime contra a honra, como quem destrói coisa alheia: estão ambos obrigados a satisfazer o dano.
Naquelas hipóteses, porém, em que o ressarcimento pende da culpa do agente, ao autor da ação cabe comprová-la. Em verdade, culpa não se presume (“Culpa non praesumitur”).
Mais que muitas são as hipóteses em que, à luz do Direito Civil, é obrigatória a repetição do dano, “verbi gratia”: ato ilícito e abuso de direito (arts. 186 e 187 do Cód. Civil), litigância de má-fé (art. 79 do Cód. Proc. Civil), etc.
II. Àquele que, nas esferas da Justiça, pleiteia a restauração do direito que afirma ter sido violado, cabe o ônus de instruir seu pedido com prova cabal e concludente, sob pena de indeferimento[3]. Este, o objeto do acórdão abaixo reproduzido, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
PODER JUDICIÁRIO
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Quarta Câmara – Seção de Direito Privado. Apelação Cível nº 293.288-4/1-00. Comarca: Diadema
Apelante: C. – Administradora de Cartões de Crédito, Comércio e Participações Ltda. Apelada: IAA
Voto nº 5656
Relator
– Causa – Réu confesso – Antecipação de julgamento – Possibilidade.
– Não incorre em censura a sentença que, em face da confissão do réu — que, na frase de célebre jurista, “faz vezes de cousa julgada” — denega dilação probatória e conhece diretamente do pedido (arts. 330, nº I, e 334, nº II, do Cód. Proc. Civil).
– Indenização – Danos morais – Inclusão do nome no cadastro de inadimplentes do SCPC e Serasa – Alegação de falha no sistema de informatização da empresa administradora de cartões de crédito – Circunstância que não exime do dever de indenizar.
– É jurisprudência consagrada nos Tribunais que a inscrição indevida no rol onomástico de inadimplentes do SCPC ou Serasa, por alegada falha no sistema de informatização da empresa administradora de cartões de crédito, implica prejuízo moral relevante ao indivíduo e, por isso, impõe o dever de indenizar.
– Indenização – Valor – Critério – Razoabilidade.
– O valor da indenização não pode ser aferido por craveira mesquinha; cumpre atender às circunstâncias da espécie sujeita, pois aqueles que fazem caso e cabedal dos preceitos da honra e do bom nome não hesitam, muita vez, em antepô-los à própria vida.
1. Da r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 2a. Vara Cível do Foro da Comarca de Diadema, julgando procedente em parte o pedido deduzido na Ação de Indenização que lhe intentara IAA, interpôs recurso de Apelação para este Egrégio Tribunal, com o escopo de reformá-la, C. – Administradora de Cartões de Crédito, Comércio e Participações Ltda.
Nas razões de apelação, elaboradas por esforçado e culto patrono, arguiu preliminar de nulidade da sentença, por infração dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia.
Pelo que respeita ao mérito, afirma devia ser julgado improcedente o pleito, por haver a apelada concorrido com culpa, na modalidade de negligência, para o evento danoso.
Acrescenta, à derradeira, que se devia deduzir o valor da indenização, em ordem a que se não convertesse em fator de enriquecimento ilícito (fls. 92/107).
A apelada apresentou contrarrazões de recurso, nas quais repeliu a pretensão da apelante e propugnou a manutenção da r. sentença de Primeiro Grau (fls. 112/114).
É o relatório.
2. A autora demandou a empresa-ré por dano moral e material, visto que lhe ofendera a boa reputação, com restringir seu crédito perante terceiros, injustificadamente.
Foi o caso que, mediante contrato celebrado com a ré, a autora recebera-lhe cartão de crédito. Além de seu cartão principal, solicitara outro (cartão adicional) para AMND, que o utilizara na compra de um fogão.
Mas –– e aqui bate o ponto ––, suposto houvesse a compradora pago pontualmente as parcelas relativas à aquisição do bem ––, a autora passou a receber cobrança da ré.
Acudindo por seu bom nome, a autora dirigiu-se à ré, que lhe desse as razões dos avisos de cobrança. Esta lhe explicou ter havido “erro no sistema”, o que seria prontamente regularizado. Afiançou-lhe nenhum abalo sofreria o seu crédito.
