Capa da publicação Constituição e os limites retributivos da sanção penal
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Princípios penais constitucionais de sanção:

os limites da retribuição à luz da Constituição Federal

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06/10/2024 às 23:33
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4. OS PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS DE SANÇÃO: HUMANIDADE, PESSOALIDADE E INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

4.1. PRINCÍPIO DA HUMANIDADE DAS PENAS

Historicamente, é a partir do cristianismo que tem lugar o conceito de pessoa como categoria espiritual, dotada de valor em si mesma, um ser de fins absolutos e possuídos de direitos fundamentais e, portanto, de dignidade41. Difunde-se, a partir do desenvolvimento da teologia cristã, a convicção segundo a qual o homem era o único ser vivo sobre a terra feito à imagem e semelhança de Deus: cada alma humana é obra mestra de Deus. E a expressão pessoa é definida por Boécio, no século V, como sendo uma substância individual de natureza racional, definição essa, reelaborada no século XIII por Santo Tomás de Aquino em sua Suma Teológica (I, q. 29, art. 1)42, constituindo a matriz teológica cristã da ideia de dignidade da pessoa humana. Pessoa esta que deve ocupar uma posição absoluta, central, concreta e operativa43.

No século XVII, como ideário do Direito natural racional, em especial na obra de Samuel von Pufendorf, aflora a noção de humanitas como princípio jurídico, dispondo que a natureza exige que o homem seja sempre considerado como semelhante, ainda que nada de bom se possa esperar dele, sendo essa a razão suficiente para que o gênero humano construa uma comunidade pacífica44.

Recorde-se, outrossim, das célebres palavras de Cesare Beccaria (século XVIII), para quem não existe liberdade onde as leis permitem que, em determinadas circunstâncias, o homem deixe de ser pessoa e se converta em coisa45.

Nesse passo, em um modelo de Estado cujo centro ético, político e jurídico é a pessoa leia-se, em um Estado democrático de Direito - são expressamente vedadas a criação, a execução ou qualquer outra medida, a título de resposta penal, que atente contra a dignidade humana. E é justamente na dignidade humana que reside o fundamento material do princípio da humanidade enquanto limite da atividade punitiva estatal46.

Não há que se confundir a dignidade humana com o princípio da humanidade47. Repita-se, aquele é fundamento material desse, que surge em decorrência da contribuição do denominado período humanitário ou iluminismo penal, graças, sobretudo, ao jusnaturalismo e ao Direito Canônico 48 quando se abrem as portas para a benignidade das penas49.

E no ideário da ilustração, que dominou os séculos XVII e XVIII, consagra-se o princípio da humanidade no Direito Penal moderno, promovendo-se a superação dos postulados do Ancièn Régime 50 . Os arautos do século das luzes propugnavam a transformação do Estado a partir de duas ideias fundamentais: a afirmação dos direitos inerentes a condição humana51 e a elaboração jurídica do Estado como se tivesse origem em um contrato52, no qual, ao constituir-se o Estado, os direitos humanos seriam respeitados e assegurados. Daí um Direito Penal vinculado a leis prévias e certas, limitadas ao mínimo estritamente necessário, e sem penas degradantes. Assim, os direitos humanos passaram a integrar o instrumento jurídico do pacto social, qual seja, a Constituição53.

O princípio da humanidade das penas permite detectar, sob a ótica da dimensão histórica, uma gradativa propensão na humanização das penas que foram tornando-se, num perpassar evolutivo, menos severas em seu tempo de duração e em sua carga aflitiva54. Das penas de morte e corporais, passa-se progressivamente, às penas privativas de liberdade, e destas, às penas alternativas a prisão (v.g. multas, prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana)55. Transformou-se então, paulatinamente, os duros e degradantes regimes carcerários, desapareceram os grilhões e as correntes, bem como os castigos corporais. A integridade corporal do preso de hoje deve ser preservada; já não se impõe aos reclusos raspar a cabeça; nem os designam mais por números; não se usam mais os infames trajes listrados e nem se aplicam mais os trabalhos degradantes e improdutivos56.

