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Verdades sobre a impunidade

01/09/1998 às 00:00
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Não tenho aqui a pretensão de discorrer com profundidade sobre o instituto da criminologia ou, em última análise, da criminalidade em geral. Não teríamos como condensar tais idéias em um artigo de jornal, dada a vastidão do tema. Proponho-me, modéstia à parte, a relatar algumas verdades sobre a impunidade em nosso país, que tanto nos atormenta. Verdades essas camufladas a "sete chaves" por alguns "espertos" do Direito que se beneficiam com a ausência do "castigo legal".

No país, quando se levanta esse questionamento, advogados, juristas, cientistas, sociólogos, autoridades em geral colocam logo como discussão prioritária o Código Penal. Advogam, às vezes movidos por paixões, que o Código Penal devia impor maior severidade, e que dito instrumento não pode apenas servir para punir o mais fraco. Recentemente, em Teresina, um promotor de justiça bradou de frente para as câmaras da televisão: "O Código Penal só pune o pobre e o negro".

Pelos meus modestos conhecimentos jurídicos, a questão da impunidade não tem apenas relação íntima com o que está inserido no Código Penal. Ao contrário do que muitos entendem, o instrumento jurídico brasileiro que estimula a impunidade criminal (digo assim porque temos, também, a impunidade civil) é precipuamente o Código de Processo Penal. E por que será que ninguém fala sobre esse instrumento legal? Qual a "fórmula mágica" para que o Código beneficie o marginal? É aqui, é justamente aqui, que reside o cerne da questão. É ele, por exemplo, que enriquece as "gang’s", que financia, indiretamente, os intercessores diplomados.

A maioria da nossa sociedade, e até pessoas com restritos conhecimentos jurídicos, não sabe que um delegado de polícia tem competência para arbitrar uma fiança. E poucos sabem como isso é realizado. Em certos crimes, até com certos gravames, o elemento vai preso e, de repente, está solto.

Para exemplificar, vamos admitir que o meliante seja flagrado subtraindo do patrimônio alheio. Neste caso, teríamos duas figuras criminais distintas: furto ou roubo. De acordo com o atual Código de Processo de Penal, quem vai aferir, inicialmente, se houve furto ou roubo é o delegado. Se este entender que foi furto, aí está aberto o campo para o arbitramento da fiança, fazendo a "festa" dos criminalístas, pomposas ou não. Mas, vejam esse contra-senso jurídico. E é esse mesmo Código de Processo Penal que veda ao delegado fazer qualquer tipo de classificação penal no âmbito do inquérito policial. Dá para entender?

Para que todos tenham uma idéia do quanto isso é pernicioso para a estabilidade social, vejamos o caso de uma pessoa que é flagrada com determinada quantidade de maconha. Se o delegado achar que aquela quantidade de entorpecente não caracteriza tráfico (algumas vezes dá para fazer uns 50 cigarros), de logo poderá arbitrar uma fiança em favor do indiciado, que voltará novamente às ruas para fazer mais uma "festa", após ter engordado o bolso de quem patrocinou a sua soltura - e tem um tal patrocínio extensivo.

Esse Código de Processo Penal brasileiro é uma excrescência! É bem verdade que o instituto da fiança deriva de uma regra constitucional, mas quem o regulamenta é o Código de Processo Penal, que confere essa competência ao "chefe de polícia", quando, no meu entender, somente poderia ser atribuída ao juiz.

Contudo, não é somente em relação à ação policial que o código se apresenta como um mal para o sistema legal brasileiro. Também no âmbito da autoridade judiciária a tal lei é profundamente maléfica. Todos nós estamos cansados de saber, por exemplo, que um determinado magistrado decretou a prisão de um marginal de alta periculosidade. Dias depois, quando a sociedade acha que, felizmente, o bandido vai apodrecer na cadeia, lá está ele novamente nas ruas, cuja liberdade fora consegüida via "habeas corpus". Como isso pode ter ocorrido? O que houve?. Fica a sociedade a se perguntar. O que ocorreu é que a defesa se aproveitou das chamadas "brechas" processuais para soltar o criminoso. E ainda aparece aquele desinformado e sapeca: "a polícia prende e a Justiça solta".

Muito se fala que um determinado preso teve a sua liberdade concedida, via Justiça, porque a instrução do processo demorou, ficando caracterizado o excesso de prazo. E por que isso acontece: Culpa do juiz? Culpa do promotor? Nada disso! O excesso de prazo na instrução processual é uma criação da jurisprudência brasileira, com base justamente no Código de Processo Penal, que permite tal interpretação dos tribunais superiores. Isso é um absurdo! É bem verdade que um processo penal não pode perdurar por séculos sem fim, "sine die". Mas, também é inadmissível que um bandido seja solto por deficiência ou inoperância da lei, cujo diploma todos têm que obedecer.

Relembrando, antes fizemos referência que existe também a figura da impunidade civil. Fazendo-se um cotejo com a esfera penal, na esfera civil não há, por exemplo, a figura da absolvição da instância por excesso de prazo. Se alguém praticar um ilícito civil por dano a bem alheio (inclusive a honra), fica obrigado a repará-lo, não podendo ser beneficiado por excesso de prazo na instrução do processo. Seria um absurdo!

Ilustrando, recentemente, nos Estados Unidos, a título de se conceder maior agilidade às regras processuais, criou-se um movimento que está sendo conhecido como Tolerância Zero – já está no Congresso. A idéia é reprimir toda infração, por menor que seja. Entendem, com razão, que isso faz com que não só as pequenas infrações caiam, como também as grandes fiquem desestimuladas. No nosso caso, entretanto, não vejo outra solução senão modificar-se substancialmente o nosso Código de Processo Penal, porque ele na verdade se constitui num entrave para o combate à criminalidade. A continuar como está, Polícia, Justiça e autoridades constituídas sempre continuarão sendo apontadas como as grandes culpadas.

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Querem mais bandidos nas ruas, é só deixar como está!

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Sobre o autor
Miguel Dias Pinheiro

advogado em Teresina (PI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Miguel Dias. Verdades sobre a impunidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 26, 1 set. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1017. Acesso em: 16 abr. 2024.

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