No entanto, quando tentava efetuar compras em outro estabelecimento comercial, a pretensão da autora foi rejeitada, sob a alegação de falta de crédito, pois seu nome estava, em 6.11.2001, apontado entre os mausclientes, no rol do Serasa e nos arquivos do SCPC – Serviço Central de Proteção ao Crédito.
Indignada quanto surpresa, a autora foi ter de novo com a ré, em busca de explicações. E aí ouvira a cantilena do costume: “ocorreu um erro de sistema”, e que outra coisa não podia fazer, senão regularizar-lhe a situação perante aquele órgão de proteção ao crédito.
Ainda aqui, porém, a ré não se houvera com diligência, pois somente após largo trato de tempo –– “janeiro de 2002” ––, foi solucionado o problema, que causou tanto desgosto e transtorno à autora.
Estes foram os fatos expostos pela autora no libelo; esta, a “causa petendi” (fls. 2/8).
A ré contestou o pedido, em alentada peça forense, na qual, ao mesmo tempo que reconhecia ter havido “falha no sistema” de informatização, imputava culpa à autora, que lhe não apresentara o “comprovante de pagamento da parcela do seu cartão” (fls. 59/74).
A r. sentença, julgando segundo o estado do processo, houve por procedente em parte o pedido de indenização por dano moral, excluído o dano material (fls. 84/86).
Irresignada com o desate do litígio, a ré manifestou recurso para esta Corte de Justiça, no aguardo de modificá-lo.
3. As questões preliminares que a apelante suscitou não são para acolher, “data venia”, ainda que revelem primores de forma e substância.
Com efeito, a arguição de nulidade da sentença –– porque proferida em processo que averbou de nulo –– não assenta em bom fundamento.
Mais que arrojada, passa por injusta a alegação da apelante de que o Magistrado violara as regras do contraditório, coartara a ampla defesa e conculcara o princípio de isonomia ou igualdade das partes.
Ao conhecer diretamente do pedido, exerceu Sua Excelência o poder que lhe conferia a lei expressa (art. 330, nº I, do Cód. Proc. Civil), uma vez que não havia necessidade de produzir prova em Juízo. Deveras, não depende de prova o fato que uma parte afirma e a outra confessa (art. 334, nº II).
Ora, tendo a ré confessado explicitamente o fato (fl. 61), e sendo um dos efeitos da confissão, na frase de clássico processualista, “fazer vezes de cousa julgada” (Joaquim José Caetano Pereira e Souza, Primeiras Linhas sobre o Processo Civil, 1907, p. 167), quem, em seu acordo e razão, houvera de fulminar censuras ao MM. Juiz que, desde logo, rendeu sua jurisdição?!
No caso, era-lhe dever (não só faculdade) proceder segundo esse estalão, como tem proclamado o Colendo Superior Tribunal de Justiça:
“Presentes as condições que ensejam o julgamento antecipado da causa, é dever do juiz, e não mera faculdade, assim proceder” (REsp. nº 2.832-RJ; 4a. T.; rel. Min. Sálvio de Figueiredo; DJU 17.9.90, p. 9.513; v.u.; apud Theotonio Negrão, Código de Processo Civil, 26a. ed., p. 295).
Assim, ao revés do que inculca a apelante, a r. sentença recorrida não vulnerou nem afrontou os princípios do contraditório, da isonomia e da defesa.
Cai a lanço o ven. acórdão, de que foi relator o Min. Sálvio de Figueiredo:
“Constantes dos autos elementos de prova documental suficientes para formar o convencimento do julgador, inocorre cerceamento de defesa se julgada antecipadamente a controvérsia” (STJ; Ag. nº 14.952-DF; 4a. T., DJU 3.2.92, p. 472; v.u.; apud Theotonio Negrão, op. cit., p. 296).
Rejeito, por isso, a matéria prejudicial.
4. No que pertence ao mérito, é força manter, por seus fundamentos, a r. sentença de Primeiro Grau.
Em verdade, está comprovado nos autos, além de toda a dúvida sensata, que, a despeito de haver a apelada pago regularmente a parcela vencida em 6.11.2001 (fl. 6/7), a apelante apontou-lhe o nome assim ao SCPC – Serviço Central de Proteção ao Crédito como ao Serasa.