Nos atuais modelos jurídicos de Estado de contextura democrática, o princípio da humanidade encontra ampla ressonância constitucional. E a Constituição brasileira de 1988, que estabelece como fundamento do Estado democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1.º III, CF), encontrou formas de expressão em normas proibitivas tendentes a obstar a formação de um ordenamento penal de terror, bem como em normas garantidoras de direitos de pessoas privadas de liberdade, objetivando tornar as compatíveis com a condição humana. Assim, de um lado, o princípio da humanidade da pena encontra eco na proibição de tortura e do tratamento cruel ou degradante (art. 5.º, III, CF) e na proibição da pena de morte, da pena de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou cruéis (art. 5.º XLVII, CF); de outro, decorre do processo individualizador da pena, na sua fase executória (art. 5.º, XLVI, CF), no asseguramento aos presos do respeito à integridade física ou moral (art. 5.º XLIX, CF), no direito de cumprir a pena em estabelecimentos distintos (art. 5.º, XLVIII, CF) e na salvaguarda às presidiárias das condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (art. 5.º, L, CF)57. Tal princípio implica, portanto, não apenas numa proposta negativa caracterizadora de proibições, mas também, e principalmente, na proposta positiva, de respeito à dignidade da pessoa humana, embora presa ou condenada58.

Nota-se que, para além da proibição de penas desumanas, tem-se no Estado democrático de Direito a busca por uma paulatina redução do conteúdo aflitivo das sanções, e um propósito de compatibiliza-las, na medida do possível, com o máximo desfrute dos direitos do recluso, cuja restrição não seja mais imprescindível para o fim das sanções59. Examinando-se assim, o princípio da humanidade também como valor positivo, como norma reitora de todo o processo de execução da pena, sem esquecer-se que a pena possui, por si, natureza aflitiva, através da qual a sociedade responde às agressões que sofre com o cometimento de um delito60.

O princípio humanitário restringe o trabalho do legislador na elaboração das leis penais, sendo a pena, a resposta jurídica à conduta delituosa61. Castigo como restrição ao comportamento. Restauração, no sentido de repor a ordem ofendida. Retribuição, porque castigo e restauração62. Dito de outro modo, a pena é retribuição jurídica e utilidade pública que não pode consistir em tratamento contrário ao senso de humanidade e deve atender à reeducação do condenado63.

Nesse diapasão, o art. 59, do Código Penal, assinala que a pena deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime64, de modo que a pena aplicada reprova o delinquente e, na execução será utilizada para impedir o retorno à criminalidade. Assim, a finalidade da pena não é ressocializar, como sinônimo de pensar e agir como a sociedade (pelo menos como padrão médio)65. Busca, isso sim, retribuir juridicamente o dano social causado pelo crime66.

E consagrando expressamente o princípio da humanidade das penas, a Constituição Federal de 1988 dispõe que não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis (art. 5.º, XLVII, CF); é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (art. 5.º, XLIX, CF)67. Proibindo-se em rol exaustivo, no texto maior, as penas que afrontam o necessário caráter humanitário. Vejamos cada uma delas:

a) Pena de morte

No Brasil, a pena de morte estava prevista no Código Criminal do Império de 1830, mas foi revogada em 1851, quando, depois de cumprida a sentença, executando-se o fazendeiro fluminense Mota Coqueiro, se descobriu que ele não havia sido o autor do delito a ele atribuído. Assim, o Imperador Dom Pedro II passou sistematicamente a comutar as penas de morte em galés perpétuas68.

Desde a primeira Constituição Republicana (1891), somente a Constituição de 193769 e a Emenda Constitucional n.º I (1969)70 não proibiram a pena de morte. Da mesma forma, proibia-se também as penas de caráter perpétuo e de banimento em quase todos os textos constitucionais republicanos, só não o fazendo a Carta polaca e o AI-571.

A pena capital traduz a verdadeira exacerbação do jus puniendi, produto da vingança privada, de um período em que o ofendido podia, a seu bel-prazer, castigar o ofensor. Contudo, ainda consta de várias legislações72, embora haja evidente demonstração de redução cada vez maior tendente a ser suprimida.

