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Poluição visual é crime

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5. Prova da materialidade do crime de poluição visual

Questão a merecer atenção é a relativa à prova desses resultados da ação visualmente poluidora. Dos resultados, não da conduta poluente, já que esta pode e deve ser constatada visualmente, caso em que o corpo de delito – conjunto de elementos físicos capazes de ser percebidos pelos sentidos - consiste no próprio material visual inadequado. Mas o dano à saúde, ou a possibilidade de sua ocorrência, reclamam perícia para sua efetiva demonstração? O texto do artigo 158 do Código de Processo Penal dá a medida da solução, ao pontificar que "quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito [...]".

Então o dano reclama, sim, exame pericial, já que esse resultado, que é elementar do crime, contém, na realidade, uma ofensa à integridade bio-psíquica de alguém especialmente determinado. Assim, a exemplo do que sucede no caso de crime de lesões corporais, é pericial a prova do resultado que configura elementar do delito.

Diversa é a situação se houver mera possibilidade de dano. Nessa hipótese, como já se viu, o sujeito passivo é uma coletividade e o crime se aproxima daquelas infrações capituladas na legislação penal como delitos de perigo comum.

A exemplo do que se passa com essa modalidade de infrações, o perigo aqui exigido é o concreto, o que quer dizer que não é presumido. [22] Essa parece ser mais adequada distinção entre tais formas de perigo do que a que postula a dicotomia entre perigo concreto e abstrato. "Um perigo meramente abstrato não existe, porque o perigo é sempre probabilidade de um evento temido"; "o distinguir, portanto, entre perigo concreto e abstrato, é impróprio porque o perigo é sempre uma abstração". É a lição de Bettiol e Manzini, citados por NORONHA, para quem o que há é presunção de perigo nas hipóteses costumeiramente elencadas como de perigo abstrato – este aferido com base "em regras ditadas pela experiência ou pela lição dos fatos." [23] O que existe nesses casos, para Grispigni, é um crime de mera conduta. [24]

Cuida-se a poluição, além do mais, de delito de perigo comum, cujo sujeito passivo é um número indeterminado de pessoas, valendo dizer que não é de perigo individual, como seria na hipótese de atingir pessoa, ou pessoas, determinadas. Claro que a determinação de alguma vítima não descaracterizaria o crime, dada a elementar "possam resultar em danos à saúde humana". O que importa frisar é que essa determinação é desnecessária.

Nessas condições, não é exigível exame pericial para constatar o resultado imaterial – a saber, a possibilidade de dano à saúde humana - da conduta do poluidor, simplesmente porque não há, ou pode muito bem não haver, uma vítima determinada que deva ser submetida a perícia. O motivo evidente é que a simples situação de perigo não deixa, por si só, qualquer vestígio pericialmente verificável. Pode haver vestígio de algo que faça concluir que houve perigo, mas assim a idéia de perigo resultará do raciocínio de alguém – que não é uma coisa periciável – e não do suposto vestígio. Ora, se não há, nem houve, vestígio, [25] não há necessidade, nem possibilidade, de realização de perícia.. Este exame pericial é o que se faz sobre o corpo de delito, cujo nome técnico, como lembra ESPÍNOLA FILHO, "é exame de corpo de delito", enquanto "corpo de delito", na definição de JOÃO MENDES, citada pelo mesmo autor, "é o conjunto dos elementos sensíveis do fato criminoso." [...] "Elementos sensíveis, explica o autor, "são aqueles princípios produtores que podem ser percebidos ou pela vista ou pelo ouvido, ou pelo tato, ou pelo gosto, ou pelo olfato. São chamados também elementos materiais ou físicos...". [26]

Trata-se, aliás, da lógica própria dos delitos de perigo. Citando Mantovani, Alessandra R. M. Prado [27], anota que "há predominância da moderna concepção do pericolo-giudizio, de relações prováveis entre um fato e um evento danoso, segundo a qual pode-se (sic) falar de perigo quando o evento lesivo, conforme um juízo ex ante sobre a base das circunstâncias ao momento existente (sic), era previsível como verossímil, segundo a melhor ciência e experiência. O perigo é, portanto, a probabilidade de verificação do evento de dano."

Ora, como esperar uma verificação do corpo de delito se o corpo de delito é uma simples probabilidade: não pertence, pois, ao mundo dos fatos concretos - e são os fatos concretos aqueles que podem ser objeto de perícia? Sim, porque, segundo verte do art. 160 do CPP, "os peritos [...] descreverão minuciosamente o que examinarem [...] e, naturalmente, apenas poderão examinar o que lhes for perceptível aos sentidos. Aliás, como é de conhecimento geral, não cabe ao perito tirar conclusões, mas somente descrever os elementos observados. Se não há algo a observar – e o perito só observa o concreto, já que deve "descrever minuciosamente o que examinou" – não há de ser exigível, nem possível, um exame pericial.

Não se pode, assim, concordar inteiramente com FREITAS, que considera a perícia como "indispensável para que se ateste a efetiva existência de perigo à saúde" [28]. A perícia, se houver, será relativa à conduta poluidora, constatando, por exemplo, a presença de cartazes, faixas e peças visuais inadequadas – e não à existência do perigo.

