3. Visão crítico-metodológica.
Relembro as principais divergências, que até hoje persistem, em pleno século 21: sujeito ativo (pai e mãe; ou somente a mãe); conceito legal de recém-nascido; exigência ou não do dolo direto; atipicidade da exposição ou abandono praticado sob influência do estado puerperal, logo após o parto; formas qualificadas do delito.
Como resolver o enigma, haja vista o princípio constitucional do nullum crimen, nulla poena sine lege?
Tarefa impossível e, não raro, desnecessária. As conquistas ou novidades da dogmática jurídico-penal ainda se mostram incapazes de solucionar a contento as mais diversas e comezinhas questões suscitadas pela legislação. Títulos acadêmicos, experiência profissional, vasta cultura, que se sabe existirem no foro, nos tribunais, nas academias, não bastaram e não bastam para o discutível mister de apaziguamento dos espíritos, em termos de homogênea indicação do direito aplicável.
Com efeito, dentre outros fatores, a vagueza e ambigüidade das palavras da lei; a imprecisão conceitual das teorias hermenêuticas; as divisões ideológicas do grupo social; as inevitáveis subjetividades no processo de apreensão dos fatos; a lógica jurídica de busca das premissas e o relativo grau de vontade e liberdade opinativa ou decisória continuam conspirando contra qualquer expectativa de padronização dogmática.
Sendo assim, o importante, numa posição crítico-metodológica, não é apontar a saída, a resposta correta, adequada. O importante é simplesmente observar e analisar a realidade, procurar compreendê-la e, de alguma forma, sem fugir do debate, sublinhar a figura do intérprete no processo histórico de construção artesanal do direito.
O direito se define como fato normativo essencialmente contraditório, de caráter histórico-sociológico, identificado através da interação de várias fontes – lei, ideologia e intérprete, por exemplo – com raízes ou pressupostos no efetivo exercício da força, poder, vontade e liberdade.
A exigência de um intérprete acaba acarretando, na prática, a intromissão de valores ou concepções subjetivas aportadas ao próprio objeto: a lei. O direito passa a existir no contexto dessa fusão de vontades e conceitos aparentemente eqüidistantes e, todavia, interdependentes. A forma e o conteúdo das leis se alteram em função da estrutura social, liberdade de ação e sensibilidade do operador jurídico.
É o que se percebe através do estudo do crime de exposição ou abandono de recém-nascido. Mas as divergências, como é óbvio, não se reduzem a essa figura delituosa. Elas se repetem indefinidamente, qualquer que seja o crime, sempre submetido ao crivo e interferência do intérprete, com suas manias, gostos e preferências; com suas intuições; com sua personalidade; com sua consciência crítica.
Não há, portanto, solução para o impasse. Só os que têm obsessão dogmática é que acreditam ou parecem acreditar na mudança para melhor de um direito penal assentado nas contínuas "descobertas" de teorias e segredos a caminho, quem sabe, do ostracismo, tal como já ocorreu e vem ocorrendo com teorias e segredos ainda ontem apontados como perenes, irrepreensíveis, irrefutáveis.
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