No Brasil, a Constituição adotou, como regra, a proibição da pena de morte, dando-lhe status de cláusula pétrea. Entretanto, excepcionou o mandamento geral permitindo a pena capital nos casos de guerra declarada, com a cautela de resposta à agressão estrangeira, autorizada pelo Congresso Nacional ou por ele referendada, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas (art. 5.º, XLVII, c/c art. 84, XIX, ambos da Constituição Federal). Na seara penal, conforme já mencionado, confirmaram-se princípios de garantia, dentre os quais merecem destaque o da humanidade das penas e do interesse público da pena. A pena de morte contrasta com ambos, uma vez que ao Estado incumbe realizar o bem comum, em cuja definição não se agasalham métodos de eliminação do próprio homem73.

b) Penas de caráter perpétuo

A vedação das penas de caráter perpétuo, no Brasil já é tradição constitucional, uma vez que, a primeira das nossas Constituições proibi-las foi a de 193474. Semelhantemente, a Constituição de 10 de novembro de 1937, também vedou, em seu art. 122, XIII, as penas perpétuas e corporais. A Constituição de 1946, no § 31 do art. 141, repete, por sua vez, a Constituição de 1934. A Constituição de 1967 também vedou. Já o AI-5, de 1969, proibiu a pena de prisão perpétua. Todavia, excepcionalmente admitiu-a nos casos de guerra externa, psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Atualmente, é dispositivo constitucional, previsto no art. 5.º, XLVII, b, que não haverá pena de caráter perpétuo75.

Tem-se como perpétua, a pena que impossibilita o condenado de reinserir-se na sociedade após o seu cumprimento. Assim, incumbe ao Estado acenar-lhe com a esperança do retorno à família, aos amigos, ao trabalho enfim, fazer com que efetivamente, permitindo-lhe alcançar melhores dias além do cárcere. Por outro lado, quando o Estado interrompe as perspectivas de vida humana em decorrência do tempo e das condições da prisão, estas situações concretas aproximam-se da pena de morte76.

A pena prisão perpétua é uma pena de segurança, pela qual a sociedade defende-se, afastando definitivamente do seu seio o homem que gravemente delinquiu. Entretanto, é pena cruel e injusta, que priva o condenado não só da liberdade, mas da esperança da liberdade, que poderia encorajá-lo e tornar-lhe suportável a servidão penal77. Ela impossibilita qualquer graduação segundo a natureza e circunstâncias do crime e as condições do criminoso, impedindo a individualização da pena e frustrando qualquer possibilidade de reajustamento social do condenado78. É, em geral, excessiva e não atende à necessária determinação no tempo, por que não findará em uma data fixada na sentença, mas durará enquanto o homem exista79.

As penas de caráter perpétuo constituem, indubitavelmente, um excesso ao exercício do direito de punir do Estado, violador dos princípios do interesse público e da humanidade das penas. É desprovido de sentido, em nossos dias, se privar alguém de exercer a liberdade para o resto da vida. Além de contrariar o anseio de todo homem, não se extrai nenhuma utilidade social, mas ao contrário, apenas propaga os efeitos deletérios do cárcere, a manutenção da ociosidade e a transformação do ser humano em pária80.

Importa salientar, outrossim, que a sua inserção no título dos direitos e garantias individuais, com status além de princípio (v. g. humanidade das penas) - de verdadeira regra constitucional, regra esta que também se embasa num princípio. Nesse passo, o caput do art. 5º, da Constituinte, também consagra, dentre os mesmos direitos individuais e coletivos, a inviolabilidade do direito à liberdade. E por isso, a sua privação e restrição também há de ter caráter excepcional. A tutela dos bens jurídico-penais (v. g. vida, patrimônio etc) impõe, quando gravemente ofendidos, e as outras sanções que se revelem insuficientes, o sacrifício da liberdade. Porém, a possibilidade de supressão total de liberdade (leia-se: a prisão perpétua) implica na negação de sua inviolabilidade. Não é concebível a inviolabilidade da liberdade sem que se impeça a possibilidade de sua integral eliminação. Proibir, pois, as penas perpétuas, como o faz expressamente a nossa Constituição, é um consectário necessário do princípio, também constitucional, da inviolabilidade da liberdade81.