Fê-lo por “falha no sistema”, segundo o admitiu em seu arrazoado (fl. 61). Foi, destarte, por incúria e negligência –– visto como não lhe proveu acerca da segurança dos direitos e interesses ––, que a apelante deu causa à inscrição da apelada na relação onomástica de inadimplentes do Serasa.
Que a apelada tenha sofrido insigne “abalo psicológico” é coisa que se não pode negar sem imprudência, máxime porque a usuária do cartão punha timbre em pagar “antecipadamente” as parcelas de seus débitos (fl. 85).
Ora, é doutrina corrente que a divulgação indevida de restrições de crédito, por implicar dano moral relevante para o indivíduo, impõe a obrigação de indenizar.
Por dano entende-se a “lesão ou redução patrimonial, sofrida pelo ofendido, em seu conjunto de valores protegidos no Direito, seja quanto à sua própria pessoa –– moral ou fisicamente –– seja quanto a seus bens ou a seus direitos. É a perda, ou a diminuição, total ou parcial, de elemento, ou de expressão, componente de sua estrutura de bens psíquicos, físicos, morais ou materiais” (Carlos Alberto Bittar, Responsabilidade Civil, 2a. ed., p. 8).
Passa o mesmo no âmbito dos Tribunais:
“Não cabe a alegação de falha no preenchimento do CPF no contrato com o banco, para se eximir da responsabilidade por danos morais causados a cliente que tem seu nome incluído nos cadastros de negatividade de crédito, visto que, a inexatidão da inclusão, por ter sido realizada sem motivo, gera direito à indenização” (Rev. Tribs., vol. 805, p. 246; rel. Frank Hungria).
Embora “cumuláveis as indenizações por dano material e por dano moral no mesmo fato”, nos termos da Súmula nº 37 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, não se desempenhou a autora mais que da produção de prova do dano moral, o qual, portanto, unicamente, se deverá ressarcir.
O montante da indenização, que pareceu exagerado à apelante — 40 salários mínimos —, tenho-o por mui compatível com as circunstâncias da espécie sujeita. Ao demais, aqueles que fazem caso e cabedal dos preceitos da honra e do bom nome, esses não hesitam, muita vez, em antepô-los à própria vida. Não é muito, pois, que a r. sentença tivesse determinado o pagamento da indenização à apelada no valor de 40 salários mínimos, por dano moral que lhe causara a apelante.
Merece confirmada, em suma, por seus jurídicos fundamentos, a r. decisão que proferiu o distinto e culto Magistrado Dr. Antonio Luiz Tavares de Almeida.
5. Pelo exposto, rejeitada a preliminar de nulidade da sentença, nego provimento à apelação.
São Paulo, 3 de outubro de 2004
Des. Carlos Biasotti
Relator
Notas:
[1] Lei ou pena de talião – “Pena antiga pela qual se vingava a injúria ou delito fazendo sofrer ao criminoso o mesmo dano ou mal que ele praticara” (Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo, 2a. ed.; v. talião).
[2] Discorreu por este feitio Rui Barbosa, cuja autoridade é de todo o ponto incontestável: “(…) o dano obriga à responsabilidade, seja qual for o grau da culpa, e sujeita o responsável a compor não só o damnum emergens, mas também o lucrum cessans” (Obras Completas, vol. XXXIII, t. II, p. 52).
Carlos Alberto Bittar, pelo mesmo teor: “Na concepção moderna da teoria de danos morais prevalece, de início, a orientação de que a responsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação. Com isso, verificado o evento danoso, surge ipso facto, a necessidade de reparação, uma vez presentes os pressupostos de direito” (Reparação Civil por Danos Morais, 1a. ed., p. 202; Editora Revista dos Tribunais).
[3] Reza, em verdade, o art. 333, nº I, do Código de Processo Civil: “O ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito”. O que seja prova no-lo dizem as letras jurídicas em elegantes metáforas: voz dos autos; alma do processo; luz que deve guiar o juiz na decisão da causa, etc.