Por fim, é com a objetividade de NUCCI, comentando o já mencionado artigo 158 do estatuto processual penal, que se deve arrematar a questão: "É próprio afirmar que toda infração penal possui corpo de delito, isto é, prova da sua existência, pois exige-se materialidade para condenar qualquer pessoa, embora nem todas fixem o corpo de delito por vestígios materiais. Em relação a estes últimos é que se preocupou o artigo em questão, exigindo que se faça a inspeção pericial [...]." [29]

E como se forma a convicção do juiz? Através de um raciocínio lógico desenvolvido pelo próprio julgador, para o qual REGIS PRADO recomenda a seguinte fórmula: "O juízo deve ser realizado por uma pessoa inteligente (o juiz), colocada na posição do autor, no momento do início da ação e tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto cognoscíveis por experiência comum da época sobre os cursos causais (saber nomológico). Se a produção do resultado figura como não absolutamente improvável, a ação era perigosa." [30]

Cabe ao julgador, nessa hipótese, verificar se o fato se subsume à norma, isto é, se o nível da degradação chegou ao ponto de poder comprometer a saúde humana. Partirá da premissa de que esse resultado, em tese, é possível. Tal premissa assenta-se na palavra de inúmeros profissionais da psicologia. LEMOS [31] ouviu em sua pesquisa uma série deles, valendo transcrever o parecer de um, de Portugal, cujo nome não foi revelado, constando apenas como entrevistado 06. Ele se manifestou assim:

A poluição visual poderá constituir uma ameaça à saúde, sendo a sua dimensão física afectada por via da influência sobre a saúde psíquica através da perturbação do estado de bem-estar (o processo de stress desencadeado e a ansiedade daí decorrente poderão ser geradores de patologias orgânicas).Esta acção poderá ter palco através de dois modos: no caso da poluição visual tomar a forma de vandalismo ou degradação passível de gerar nos indivíduos que com ela tenham de conviver um aumento da percepção de insegurança passível de desencadear um processo de stress (perturbador do estado de bem-estar); no caso da poluição visual ser uma obstrusão ao acesso visual a cenários restauradores passíveis de promover o recobro cognitivo (recuperação de recursos através da captação da atenção não focalizada) e assim possibilitar a redução de stress desencadeado por outros elementos.

A análise dessa possibilidade, transposta do nível abstrato para o concreto, dirá ao juiz se a conduta examinada se enquadra na definição legal.


Conclusão

Há um tipo de poluição que tem estado presente nas cidades que costuma chamar menos a atenção do que as formas mais tradicionais de poluir. Fala-se da poluição visual, atividade caracterizada pela degradação da paisagem urbana e capaz de produzir danos psíquicos no indivíduo a ela exposto. Essa modalidade de degradação vem sendo objeto da preocupação de diversas áreas do conhecimento, mas ainda não há notícia de que tenha despertado a atenção do Direito Penal.

Por se entender que é hora disso e que há mecanismos legais para tanto é que se desenvolveu o presente trabalho.

De fato, o artigo 54 da Lei n. 9605/98 – a Lei dos Crimes Ambientais – define o delito de "causar poluição [...] em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana [...]". O dispositivo, mais adiante, admite a forma culposa e qualifica o crime se a conduta "tornar uma área [...] imprópria para a ocupação humana".

A cidade de São Paulo vem dando exemplo de "despoluição" paisagística através do chamado projeto Cidade Limpa, por conta do qual têm sido retirados sinais visuais de médio e grande porte, com resultados estéticos indiscutíveis. Melhorou a "legibilidade" do panorama urbano, com ganho para o estado emocional dos indivíduos.

Cuida-se de projeto inspirado naqueles levados a cabo em algumas cidades do exterior e que bem pode se estender a outros centros urbanos brasileiros. Para isso é mister que se cumpram, desde as normas administrativas voltadas para sua concretização até normas de outra natureza. Ocorre que existe norma de caráter penal a tutelar exatamente o mesmo direito ao ambiente paisagístico urbano que as medidas administrativas postas em prática têm procurado assegurar. Portanto, não há porque hesitar em lançar mão dela.

O citado art. 54 da Lei Ambiental não é norma penal em branco, à espera de um complemento. É imediatamente aplicável ao agente poluidor que, embalado pela crença na total liberdade do particular frente à sociedade, com sua conduta degradar o ambiente artificial, a ponto de levar a risco a saúde psíquica dos que, de certo modo, tiveram usurpado seu direito a um espaço urbano bem tratado.

O crime exige no mínimo a possibilidade de dano à saúde humana, o que é teoricamente possível, desde que, como é voz corrente entre os especialistas em comportamento, a infinidade de apelos visuais despejados indiscriminadamente sobre a população, especialmente aquela forçada a se deslocar pelos espaços públicos por longos períodos, constitui fator de exaustão psíquica, capaz de desencadear ou agravar neuroses, de resto já facilitadas pela vida naturalmente estressante das grandes cidades.