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Os códigos penais modernos82 revelam tendência de diminuir as sanções muito elevadas. E essa orientação, não é pieguismo, nem enfraquece a eficácia da legislação. Ao contrário, integra o movimento científico de revisão das leis penais de descriminalização e despenalização, voltado para ajustar as normas ao interesse social e para as condenações serem úteis à coletividade. Em verdade, a pena excessivamente elevada gera desestímulo e revolta ao condenado, que perde a vontade, o alento para um dia, ainda útil, recomeçar a vida em liberdade83.

Ressalte-se, ademais disso, que as penas excessivamente altas adquirem caráter perpétuo. Uma vez que a lei não pode cominar pena, cujo máximo a transforme em sanção que impeça o condenado de recuperar o exercício do direito de liberdade. Assim, considerando que a imputabilidade penal inicia-se, cronologicamente, a partir dos 18 anos de idade, o limite de pena deve projetar-se a partir daí, e ser fixado de modo que não impeça o retorno ao convívio social do condenado. Ou seja, a conjugação desses dois fatores (início da imputabilidade penal e limite de pena) projeta limite razoável para que alguém possa cumprir sanção elevada e, mesmo assim, ter oportunidade de retornar à sociedade84.

c) Trabalhos forçados

Durante o período colonial, importa mencionar a previsão dos trabalhos forçados nas Ordenações Filipinas (1603), em que os indivíduos que blasfemassem mais de uma vez contra os santos ou contra Deus pagariam a soma de quatro mil-réis em dinheiro e seriam degredados às galés durante um ano. A Inquisição determinava que diversos delitos poderiam levar o indivíduo a ser condenado às galés, onde realizavam trabalhos forçados85. Era um ambiente sujo, sem ventilação, com um calor insuportável. Neste lugar, os homens conviviam com alimentos estragados e corriam o risco constante de contrair doenças86.

O art. 46, do Código Criminal do Império preceituava que a pena de prisão com trabalho obrigará os réus a ocuparem-se diariamente no trabalho, que lhes for destinado dentro do recinto das prisões, na conformidade das sentenças, e dos regulamentos policiais das mesmas prisões87.

No Brasil, o processo de abolição da escravidão deu-se de modo gradual, iniciando-se nos idos de 1850 com a Lei Eusébio de Queirós, seguida pela Lei do Ventre Livre de 1871, dos Sexagenários de 1885 e concluída pela Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), sancionada em 13 de maio de 188888. Extinta a escravatura o labor gratuito e/ou forçado, ainda que imposto pelo Estado, e mesmo na execução penal, perdeu o sentido, assentando-se definitivamente o trabalho remunerado89.

Nesse sentido, o Código Penal90 dispõe que o trabalho do preso será sempre remunerado e a Lei de Execução Penal91 assegura o piso de remuneração em três quartos do salário mínimo92, mas não está sujeita ao regime da Consolidação das Leis Trabalhistas, conforme preceitua o art. 28, § 2.º, da LEP (Lei 7.210/1984). Entretanto, se o trabalho do detendo é prestado ao Estado, merecerá tratamento diversos, pois formulam-se duas relações jurídicas, interdependentes, entretanto, distintas. Numa, há o resgate da sanção penal, noutra, a prestação de serviços a outrem, podendo o labor der prestado dentro ou fora do estabelecimento prisional93.

Hodiernamente o preso não perde sua individualidade, pois deixou de ser objeto, passando a figurar como sujeito da relação jurídica. Assim, apesar da condenação, conservam-se todos os direitos, exceto aqueles afetados pelas restrições inerentes à execução da pena. Dessa forma, deverá ser declarada inconstitucional qualquer pena ou consequência do delito que restrinja para além da previsão legal, ou daquilo que é essencial ao estrito cumprimento da pena94.

O trabalho como castigo não deve ser confundido com a laborterapia, que é perfeitamente legal e até recomendada em razão de seu sentido pedagógico. A atividade ocupacional da pessoa privada de liberdade tem fim educativo e produtivo. Também importa diferenciar os trabalhos forçados da prestação de serviços à comunidade, enunciada no art. 46, do Código Penal95. Apesar da gratuidade, a prestação de serviços à comunidade é ônus inerente ao cumprimento da pena. A causa da relação jurídica é a sanção concretizada na sentença condenatória, representando a restrição do direito do condenado. Já o trabalho é diferente, pois a causa da relação jurídica é o acordo de vontades, através do qual uma pessoa se obriga à prestação pessoal de atividade dirigida, não eventual, a outrem, mediante pagamento, tendo a remuneração como essencial96.

d) Banimento

O art. 50, do Código Criminal do Império, incluiu a pena de banimento no rol de sanções, como sendo a privação para sempre dos direitos de cidadão brasileiro, inibindo os condenados perpetuamente de habitar o território nacional97.

Importa distinguir o banimento das penas de degredo e de desterro. O degredo obrigava os réus a residir em lugar apontado pela sentença condenatória, devendo nele permanecer durante o tempo indicado na decisão (art. 51, Código Criminal do Império). O desterro, por sua vez, determinava que o réu saísse do local do delito, de sua principal residência e da principal residência do ofendido, não podendo neles adentrar durante um período determinado da sentença penal condenatória (art. 52, Código Criminal do Império). Verifica-se que o banimento, o degredo e o desterro possuem um ponto m comum: a obrigatoriedade de deslocamento do condenado do lugar em que habita. O banimento em sentido amplo, compreende o degredo e o desterro98.

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A Constituição republicana de 1891, aboliu a pena de galés e a de banimento judicial (art. 72, § 20)99, e o fez conjuntamente em razão da aplicação simultânea das penas, pois os condenados banidos, no mais das vezes, eram também levados às galés100. Trata-se de espécie de pena que não poderá ser instituída no País. Generalizada no passado, hoje encontra repulsa em todos os Estados democráticos, pois hoje, não se tolera a violência de impedir que alguém more no local de sua escolha ou se lhe imponha onde ficar101. Ademais disso, nos termos do art. 12, § 4.º, da Constituição Federal, somente se declarará perdida a nacionalidade do brasileiro que, tiver cancelada a sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional, ou por adquirir outra nacionalidade por naturalização voluntária.

e) Penas cruéis

A Declaração dos Direitos do Homem (1948) estabelece que todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoa (art. III), e ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (art. V). O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) dispõe que ninguém será submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes102. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas (art. 7.º); e a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) define e pune a tortura (arts. 1.º e 4.º)103.

A Constituição Federal de 1988 também veda, expressamente, em seu art. 5.º, XLVII, e, as penas cruéis, traduzindo-se na ideia de se infligir a pessoa privada de liberdade desnecessário padecimento físico ou moral. Crueldade essa, que afronta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1.º, III, CF), bem como o ideal democrático, que tem na pessoa o seu núcleo axiológico104.

Nesse diapasão, o legislador ordinário valeu-se da interpretação analógica para delimitar o tratamento cruel empregado pelo sujeito ativo do delito, descrevendo, ora como circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime, o emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ora ainda, qualificando o homicídio, quando perpetrado com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel105. De tal sorte, não pode o mesmo Estado que repele a crueldade perpetrada como meio na execução de determinados delitos - punindo o seu agente mais severamente por isso infligir padecimentos físicos ou morais aos condenados, sendo vedado até cominar penas que, em si, conduzam a essa situação106, pois denotam sempre o extremo afastamento da piedade, manifestadas com o fim de causar um sofrimento desnecessário à pessoa107.

Logo não se admite que a pena em si mesma e na sua execução, ofenda a dignidade do homem. É o que ocorre quando o condenado é físico-moralmente submetido a tratamento degradante108. Historicamente, as Ordenações Filipinas previam como pena, em seu Livro V, a obrigação do delinquente sair à rua vestindo capela de chifres, do preso permanecer com os pés amarrados com barras de ferro a fim de impedir-lhe os movimentos, de provocar marcas no corpo do condenado e tantos outros exemplos que ficaram na história, mas que hodiernamente, devem ser banidos de modo absoluto109.