Trata-se de crime comum, que pode ser cometido por qualquer pessoa, física ou jurídica, eventualmente permanente, plúri-subsistente, vago, material (ainda que admita um resultado imaterial). Tipo penal aberto, exige do juiz valoração da situação concreta, a lhe indicar se a conduta é tal que cause poluição e que esta seja capaz de produzir dano à saúde humana. Delito de ação penal pública incondicionada, há necessidade de conscientização e engajamento das autoridades incumbidas da persecução penal, notadamente o Ministério Público, para dar efetividade à norma. Posta em prática, constituirá, por certo, mais que medida repressiva, inegável fator de educação ambiental.


Referências bibliográficas

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Notas

01 Folha de S. Paulo, 27/maio/2007, caderno cotidiano, p. C-10.

02 www.revelacaoonline.uniube.br/a2000/ambiente.poluicao3.htlm

03 www.ambientebrasil.com.br

04 www.ibire.org.br/poluicao_visual.htm

05 http://lafora.com.br/2007/02/07/poluicao-visual/

06 FERRARI, Celson. Dicionário de urbanismo. São Paulo: Disal, 2004, p. 288.

07 LEMOS, Eduardo Henrique. A tutela penal ao meio ambiente urbano. Pesquisa, com apoio do CNPq, apresentada no VIII Encontro de Iniciação Científica UNIP/PIBIC-CNPq, São Paulo, set./2006, resumo publicado nos anais, p. 98.

08MINAMI, Issao. apud LEMOS, op. cit. Paisagem urbana de São Paulo. Publicidade externa e poluição visual. Disponível em <http://www.ambientebrasil.com.br> Acesso em 23 de mar. de 2006.

09 MARQUES, José Roberto. Poluição luminosa. In Revista de Direito Ambiental, n. 38, ano 10, abr.-jun./2005, p. 121. Coord. Antônio H. V. Benjamin e Edis Milaré.

10 CINTRA DO AMARAL, Antônio Carlos. Verbete poluição. In Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 59, p. 270.

11 Cf. Médio Dicionário Aurélio.

12 Folha de S. Paulo, 23/jan./2006, p. 2.

13 CONSTANTINO, Carlos Ernani. Delitos ecológicos. São Paulo: Atlas, 2001, p. 176.

14 TJSP. n. 428180. Tutela antecipada. Requisitos. Proibição pela Municipalidade de anúncio publicitário (poluição visual) (artigo n. 12 da Lei n. 14223/06). Pedido de prazo para adaptação dos taxistas às novas normas. In site do TJSP.

15 Rel. DES. REINALDO P. ALBERTO FILHO - Julgamento: 03/04/2007 - QUARTA CAMARA CIVEL. E M E N T A: Obrigação de Fazer. Alteração da fachada interna de unidade autônoma de condomínio residencial. Convenção, em sonância com o artigo 9º, § 3º da Lei 4.591/64, veda tal alteração independentemente da aprovação unânime dos condôminos em assembléia. Notificação extrajudicial do proprietário demonstrando a boa-fé do condomínio e a tentativa de solução extrajudicial da contenda. Provas robustas no sentido do total descompasso das portas instaladas pelo Réu em relação àquelas estabelecidas como padrão. Cristalina a poluição visual do ambiente. A permanência da referida alteração acarretará prejuízos aos demais condôminos, até mesmo em razão da desvalorização de suas respectivas unidades haja vista a desarmonia oriunda da utilização de materiais tão distintos em um mesmo ambiente. Entendimento corroborado pela Jurisprudência deste E. Sodalício. Provimento. Voto vencido.

16 FREITAS, Vladimir Passos de; Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 201.

17 LEMOS, op. cit.

18 Segundo classificação adotada por Damásio de Jesus, in Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 192.

19 NUSDEO, Fábio. Verbete poluição. In Enciclopédia Saraiva do Direito, 1977, v. 59, p. 262.

20 FREITAS, op. cit., p. 204.

21 FREDERICO MARQUES, José. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. IV, p. 203.

22 A distinção é proposta por Damásio de Jesus, que também postula a distinção entre perigo comum e individual (Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 187).

23 NORONHA, Edgard Magalhães de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1, p. 314.

24Apud NORONHA, op. cit.

25 Se ao menos tivesse havido vestígio materialmente verificável, que desapareceu com o tempo, caberia uma perícia indireta, com base em dados que pudessem demonstrar a sua ocorrência.

26 ESPÍNOLA FILHO,Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. Rio de Janeiro: Borsói, 1965, v. II, p. 466-57.

27 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale: parte generale. Pádua: Cedam, 1988. Apud PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Proteção penal do meio ambiente. São Paulo: Atlas, 2000, p. 115.

28 FREITAS, op. cit., p. 200.

29 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 338 (grifo nosso).

30 REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 3, p. 439.

31 LEMOS, op. cit.

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Sobre o autor
Plínio Antônio Britto Gentil

procurador de Justiça no Estado de São Paulo, doutor em Direito Processual Penal pela PUC/SP, professor universitário, membro do Movimento Ministério Público Democrático

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GENTIL, Plínio Antônio Britto. Poluição visual é crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1474, 15 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10153. Acesso em: 26 abr. 2024.

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