Importa salientar que, as penas cruéis, preocupação do constituinte, não devem ser confundidas com o padecimento físico ou mesmo moral suportado pelo condenado, próprios das penas supressivas da liberdade ou restritivas de direitos. Pois é fato inerente ao cumprimento da pena110. O problema é que a dramática visão que oferecem os centros penitenciários e a originária contradição que suscita o binômio pena de prisão-ressocialização111, induzem-nos concluir que o atual sistema de persecução penal fomenta a estigmatização e a dessocialização do condenado112.

4.2. PRINCÍPIOS DA PESSOALIDADE E INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

a) Princípio da Pessoalidade

O também denominado princípio da pessoalidade ou ainda, da intranscendência, preleciona que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, impedindo a punição do fato alheio, de modo que, somente o autor da infração penal poderá ser apenado. Nota-se, portanto, que a responsabilidade penal é sempre pessoal, não se admitindo, no Direito Penal, responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva113. A pena é a sanção do Direito que atinge o infrator da lei em sua pessoa. Assim, sendo, somente a ele poderá ser dirigida, não se admitindo ultrapassar, transcender a pessoa do condenado114.

Historicamente, num período em que vigorava a vingança privada, além de a reação do ofendido restar ao seu arbítrio, não se reconhecia qualquer limitação. E tal quadro somente modificou-se com o talião e a composição. A vindita era coletiva, grupal. Tanto por parte do grupo a que pertencia a vítima, como dirigida ao grupo do ofensor. A tribo e o clã sofriam a represália. Entendia-se, portanto, que a agressão de alguém traduzia a animosidade de sua grei contra a do ofendido. Sob a égide da vingança pública, a reação ao agressor se torna politicamente organizada, sendo que a resposta ilimitada e individualmente definida cede passo à centralização do ius puniendi estatal, manifestando-se, gradativamente, a tendência de afastar-se a generalização em relação às pessoas, centralizando-se o castigo somente no agressor115.

O Direito Penal, hoje, vive época científica, criminológica, diferente do período da vingança privada. E justamente por isso, não se pode esquecer que somente o agente do crime deverá sofrer a sanção, ao passo que terceiros, ainda que da mesma família, precisam ser preservados. Caso contrário, a reação, ao invés de restringir-se ao malfeitor, alcançará inocentes. Por isso que o princípio da responsabilidade pessoal surge com intuito de buscar a superação desse estágio, característico, sem dúvida, de uma forma incivilizada de solucionar conflitos116.

Hodiernamente, a pessoalidade da pena é princípio pacífico do Direito Penal das nações civilizadas que a pena pode atingir a penas o sentenciado. Nesse diapasão, a Constituição de 1988 prevê que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido (art. 5.º, XLV, CF). Assim, ao contrário do ocorrido no Direito pré-beccariano, a pena não pode se estender a pessoas estranhas ao delito, ainda que vinculadas ao condenado por laços de parentesco117.

A primeira parte do dispositivo constitucional, que assevera que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, é tradicional em nossas Constituições, e esteve presente na Constituição do Império de 1824, art. 179, § 20118, na Constituição da República, de 1891, art. 72, § 19119, na Constituição de 1934, art. 113, § 28120, sendo que a Constituição polaca de 1937 foi silente sobre a personalidade da pena, também constou da Constituição de 1946, art. 141, § 30121, e na Constituição de 1967, art. 150, § 13122. No que tange a segunda parte do dispositivo constitucional, somente a partir da Constituição de 1988 é que reuniram-se em um só dispositivo constitucional a garantia penal e civil123.

A personalidade da pena justifica-se pela fundamentação da aplicação de uma pena a um indivíduo, vinculando-se estreitamente aos postulados da imputação subjetiva e da culpabilidade, que decorre do mesmo fundamento constitucional. Assim, reitera-se, a responsabilidade penal é sempre pessoal e subjetiva própria do ser humano -, e decorrente apenas de sua ação ou omissão, não sendo admitida nenhuma outra forma ou espécie (v. g. por fato alheio, por representação, pelo resultado etc.). Daí se depreende que a sanção criminal pena ou medida de segurança não é transmissível a terceiros, determinando-se a título de autor, instigador ou cúmplice, segundo o comportamento da pessoa processada e em razão de sua própria culpa. É, pois, matéria que versa sobre autoria e participação, com os seus elementos objetivos e subjetivos124.

É fundamental que se compreenda que são espécies de pena 125, as privativas de liberdade, as restritivas de direitos e a de multa126, e portanto, restringem-se à pessoa do condenado. Por sua vez, são efeitos da condenação (desde a reforma de 1984, com a Lei n.º 7.209, não se fala mais em penas acessórias): tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, dos instrumentos e/ou produtos do crime; a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, quando a pena aplicada for superior a quatro anos; a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado; a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. E acrescenta o parágrafo único que tais efeitos não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença127.

Importante que se diga que, acerca da natureza jurídica dos efeitos da condenação, outrora denominados penas acessórias, é de consequências jurídicas não-penais decorrentes da sentença penal condenatória. Logo, embora figurem no Código Penal, não perdem a característica de sanções civis e administrativas. Ingressam no Código Penal por motivo de sistematização e nada mais128. É por tais razões que a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens podem ser estendidas aos sucessores do condenado, até o limite do valor do patrimônio transferido (art. 5.º, XLV, in fine, CF)129.

b) Princípio da individualização da pena

Corolário dos princípios da personalidade e da culpabilidade, o postulado da individualização da pena se consubstancia, na previsão legal, na aplicação da pena e na execução da sanção penal, levando-se em conta, a necessidade de retribuir o mal crime com o mal pena, na exata medida e sem perder de vista a culpabilidade, a personalidade e os antecedentes da pessoa privada de liberdade130.

Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, XLVI preleciona que a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;

O processo de individualização da pena atinge os três poderes da República, realizando-se em três momentos distintos e complementares: o legislativo, o judicial e o executório131.

Na primeira etapa, a legislativa, a individualização far-se-á através da lei, que fixa de forma geral e abstrata, em cada tipo penal, penas proporcionais a importância do bem jurídico tutelado e a gravidade da ofensa. Prevê-se ainda, em alguns casos, penas alternativas ou substitutivas, ou ainda, aplicação cumulada de penas. Entretanto, a lei penal não se limita as previsões normativas mencionadas, mas também, fixa regras que vão permitir as ulteriores individualizações, estipulando regras que o magistrado deve atender para chegar, em cada caso, à fixação da pena definitiva e concreta. Verifica-se, portanto, que a infração penal não fica adstrita ao arbítrio do legislador. Está ele, vinculado a ela, pois o art. 5.º, XLVI, da Constituição Federal disse que a lei regulará. Nota-se que a Constituição se restringe a registrar o princípio, remetendo à lei a respectiva disciplina. À lei ordinária restou a incumbência de estabelecer os critérios da individualização (vide art. 59. e ss, do CP) sem, entretanto, restringir a extensão do princípio132.

Já a segunda fase é a da individualização judiciária, em que o juiz, considerando as circunstâncias judiciais e legais, definirá a pena em concreto133. Assim sendo, considerando as peculiaridades do caso concreto e uma variedade de fatores que são especificamente previstos pela lei penal, incumbirá ao julgador fixar qual das penas será aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução. Apesar da previsão legal das circunstâncias judiciais, atua o magistrado com indiscutível discricionariedade, uma vez que incumbe-lhe realizar um ajustamento da resposta penal em função não só de circunstâncias objetivas, mas principalmente da pessoa do denunciado e do comportamento da vítima134.

Dito de outro modo, é da própria natureza da individualização o poder discricionário do juiz, no momento da fixação ao caso concreto. A possibilidade de oscilar entre dois valores é essencial135, posto que, individualizar significa mensurar a pena ao caso concreto, ponderando-se fatores de ordem objetiva e subjetiva. Assim sendo, vários valores confluem para fixar a pena cominada, dentre os quais, enfatize-se: o maior ou menor impacto no bem jurídico tutelado, os meios e modos de execução, os elementos subjetivos do injusto etc. Verifica-se, pois que, assim como o injusto penal, a culpabilidade também é graduável, calibrável136, e o processo individualizador da pena traduz perfeitamente isso, viabilizando a realização da justiça do caso concreto, proveniente da ideia de igualdade aristotélica137, aplicando-se a pena justa138.

Trata-se, entretanto, de um juízo de discricionariedade juridicamente vinculada, ficando o magistrado adstrito aos parâmetros legais, que balizam suas valorações139 e aos conteúdos substanciais da Constituição, que o vincula normativamente em contraposição ao modelo positivista140, que exige a renúncia, por parte do julgador, à função de boca repetidora da lei141.

Deve a pena ser sempre proporcional ao delito, sendo que o delito não se esgota na expressão literal do tipo. É valoração negativa, e como tal, enseja mensuração, maior ou menor repulsa, de modo que, sem a proporcionalidade, impede-se a realização da justiça material142.

Por fim, a pena será executada a cada pessoa privada de liberdade conforme seus méritos e seus deméritos, condições e circunstâncias pessoais. É nesse momento que a sanção penal começa a atuar verdadeiramente sobre o agente que violou a ameaça contida na cominação geral e abstrata143. Fala-se então em uma fase executória, e não meramente administrativa, pois é quando se cumpre a cominação de pena imposta em concreto pelo magistrado, e que implicará, inclusive, durante o seu cumprimento, o exercício de funções marcadamente jurisdicionais144.

É, pois, na execução de pena que decisivamente concretiza-se a individualização, momento em que poderá ser adequada à personalidade do sujeito ativo da infração, designando-o à espécie de estabelecimento correto dentre os tipos existentes145. Nesse passo, a elaboração de legislações que impossibilitem a progressão de regime, a concessão de liberdade provisória ou livramento condicional, bem como outros institutos individualizadores são dignos de crítica, pois oferecem o mesmo tratamento a pessoas diferentes e que reagirão diversamente à aplicação da pena. Esses fundamentos deveriam ser levados em conta pelo legislador quando da gênese do texto legal de leis como, por exemplo, a Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/90)146.

Como garantia do princípio da individualização da pena na sua fase executória, a Constituição Federal de 1988 assegura aos presos os respeito à integridade física e moral (art. 5.º, XLIX, CF), garante que o cumprimento da pena se dará em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5.º, XLVIII, CF) e prevê também que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (art. 5.º, L, CF). Verifica-se que a Constituição Federal tenta enformar, concretizar os direitos de execução, chegando a abordar aspectos que não deveriam ser tratados em nível constitucional, mas tão somente pela lei ordinária (v. g. art. 5.º, L, CF).

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Sobre o autor
Gerson Faustino Rosa

Doutor em Direito. Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo-SP. Mestre em Ciências Jurídicas. Centro Universitário de Maringá-PR. Especialista em Ciências Penais. Universidade Estadual de Maringá-PR. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho-RJ. Graduado em Direito. Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente-SP. Professor de Direito Penal e Coordenador dos cursos da área jurídico-penal da Uniasselvi. Professor de Direito Penal nos cursos de pós-graduação da Universidade Estadual de Maringá, da Escola Superior da Advocacia, da Escola Superior da Polícia Civil e da Escola Superior em Direitos Humanos do Estado do Paraná, da Unoeste, do Cesumar, da Univel-FGV, da Fadisp, da Unipar, do Integrado e da Faculdade Maringá. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação da Universidade Estadual de Maringá-PR (2014-2019). Professor de Direito Penal e coordenador da pós-graduação em Ciências Penais da Universidade do Oeste Paulista (2016-2019). Professor de Direito Penal na Uniesp de Presidente Prudente-SP (2013-2016). Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Penal e Segurança Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal e Direito Penal Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Gerson Faustino. Princípios penais constitucionais de sanção:: os limites da retribuição à luz da Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7767, 6 out. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101705. Acesso em: 21 nov. 2024.

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